Em Terezín, uma localidade checa que cresceu à volta de uma fortaleza mandada construir a 60 quilómetros de Praga, em 1780, pelo imperador José II, Hitler fez erguer «uma cidade para judeus» que pretendia modelar. O seu objectivo continha uma dupla face: por um lado, a cidade servia para mostrar, às autoridades dos países neutrais ou a alguns aliados dos nazis que pudessem mostrar-se mais sensíveis às primeiras informações sobre a natureza da Solução Final, a forma como os judeus viviam bem sob a protecção de um «benevolente» Terceiro Reich; por outro, permitia a concentração de mão-de-obra particularmente qualificada, uma vez que os judeus destinados a habitar a cidade, agora baptizada Theresienstadt, eram em regra pessoas com uma formação superior. Muitos deles eram músicos, actores, artistas, escritores, jornalistas, ou membros destacados de organizações políticas entretanto ilegalizadas. Logo, pessoas perigosas mas «apresentáveis» e temporariamente úteis. (mais…)
As vítimas dos disparos dos soldados britânicos – causando 14 mortos e um número elevado de feridos – no incidente que ficou conhecido por Domingo Sangrento (Bloody Sunday), em Londonderry, na Irlanda do Norte, a 30 de Janeiro de 1972, foram agora consideradas inocentes de qualquer provocação por um inquérito oficial aberto há cerca de 12 anos. Este provou que as tropas britânicas de ocupação dispararam deliberadamente e sem qualquer aviso prévio sobre os participantes de uma marcha pelos direitos cívicos da minoria «católica» pobre e segregada. O acontecimento impôs uma escalda da violência no Ulster e transformou o «problema irlandês» numa das grandes preocupações internacionais da época. Um problema apenas parcialmente resolvido. Basta caminhar por certas áreas de Belfast ou de Londonderry para percebê-lo sem ser preciso perguntar a alguém.
Desde há um ano sob a repressão e o silêncio impostos pela ditadura teocrática e pelos seus cúmplices de todas as convicções, caras e latitudes. Lá como ali ao lado ou aqui.
A tolerância, escreveu João Maria André em Pensamento e Afectividade, «é, evidentemente, o contrário da atitude fundamentalista e do seu projecto societal, mas pode ser, ao mesmo tempo, o espaço em que o fundamentalismo desabroche para aniquilar todas as formas de tolerância». Daqui se pode inferir que a aceitação, em nome de uma ideia de tolerância, de tudo, de todos os dogmas, de todas as fés, de todas as formas de legitimação da guerra ou da paz, apenas faz sentido se assentar em valores e experiências partilhados pelos partidários de todos esses dogmas, de todas essas fés, de todas essas formas de legitimação da guerra ou da paz. Isto é, só devemos aceitar a dissemelhança naquilo em que ela não colida com a própria noção de tolerância. Esta exprime uma firme disposição para admitir uma maneira de ser e de agir distinta da nossa, mas exclui a aceitação como única dessa maneira de ser e de agir que é distinta da nossa. É esta, em boa medida, a filosofia que preside à magnífica e corajosa intervenção de Barack Obama sobre religião e secularismo, pronunciada há perto de dois anos, que aqui se reproduz.
Foi um acto de justiça, e de uma justiça justa, a atribuição do prestigiado Prémio Príncipe das Astúrias em Letras – concedido nos últimos anos a Claudio Magris, Nélida Piñon, Paul Auster, Amos Oz, Margaret Atwood e Ismail Kadaré – ao romancista, ensaísta e antigo repórter Amin Maalouf. Todo o seu trabalho se confrontou sempre com a convergência e a complexidade dos mundos que pôde partilhar: libanês de família cristã, nascido em Beirute e criado no Egipto, viveu grande parte da vida entre muçulmanos, mas reside actualmente em Paris, tendo o árabe como língua nativa e escrevendo agora em francês. O reconhecimento internacional foi rapidamente obtido a partir de 1986 com a publicação dos seus primeiros romances históricos, de um género então considerado um tanto fora de moda. Leão, o Africano, Samarcanda, Os Jardins de Luz ou O Rochedo de Tanios, foram nessa altura, todos eles, muito elogiados e rapidamente traduzidos num grande número de línguas. Menos consensuais têm sido, porém, os ensaios de Maalouf. As Cruzadas Vistas pelos Árabes foi publicado muito cedo, em 1983, e propunha ao leitor ocidental uma representação «anti-épica» da iniciativa dos cruzados cristãos, descritos pelos muçulmanos que haviam recebido o seu agressivo impacto como invasores, cruéis e ignorantes. Como bárbaros, de facto. Uma perspectiva que agradou rapidamente a muitos leitores, críticos das leituras que permaneciam hegemónicas no Ocidente a propósito da relação entre este e um mundo islâmico observado como ninho de desprezáveis infiéis. Todavia, o consenso começou a ser rompido com a publicação de Identidades Assassinas (1998) e agora de Um Mundo Sem Regras (2009). Porquê? Os dois passos destes livros que se transcrevam definem com alguma clareza o sentido de uma possível resposta. Ao mesmo tempo que reforçam a justeza e o elevado valor simbólico do prémio agora conferido.
«Tudo o que diz respeito aos direitos fundamentais – o direito de viver como cidadão de pleno direito na terra dos seus antepassados sem sofrer perseguições ou discriminações; o direito de viver com dignidade, onde quer que alguém se encontre; o direito de escolher livremente a sua vida, os seus amores, as suas crenças, no respeito da liberdade dos outros; o direito de aceder sem entraves ao saber, à saúde, a uma vida decente e honrada – nada disto, e a lista não é restritiva, pode ser negado aos nossos semelhantes sob o pretexto de preservar uma crença, uma prática ancestral ou uma tradição. Neste domínio, será necessário inclinar-nos em direcção à universalidade, e mesmo, se necessário, em direcção à uniformidade, porque a humanidade, mesmo sendo múltipla, é, em última análise, uma só.» (As Identidades Assassinas)
«O que eu censuro hoje ao mundo árabe é a indigência da sua consciência moral; o que eu censuro ao Ocidente é a sua propensão para transformar a sua consciência moral num instrumento de dominação. Duas acusações pesadas e para mim duplamente dolorosas, mas que não posso deixar de fazer (…). No discurso de uns procurar-se-ia em vão os vestígios de uma preocupação ética ou a referência a valores universais; no discurso dos outros estas preocupações e estas referências estão omnipresentes, mas são utilizadas selectivamente e constantemente desviadas a favor de uma política. O resultado é que o Ocidente não cessa de perder a sua credibilidade moral, e os seus detractores não têm nenhuma.» (Um Mundo Sem Regras)
Acaba de sair uma compilação de textos de Yoani Sánchez, a jornalista dissidente cubana que edita o blogue Generación Y – no seu país este circula apenas em cd-rom ou pen drive – e ganhou em 2008 o prémio Ortega y Gasset concedido pelo diário El País. Cuba Livre é um testemunho expressivo do quotidiano da ilha, particularmente mordaz e convincente por mencionar detalhes que apenas pode narrar quem nela viva e nela participe dos mais elementares actos de sobrevivência, muitos deles obrigatoriamente ilegais mas imprescindíveis. Ou então quem sinta na pele a privação da liberdade, particularmente experimentada pelos que, como Yoani, se esforçam todos os dias por contorná-la e combatê-la. A páginas tantas: «Entre as melhores definições de “liberdade de expressão” conheço uma herdada de um amigo que dizia: “Um país onde uma pessoa pode parar num cruzamento e gritar ‘aqui não existe liberdade de expressão’ é exactamente um lugar onde ela existe.” Por isso tive vontade de me pôr no meio da rua e começar a dizer qualquer coisa, para demonstrar que entre nós não é possível sequer pronunciar o começo da frase.» Ou mais adiante: «Não tomaste o comprimido vermelho nem o outro azul… mas hoje levantaste-te e a realidade parece pura ficção. Reexaminas o jornal para retirares aquele sabor a falso e verificas, lendo o Granma, que o fictício foi oficialmente instituído.» Escrever e publicar textos desta natureza, que em grande parte do mundo não passariam de inocentes desabafos, representa na vida de Yoani, como na de qualquer cubano insulado com a sua atitude, um indício grave de crime ou de traição. [Yoani Sánchez, Cuba Livre. A arte de sobreviver a Fidel Castro. Trad. de Maria Irene Bigotte de Carvalho. Casa das Letras, 236 págs.]
O número de Dezembro do ano passado do Magazine Littéraire trazia consigo um dossiê evocativo dos sessenta anos transcorridos sobre a morte de George Orwell, identificando-o como «escritor e profeta político». Mas se o primeiro epíteto é irrefutável – após curta experiência como polícia colonial, Eric A. Blair viveu, de facto, apenas da escrita –, já o segundo deve ser vigorosamente questionado. Se quem escolheu o qualificativo tivesse lido a magnífica biografia política de Orwell escrita pelo historiador John Newsinger, publicada uma década antes e agora saída em edição portuguesa da Antígona, não teria sido tão impreciso. Um exame detalhado e sistemático das atitudes cívicas e das obras do escritor retira-lhes a dimensão profética e, bem pelo contrário, mostra-as sempre adequadas aos debates do tempo, influenciadas pelas sucessivas conjunturas e interagindo com elas, mesmo quando se viram envolvidas nos sinais assustadores de um futuro-presente distópico.
Porém, se estivesse vivo, Orwell não estranharia essa ténue distorção proposta pelo ML. A incompreensão, muitas vezes a pura calúnia e a completa falsificação, acompanharam não só toda a sua vida pública, como grande parte da interpretação post-mortem dos seus escritos e até de alguns gestos privados. Pelo menos desde Na Penúriaem Paris e em Londres, publicado em 1934, e sem interrupções desde aí até à actualidade, o escritor corporizou o intelectual independente de esquerda, provido de uma relutância visceral em pensar de forma dogmática, em agir contra a sua consciência por razões meramente tácticas, e, consequentemente, em aceitar a imposição de quaisquer formas de pensamento único. Como é de calcular, se tal atitude lhe angariou sempre um número apreciável de admiradores fiéis, mobilizou também uma não menor quantidade de adversários tenazes e impiedosos.
Aspectos centrais da intervenção política do autor são tratados de forma coerente e bem documentada nesta biografia, circunscrevendo em muito a margem de deturpação da qual foi sendo objecto por parte da direita liberal, da ortodoxia comunista e até de sectores do Labour, desconfiados dos seus assomos em favor dessa «revolução socialista» na qual jamais deixou de crer. De entre esses aspectos, destacam-se a irredutibilidade das posições anti-imperialistas e socialistas do autor; a profunda influência, nas suas convicções solidárias e na sua militância antitotalitária e anti-estalinista, da dura experiência como combatente republicano durante a Guerra Civil de Espanha (ferido em combate contra os nacionalistas e escapado por sorte ao fuzilamento reservado por agentes do NKVD); e a percepção de que o seu compromisso com o socialismo implicava necessariamente hostilidade para com o comunismo soviético, que considerava «uma brutal tirania mascarada de socialismo». Em 1947, a dois anos da saída de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro e a três da morte, Orwell escrevia mesmo: «convenci-me de que a destruição do mito soviético é essencial, se quisermos aspirar ao renascimento do movimento socialista». A frase explica parte substancial do seu difícil trajecto político e da sua actualidade. [John Newsinger, George Orwell. Uma Biografia Política. Trad. de Fernando Gonçalves. Antígona, 288 págs. Publicado previamente na revista LER.]
Qualquer pessoa avisada, justa, e com um sentido da História que ultrapasse o que se pode divisar apenas a dois palmos do nariz, sabe que o fim do conflito no Médio-Oriente e do confronto israelo-palestiniano passará sempre por uma solução de compromisso, com responsabilidades repartidas. A única capaz de criar condições para que um dia se possa chegar ao inevitável: uma Palestina e um Israel reencontrados e democráticos, coabitando e cooperando na construção de um futuro melhor para os seus povos e na defesa de uma paz duradoura para a região. Claro que para se chegar a tal situação está ainda quase tudo por fazer – ao fim de todas estas décadas, é verdade –, a começar pela necessidade absoluta de palestinianos e israelitas serem capazes de afastar das suas lideranças e das suas alianças de circunstância aqueles que, em nome de projectos imperiais ou de fidelidade a um deus superior, tudo fazem para impedir uma solução de aproximação que não se traduza na anulação impiedosa do outro. Será esse o primeiro passo para que se torne possível começar a lamber as feridas e iniciar a via dolorosa do tratamento de ódios tão profundos quanto compreensíveis.
O inqualificável e desnecessário acto de guerra levado a cabo pelas forças armadas de Israel contra os navios que se dirigiam a Gaza – repudiado por quase todo o mundo, se exceptuarmos os sectores da direita sionista, mas que está também a ser ampla e radicalmente contestado por uma boa parte da opinião pública israelita – apenas demonstra, uma vez mais, de que modo a porta que abrirá esse caminho permanece ainda inacessível. A situação só pode piorar, todavia, se se diabolizar um dos lados que se deseja destruído e se se considerar que do outro apenas existem legiões de inocentes. Que uns são os bons e ou outros os maus de um filme medíocre, desgastante e previsível. Que a luta não é, como de facto é – as palavras são de Amoz Oz mas poderiam ter sido de Edward Saïd – «entre quem tem razão e quem tem razão». Os assassinos sionistas e os carrascos islamitas, bem como os seus fiéis aliados de todos os quadrantes, estão bem uns para os outros: só são capazes de conceber uma paz construída sobre cinzas, vingança, morte e opressão. Penalizando severamente, afinal, os povos que declaram representar e defender.
[Rui Tavares publicou hoje um texto de opinião em boa parte no mesmo sentido deste. Ei-lo aqui.]
Esta noite sonhei com Fidel. Com um Fidel jovem que me interpelava num passeio e me perguntava simpaticamente se queria tomar com ele o café da manhã. Durante o sonho, a minha reacção foi de surpresa, mas quando acordei achei natural a aparição nocturna, uma vez que a figura do terceiro filho do Senhor Ángel Castro y Argiz, o imigrante galego, permanece, como um espinho, cravada nesse ethos da minha consciência de esquerda que é absolutamente incapaz de separar a ideia de justiça social de uma liberdade sem adjectivos. Por causa desta extravagância pessoal e da sombra deixada pelo sonho nocturno, decidi-me a ler um artigo da revista Books que tinha na pilha das leituras programadas para aquele futuro que jamais se sabe quando chegará. O autor de «La splendide illusion cubaine» é José Manuel Prieto, romancista, ensaísta e professor nascido em La Habana, que publicou em alemão um livro cujo título traduzido enche logo a boca de água: A Revolução Cubana Explicada aos Motoristas de Táxi (atenção, caros editores, a edição original é da Suhrkamp). Prieto é um emigrado – viveu muitos anos no México e ensina actualmente em Nova Iorque – mas não é um gusano cego pela raiva anticastrista. Procura compreender a revolução cubana e o estado a que esta chegou, sem por isso prever um futuro para o regime que não seja o da sua preservação – para além do inevitável desaparecimento físico dos Castros – por ainda uns quantos anos.
A sua convicção acerca da possibilidade de manutenção da Cuba «socialista» (as aspas são minhas) depende de dois factores que condicionam uma certa aceitação interna do governo e o ainda razoável prestígio internacional do regime. Um é a conservação da relação conflituosa com a América como a principal razão de ser da independência cubana ao longo de todos estes anos: sem a emanação de uma ideia de enfrentamento corajoso das iniquidades, reais ou fictícias, made in USA, há já muito tempo que Cuba se teria afundado na banalidade da pobreza generalizada (que no contexto actual é apresentada como honrada) e do bloqueio das liberdades (justificado todos os dias por uma necessidade de autodefesa). O outro factor, associado naturalmente ao primeiro, prende-se com a manutenção, devidamente apoiada numa cuidada rede de propaganda mediática de dimensões internacionais, da projecção heróica da saga cubana como um movimento de características insurrectas sem precedentes: «uma ode rebelde contra os adultos» nos anos sessenta, hoje «um país cercado» cuja dignidade não tem preço e legitima as medidas mais extremas. É isto que faz com que um abaixo-assinado há algum tempo promovido por dissidentes e que reuniu dez mil assinaturas tenha, num país com onze milhões de habitantes, sido considerado pelos círculos de oposição como uma «grande vitória». Segundo Prieto, a maioria da população permanece muito sensível à propaganda antiamericana e à retórica da valentia diante do cerco, o que se traduz na aceitação tácita de uma tirania que muitos cubanos ainda olham como uma infeliz necessidade. Mais próxima do pesadelo do que do sonho, mas por enquanto incontornável.
Um inquérito lançado pelo blogue madrileno Papeles Perdidos pretende que assumamos o lugar do redimido Guy Montag em Fahrenheit 451 e resolvamos rapidamente o seguinte dilema: «Que obra literária memorizaria para salvá-la do fogo?». Jamais se me poria o problema, uma vez que a minha capacidade mnenónica tem diminuído um tanto – longe vão os dias gloriosos nos quais encornei em 24 horas todo o Compêndio de Filosofia de J. Bonifácio Ribeiro e José da Silva «para 7º ano e aptidão a cursos superiores» – e, para além disso, a indecisão iria paralisar-me. Se quisesse armar-me em esperto poderia escolher Finnegans Wake, de Joyce, pois tal significaria que, ao ser capaz de memorizá-lo, demonstraria ter condições para memorizar muitos outros livros. Mas prefiro aplicar as energias a trabalhar nos subterrâneos para que jamais nos possamos aproximar do futuro aterrador projectado por Ray Bradbury.
Num inquérito sobre cunhas publicado hoje na revista Única do Expresso («Qual a cunha mais descarada que já lhe pediram?»), a socióloga Maria Filomena Mónica revela-nos que foi uma metida «por uma empregada doméstica» que lhe pediu ajuda para conseguir obter um alvará de taxista para o marido («pelos vistos uma preciosidade», desabafa un peu ennuyée). É nestas alturas, e perante impropérios desta magnitude, que torno a duvidar da morte anunciada da luta de classes.
Anna Walentynowycz, Proletariuszka, a «Ana Proletária», era uma mulher de estatura muito baixa. Com 51 anos, estava a começar a ganhar algum peso, mas no gigantesco Estaleiro Naval Lenine continuavam a chamar-lhe também «Mala Anna», a «Pequena Anna». Sempre cheia de energia e de trato afável, toda a gente a conhecia e era um dos operários mais populares do estaleiro. Tinha trabalhado ali durante trinta anos e estava agora a cinco meses da reforma. Tendo ficado órfã durante a ocupação da Polónia pelos nazis, tornara-se então militante comunista. O seu projecto de vida tinha sido participar na construção do socialismo e o lugar onde começou a bater-se por essa tarefa foi o Estaleiro Naval Lenine.
Era uma operária exemplar, uma soldadora que por causa da baixa estatura era enviada muitas vezes para os recantos mais difíceis e estreitos da estrutura dos navios. Em 1951, aos 29 anos era membro da Brigada de Trabalho Rosa Luxemburgo e ganhou o prémio Herói do Trabalho. Segundo o discurso de louvor, no ano anterior tinha aumentado a sua produtividade laboral em 270% («um dos momentos de que mais me orgulho na minha vida», diria muito mais tarde). Após dezasseis anos a manejar o maçarico, Anna ascendeu a uma posição mais responsável, como operadora de grua. Somente um punhado de mulheres do estaleiro – que fabricava sobretudo cargueiros para exportar para a URSS – tinha as qualificações necessárias para manobrar uma maquinaria tão cara e potencialmente perigosa.
Em 1965 foi-lhe diagnosticado um cancro e deram-lhe poucos anos de vida, mas mais tarde, depois da radioterapia, os médicos descobriram que se tinham enganado e que afinal ela sempre estivera de perfeita saúde. Ao longo de todo aquele tempo mantivera-se sempre uma operária empenhada, «patriótica e leal ao comunismo». Era tão respeitada que os colegas de trabalho começaram a consultá-la cada vez mais com problemas pessoais. Ela tentava ajudá-los de forma prática, ou então limitava-se a ouvir as suas queixas com empatia. Começou a abrir os olhos aos poucos e a aperceber-se de como a sua «nova Polónia» estava bem longe do paraíso socialista pelo qual tanto trabalhara.
Os acontecimentos precipitaram-se em 1970, quando num grosseiro erro de timing, apenas uma quinzena antes do Natal o governo aumentou em 36% os preços de alimentos básicos como a carne, o pão, o leite e os ovos. Estalaram então motins em várias cidades polacas. O mais violento foi em Gdansk, onde a polícia disparou contra manifestantes desarmados no exterior do Estaleiro Naval Lenine. Morreram ali 44 operários. Ainda assim, Anna manteve-se longe dos problemas. Porém, tal como muitos dos seus compatriotas, começou a radicalizar-se à medida que se ia inteirando da vida quotidiana na «Polónia socialista». Referia-se sempre aos operários que tinham morrido em 1970 como «mártires» e tornou-se uma das pessoas que procuravam assegurar que houvesse sempre velas e flores nas suas campas. Descobriu entretanto um esquema de extorsão que envolvia uma fraude a larga escala, da qual beneficiavam pessoalmente os dirigentes do sindicato oficial do estaleiro, naturalmente controlado pelo Partido Comunista.
No 1º de Maio de 1978 deu então o primeiro passo que a iria colocar sob a mira dos apparatchicks do Partido como um problema potencial. Juntou-se a um grupo criado nesse dia, chamado Comité Fundador para os Sindicatos Livres da Costa Báltica. Em breve este comité receberia um nome mais fácil de decorar: Solidarnosc, ou Solidariedade. Começaram a publicar um jornal, O Trabalhador Costeiro, que na primeira página da sua edição inaugural declarava o seu principal e objectivo: «Somente os sindicatos independentes, que contam com o apoio dos trabalhadores que eles representam, têm uma oportunidade para desafiar o regime. Somente eles conseguem representar um poder com o qual as autoridades terão de lidar um dia numa base de igualdade.» Anna Walentynowycz foi um dos 65 activistas que assinaram a carta de direitos do jornal no dia da sua fundação.
Anna morreu hoje, aos 80 anos, no mesmo desastre de aviação que vitimou o presidente da Polónia e um grande número de dirigentes e quadros do país. Dirigiam-se todos para Smolensk, na Rússia, com o objectivo de participarem nas cerimónias fúnebres em memória das vítimas do massacre de Katyn, ocorrido em 1941 quando a polícia secreta estalinista, o NKVD, executou mais de 20 mil oficiais polacos capturados pelo Exército Vermelho. Dela poucos falarão, mas aqui fica a lembrança.
NOTA – Parte substancial deste post foi escrita recorrendo a Revolução 1989. A Queda do Império Soviético, um livro do jornalista húngaro Victor Sebestyen editado em 2009 pela Presença.
Como fui uma das pessoas enganadas pela informação que me chegara acerca de posições públicas assumidas pelo cantor cubano Silvio Rodriguez, não posso deixar de apontar agora para o post «Diálogos Cubanos», no qual Joana Lopes oferece também alguns links que são importantes para um mais completo esclarecimento do caso.
Depois do cantautor Pablo Milanés é agora a vez de Silvio Rodriguez. Não se passa mesmo nada em Cuba para além dos murmúrios de uns quantos «mercenários do imperialismo», como se esforçam por fazer-nos acreditar os patéticos publicistas da Revolución traída e da ditadura?
Nota posterior importante – Como fui uma das pessoas enganadas pela informação que me chegara acerca da posição de Silvio Rodriguez, não posso deixar de apontar agora para o post «Diálogos Cubanos», no qual Joana Lopes oferece alguns links importantes para um mais completo esclarecimento do caso.
Os anticlericais mais impenitentes têm-se divertido bastante com a recente revelação em catadupa de casos de abuso de menores ou de práticas de exploração e comércio sexual levadas a cabo, durante décadas, por um número indeterminado mas seguramente alto de membros do clero católico. Claro que, neste como noutros casos ocorridos com a Igreja romana, a procissão jamais sairá do adro. Ao longo de séculos, a sexualidade ínvia determinada pelos Padres da Igreja, que encaravam o sexo como um mal necessário, apenas admissível por ser indispensável à reprodução da espécie, bem como a prática compulsória do celibato, ambas associadas a posições de poder e de influência sobre pessoas, terão contribuído para atribuir a tais práticas uma natureza inevitavelmente endémica e continuada da qual jamais será possível conhecer a verdadeira dimensão. No entanto, nem todos os casos podem ser avaliados do mesmo modo: uma coisa são os abusos, desejavelmente denunciados e eventualmente punidos, outra são as legítimas escolhas de cada um daqueles homens e daquelas mulheres para viverem a sexualidade que jamais deixaram de possuir. O que não está a ser devidamente realçado é, por isso, a dimensão de hipocrisia que preside à convivência entre este tipo de situações e a atitude formal da suprema hierarquia da Igreja católica: existem com toda a certeza dramas intensos de infelicidade e de solidão, vividos por pessoas obrigadas a habitar uma vida inteira com os seus fantasmas e as suas secretas fantasias, das quais Roma e os seus representantes jamais falarão com clareza e verdadeiro arrependimento.
Um novo abaixo-assinado, desta vez massivo e global, de protesto pela morte de Orlando Zapata Tamayo e pela libertação dos prisioneiros políticos em Cuba. Onde, é preciso não esquecer, estes possuem o estatuto particularmente cruel e humilhante de criminosos de delito comum. Pode ser assinado AQUI. Notícias sobre a campanha em curso aqui.