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Próxima estação: Portugal?

Greece

Um fragmento da crónica de Clara Ferreira Alves – «Agora, estamos a enlouquecer» – saída hoje no suplemento Única do semanário Expresso. Não sei se o mail do amigo grego que cita é verdadeiro ou um mero artifício de cronista. Não importa, pois num caso ou no outro ele é demasiado real, confrontando-nos com um clima geral de desesperança, depressão e raiva que não augura nada de bom. Principalmente se as tentativas para encontrar uma saída continuarem a ser conjunturais, sem tino e sem norte. Desculpem se vos estrago o sábado.

«O que está a matar a Grécia é a incerteza, com a incerteza ninguém põe aqui um tostão. Querem que privatizemos mas quando privatizamos quem é que vai investir num país que é considerado, diariamente, perdido? As notícias sobre a Grécia matam a Grécia, os alemães ajudaram a matar a Grécia. Como querem que um devedor pague a dívida depois de estar morto? Quando nos emprestaram dinheiro ninguém quis saber se o íamos pagar. Ninguém. Toda a gente fingiu que não viu o que se estava a passar, a corrupção, os partidos a contratar as clientelas, as contas aldrabadas. Vir dizer que foram apanhados de surpresa, os devedores, é uma colossal mentira. Os gregos sabiam, os bancos sabiam, toda a gente sabia, e toda a gente ganhava dinheiro à custa disso. Esperar que um povo se reforme de um dia para o outro é um erro. Tempo é do que precisamos mais, e ninguém nos dá». E o pior de tudo? O que é que a crise faz às pessoas? «O pior é a tristeza. Depois da indignação e da raiva desce a tristeza. Em Atenas a tristeza é uma coisa espessa, uma escuridão que não levanta. As famílias zangam-se, os casais separam-se, os amigos desconversam, a existência torna-se impossível quando nada funciona, quando não há dinheiro. Atenas vive em estado de terror e protesto. Era uma cidade alegre, é uma cidade desavinda. É como se a vida tivesse sido sugada das ruas e as ruas servem para a batalha campal. Pessoas que viviam bem agora contam os tostões para comer amanhã. As pessoas estão a perder as casas, a comida, as escolas dos filhos. Nem a emigração nos ajuda, porque ser-se grego nos tempos que correm é uma maldição. O grego tornou-se a escória da humanidade, o símbolo de tudo o que está errado como mundo financeiro e a Europa. Ninguém nos quer, só querem as nossas ilhas e a posição no Mediterrâneo. E cresce o sentimento antialemão. Coisas do tempo da guerra vêm ao de cima, rancores, ódios, vinganças. Nunca mais vamos recuperar dos danos morais desta crise. Nunca. Uma parte de nós já morreu. Estamos num comboio descontrolado. A Grécia era a última estação. Já passámos».

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    Tintim no Congo e a dentada na maçã

    Tintim no Congo

    Discordo em absoluto da tentativa de proibição a decorrer na Bélgica de Tintim no Congo, o segundo livro de banda desenhada de Hergé. O motivo invocado é a perspetiva, próxima dos estereótipos eurocêntricos e racistas da África e dos seus naturais não-caucasianos, que em 1931, quando o álbum foi editado pela primeira vez, dominava a maior parte do hemisfério norte. Sob este aspeto, o livro incomoda, sem dúvida, mas não menos que milhares de outros, fáceis de encontrar em bibliotecas e livrarias, contendo representações e ideias que podemos abominar mas não devemos apagar, pois fazem parte do património coletivo e servem até para mostrar, por oposição, aquilo que consideramos detestável e merece, muitas vezes, ser conhecido para ser lido criticamente. Neste caso, aliás, o próprio Hergé (1907-1983) veio a reconhecer que na altura da criação da aventura congolesa do jovem repórter belga, tal como acontecera com o também polémico Tintim no País dos Sovietes, vivia num ambiente no qual o preconceito e a recusa da diferença eram a norma: «Era 1930. Conhecia desse país apenas o que as pessoas contavam na época: ‘os negros são grandes crianças, felizmente estamos lá!’, etc. E desenhei os africanos de acordo com esses critérios, de puro espírito paternalista, que era o da época na Bélgica». (mais…)

      Democracia, Memória

      O Queer Lisboa e Israel

      lbgtisrael

      O mínimo que se pode dizer da decisão da organização do Queer Lisboa 15, o festival de cinema gay e lésbico já a decorrer neste fim de semana, no sentido de, por pressão do movimento Panteras Rosa e do Comité de Solidariedade para com a Palestina, se recusar a ter entre os apoiantes a Embaixada de Israel – à qual, como é óbvio, havia previamente pedido o apoio que agora declinou – é que se trata de um gesto deplorável. Por certo que um eventual apoio das embaixadas da França ou da Itália, cujos governantes não são propriamente defensores das causas dos povos ou das minorias, não seria posto em causa. E sabendo que, por muito que a política externa e interna israelita seja agressiva e injusta, e (sublinhe-se) neste momento é-o de facto, tal não invalida que Israel seja um país onde se realizam eleições livres, onde se exerce uma mais do que razoável liberdade de expressão, onde os movimentos LBGT são fortes e livres de atuarem, e onde existe até uma oposição cada vez mais visível que se bate por uma sociedade mais justa e multiétnica. Coisa que, como é sabido, nem mesmo após as recentes «primaveras árabes» está minimamente garantido na generalidade dos Estados vizinhos, onde gays e lésbicas são brutalmente perseguidos pelo facto de o serem. A única explicação é, a meu ver, um não-assumido antissemitismo (e antissionismo) que culpa Israel por existir. Não-assumido, repito, o que piora as coisas.

        Atualidade, Democracia, Opinião

        A comida rápida e a fome

        fast food

        Se não trabalhar no ramo ou tiver alguém na família que o faça, ninguém no seu perfeito juízo defenderá a fast-food. Os hambúrgueres feitos de sabe-lá-deus-o-quê, os pedaços de frango subnutrido, as batatas fritas em óleo reciclado, os condimentos químicos untuosos e coloridos, o sal sempre em demasia, as bebidas ultra-açucaradas. Tudo, já se sabe, veneno para as pessoas normais e para as outras também. Claro que a slow-food da rua ao lado, se descontarmos alguns exageros puristas com os condimentos, é muito melhor. Mas a primeira é razoavelmente barata e adaptada ao ritmo da nossa vida intensa, enquanto a segunda requer mais tempo e quase sempre mais dinheiro. Sei através dos suplementos de fim de semana, das sugestões da nutricionista e das ameaças do médico que devemos evitar a rápida. E tento sempre fazê-lo. Mas para muitas pessoas com a carteira vazia e sem lugar ou tempo para cozinharem não existe alternativa, e é com ela que de vez em quando a dieta alimentar se equilibra um pouco.

        Quando fui bolseiro durante uns meses de inverno na Paris do início dos anos noventa, recordo-me bem, só a McDonald’s, a Burger King ou a KFC me salvaram da miséria alimentar. O mesmo aconteceu em algumas viagens fora de portas, como sempre com o orçamento no limite. Não seria dos mais desgraçados – como Orwell, que na miséria de Londres ainda tinha, sabia que tinha, a alternativa de recorrer aos amigos ou à família – mas todos os dias comia ao lado de centenas de pessoas visivelmente pobres que ali iam para se aquecerem e contornarem a fome com algumas proteínas e os hidratos de carbono que o corpo pedia. Taxar fortemente a comida rápida, como acaba de sugerir o bastonário da Ordem dos Médicos, é proposta cega e precipitada que retiraria outra talhada à parca dieta alimentar de muitos, cada vez mais, dos cidadãos que menos têm e mais precisam. Logo agora que a fast-soup está a ter mais saída.

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          Erva no asfalto

          London 2011

          Com uma vocação natural para tomar o partido dos mais fracos, tenho dificuldade em orientar-me quando tento perceber de que lado estão os bons e os maus nos motins que incendeiam a periferia de Londres e de outras cidades inglesas. Mas porque a vontade de justiça não é impeditiva de pensar um pouco, contorno a perspectiva simplista que tende a explicar o que está a acontecer desculpabilizando «os miúdos» bons – que por impulso partem, batem, queimam ou roubam – e apontando o dedo acusador apenas ao «sistema» mau, que os remete sem remissão para essa fila do fundo de onde procede a revolta.

          Existe, claro, um ambiente de injustiça social que empurra aqueles rapazes – quase só rapazes, já repararam? – para a ira desmedida e sem desígnio perceptível. Como existe o problema dos lojistas remediados, dos trabalhadores anónimos, dos imigrantes à procura da sobrevivência, que vêm o seu ganha-pão e os seus pertences volatilizados por pessoas das quais se distinguem apenas pelo facto de possuírem um trabalho, um pequeno negócio, acesso a uma vida sóbria mas digna. Não pode excluir-se, evidentemente, a teoria do sintoma, que nos fala sempre do fumo que nasce do fogo, que insiste em que a revolta resulta do medo de um futuro que não pode ser vislumbrado com esperança. Como também não pode esquecer-se o efeito de imitação, que transforma a violência gratuita em exemplo a copiar. Ocorre aqui, de facto, uma «culpa sistémica», partihada, provocada por políticas que empurram tantos jovens para a falta de perspectivas, a miséria material, o bloqueio moral, o desrespeito do outro.

          Mas existe também uma outra qualidade de culpa que deve ser imputada aos governos, aos partidos que disputam o poder, ao sistema escolar, até aos sindicatos, que, predominantemente preocupados com quem consome, com quem vota, com quem trabalha ou está em vias de o fazer, com quem paga impostos e por isso «conta», se têm muitas vezes esquecido dos marginados, dos precários, dos imigrantes, dos excluídos, principalmente jovens, que têm crescido sozinhos, à toa, «fechados na rua», como uma erva daninha, sem que ninguém se preocupe muito com ela enquanto não começar a invadir o asfalto. Foi isto, parece, que agora aconteceu. E da pior forma possível.

            Atualidade, Democracia, Opinião

            O ruído do silêncio

            rua israelita

            Não é apenas por ser Verão e o número de cidadãos alheados dos infortúnios do mundo aumentar sempre com os calores da estação. Também nos meios habitualmente activos e interessados na mudança parece existir um pacto de silêncio em relação ao que está a acontecer agora mesmo em dois Estados do Oriente Médio. Na Síria, as cidades são bombardeadas sistematicamente pelo exército enquanto os manifestantes pró-democracia, presos, torturados ou simplesmente assassinados – «financiados pela CIA», bradam os mensageiros do costume – esperam em vão por iniciativas diplomáticas que ninguém toma. Fica assim o tirano Assad com as mãos livres para fazer o que bem lhe apetece. Uma boa prova de que do «não-intervencionsimo absoluto» pode resultar uma efectiva cumplicidade com o crime mais ignóbil. Em Israel, manifestações com uma dimensão sem precedentes questionam na rua as políticas sociais do governo, mas a solidariedade de quem do lado de cá se bate por idênticas causas permanece muda, queda e invisível. Outra prova de que do «anti-semitismo primário» facilmente pode resultar uma grande capacidade para confundir o justo com o injusto. Em ambos os casos, o activismo selectivo, mais preocupado com os meandros da política interna e os equilíbrios geoestratégicos, com o que importa invocar e o que interessa calar, do que com a vida efectiva das pessoas concretas, convive pacificamente com a iniquidade. Cala e por isso consente.

              Apontamentos, Atualidade, Democracia

              O país sem luz

              Coreia do Norte

              Em 2010 a jornalista Barbara Demick, que já havia sido premiada por Logavina Street (1996), uma corajosa e emocionante cobertura do cerco de Sarajevo (1992-1996), ganhou o Prémio Samuel Johnson de não-ficção com o livro Nothing to Envy: Ordinary Lives in North Korea. Demick segue aí o percurso de seis cidadãos norte-coreanos: dois namorados que durante mais de uma década tiveram medo de contar um ao outro a sua recusa do regime; um jovem sem-abrigo; uma médica um tanto idealista; uma operária que ama Kim Il Sung mais do que a sua própria família; e a sua filha rebelde. Apesar das enormes limitações que precisou enfrentar para fazer o seu trabalho, procurou compreender os mecanismos de sobrevivência, de aceitação ou de resistência, de pessoas comuns vivendo sob um regime totalitário que proíbe Gone with the Wind por considerar o enredo subversivo, que controla a informação e as comunicações de maneira absolutamente férrea mantendo-se o único país do mundo sem Internet, e que durante as manifestações de apoio ao regime fotografa as expressões dos cidadãos para aferir da sua fidelidade. O livro acaba de sair em edição portuguesa com o título A Longa Noite de um Povo. A vida na Coreia do Norte (Temas e Debates/Círculo de Leitores), e começa assim: «Se olharmos para uma fotografia de satélite do Extremo Oriente, à noite, vemos uma grande mancha a que, curiosamente, falta luz. Essa área de escuridão é a República Popular Democrática da Coreia.» Quanto às pessoas que habitam esse mundo com a iluminação pública em ruínas regido por um governo despótico e brutal, delas diz a jornalista que «talvez não estejam à espera de nada em particular, apenas à espera de que algo mude.»

                Atualidade, Democracia

                Luta pelo socialismo ou combate pela democracia?

                BSS

                Durante um entrevista concedida neste sábado, dia 18 de Junho, à Antena 1, Boaventura de Sousa Santos fez algumas considerações de um enorme interesse sobre os objectivos e reorganização da esquerda, justificando a maior atenção de quem, dentro deste campo, procure verdadeiramente uma maneira de sair do actual impasse que não seja a da habitual e suicidária fuga para a frente. Depois de afirmar que agora «a esquerda tem que se repensar muito», ou mesmo «completamente», Boaventura recorda que a «esquerda à esquerda», na qual engloba o Bloco e o PCP, foram construídos e conservam-se dentro de um imaginário fundado no princípio de acordo com o qual «a luta é uma luta anticapitalista», tendo o socialismo como horizonte único. Aceita, evidentemente, que este horizonte existe e continuará a existir durante muito tempo, «enquanto houver capitalismo», mas enfatiza que «neste momento a questão fundamental não é o capitalismo, é a democracia». Insistindo em que «o que está em causa é a sobrevivência da democracia». Daí que «das duas uma: ou esta esquerda quer participar na defesa desta democracia, ou não quer participar.». Precisa escolher. Boaventura entende também que o carácter imperativo de tal escolha se aplica a ambos os partidos, mas considera que aquele que está em condições de defrontar mais rapidamente este problema é o BE, uma vez que o Partido Comunista existe ainda, fundamentalmente, como força de protesto, enquanto o Bloco pode desenvolver-se na perspectiva de vir a participar «num arco de governabilidade» – obviamente assente em princípios – destinado em primeiro lugar a defender os valores essenciais, que são também sociais, do Estado democrático. A entrevista encontra-se aqui.

                  Atualidade, Democracia, Opinião

                  Elena Bonner

                  Andrei e Elena

                  Desapareceu este sábado em Boston, aos 88, a antiga dissidente soviética Elena Bonner (1923-2011), viúva do físico nuclear e dissidente soviético Andrei Sakharov. Durante os anos cinzentos de Brejnev, muitos se habituaram a vê-la sempre ao lado de Andrei na denúncia comum da corrida ao armamento, da manutenção dos campos do Gulag, da perseguição dos dissidentes. Dado o prestígio internacional do marido, que o protegia um pouco dos excessos da repressão, foi muitas vezes Elena quem mais directamente sofreu com os ataques do KGB motivados pela atitude partilhada de enfrentamento do regime. As autoridades, a sua polícia e os seus porta-vozes gostavam de destacar as suas origens judaicas para acusá-la de estar a serviço de potências estrangeiras e de ter desviado Shakarov – Prémio Estaline de 1954, Prémio Lenine de 1956 e antigo membro da Academia das Ciências da União Soviética – «do bom caminho».

                  Em 1938, na época da mais intensa repressão, Elena vira o pai ser fuzilado e a mãe condenada a oito anos de trabalhos forçados. Ainda assim aderiu ao Partido Comunista, abandonando-o apenas em 1968, quando da invasão soviética da Checoslováquia. Durante a década de 1970 participou em protestos contra as detenções em massa de outros dissidentes, tornando-se numa fonte vital de informações sobre o destino dos detidos e exilados. Viria a receber em Oslo o Nobel da Paz de 1975 concedido ao marido, após Sakharov ter sido proibido de viajar para o estrangeiro. Confinado este, em 1980, à cidade Gorki, a actual Nizhny Novgorod, por protestar contra a invasão soviética ao Afeganistão, Elena tornou-se então no seu único vínculo com o exterior, até que em 1984 foi também ela condenada a cinco anos de exílio interno em Gorki por ter «divulgado sistematicamente informações caluniosas sobre a União Soviética». Depois do fim da URSS, Bonner participou de importantes organizações de defesa dos direitos humanos, tornando-se numa ardente opositora de Vladimir Putin. Até ontem de manhã.

                    Democracia, História, Memória

                    Árabes e helicópteros

                    Síria

                    Não sei se é por agora estarmos tão preocupados connosco, com o nosso emprego e com o vazio do nosso porta-moedas, que os árabes voltam a parecer-nos mais estranhos, mais distantes. Ou então se será por causa de vermos os helicópteros de Sarkozy e de Cameron a lançarem rockets sobre as posições de Khadaffi. Pode ser também porque o Avante! não se esqueceu de «informar» que por trás dos levantamentos populares na Síria está tão-somente a CIA em todo o seu esplendor. Ou então porque Bashar al-Assad ainda há pouco mimava com desembaraço o papel sinistro, mas popular na imprensa cor-de-rosa ocidental, de príncipe encantado. A verdade é que os acontecimentos libertadores de Tunes e do Cairo já vão longe e aquilo que está agora mesmo a acontecer na Líbia ou na Síria, com o exército a lançar os tanques contra cidades inteiras ou sobre caravanas erráticas de refugiados, quase não tem lugar nos nossos jornais e televisões, para não falar no discurso autocentrado de uma classe política sem rasgo e uma perspectiva do mundo para além dos arrabaldes de Badajoz. No Facebook, entretanto, até os profissionais das causas parecem acreditar que por ali no pasa nada. Ou de que, se algo está a acontecer, esse algo não terá seguramente muito a ver connosco. Envolve-nos um silêncio comprometedor a propósito dos sinais bem visíveis e muito preocupantes de esmagamento da revolta árabe.

                      Apontamentos, Atualidade, Democracia

                      Jorge e o espírito de Buchenwald

                      Jorge Semprún

                      Chegou a vez de Jorge, Jorge Semprún (1923-2011). A Wikipédia regista-o como «escritor, intelectual, político e guionista cinematográfico». Foi tudo isso, sem dúvida, mas para várias gerações de antifascistas e de democratas europeus foi principalmente o exilado da Guerra Civil, o resistente torturado transformado no prisioneiro 44.904 do campo nazi de Buchenwald, o dirigente comunista dedicado, expulso do Partido em 1964 por divergências políticas com Dolores Ibarruri e Santiago Carrillo, e o activo e independente ministro da Cultura de Felipe González. Como escreve o El País no seu obituário, «construiu a sua obra literária com os fragmentos da sua própria memória e nela reside, por isso, a recordação dos factos e dos sentimentos de uma vida marcada a fogo por todas as barbáries modernas.» De si próprio disse Semprún em Adiós, luz de veranos…, parafraseando Baudelaire, «tenho mais recordações do que se tivesse mil anos». Há três dias, na última colaboração que enviou para o diário madrileno onde escrevia habitualmente, recordou a última viagem a Buchenwald, realizada havia pouco mais de um mês, já em precárias condições de saúde e sabendo por isso ser a derradeira: «Ahí, en un antiguo campo de concentración nazi convertido en prisión estalinista, es donde debemos celebrar la Europa democrática. Contra todas las amnesias.»

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                        Feminismos em Portugal

                        feminismos

                        Uma ideia disseminada considera que o percurso dos feminismos, ou pelo menos o da sua presença visível e com impacto público, é em Portugal relativamente recente, circunscrito às duas últimas décadas do regime democrático. Feminismos – Percursos e desafios, um livro de Manuela Tavares publicado há poucos meses, vem provar o equívoco desse juízo injusto e apressado, mostrando, precisamente em sentido contrário, que o rasto dos movimentos promotores dos direitos das mulheres é afinal razoavelmente dilatado e tem uma agenda própria. Duas das razões que determinaram esse erro de perspectiva são anotadas logo no início da obra: de um lado, a possante influência do regime autoritário do Estado Novo, vinculado a «uma ideologia de submissão das mulheres» que silenciou as ténues mas reais posições de natureza emancipatória projectadas durante a Primeira República; do outro, o peso do «pensamento dogmático das esquerdas políticas», que não souberam «captar a dimensão plural dos feminismos» e aquilo a que a autora chama «as contradições de género na sociedade», sistematicamente subsumidas na lógica da unidade na acção. (mais…)

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                          Contra e por

                          Stéphane Hessel

                          Indignai-vos!, o livro-libelo de Stéphane Hessel, tem servido para defender que a mudança de um real injusto, tantas vezes imposto como inevitável, começa pela capacidade de nos indignarmos perante os poderes que o determinam, rebelando-nos contra eles. E tem servido também para municiar uma insurreição pacífica contra as vozes «que só apresentam como horizonte à nossa juventude uma sociedade de consumo, o desprezo pelos mais fracos e pela cultura, a amnésia generalizada e a competição renhida de todos contra todos». Hessel, hiperactivo aos 93, acaba entretanto de publicar um novo livro, Engagez-vous! (Comprometei-vos!), constituído por uma conversa com o diplomata Gilles Vanderpooten ao longo da qual menciona o beco sem saída no qual pode cair a indignação pela indignação. Defende que esta deve unir-se obrigatoriamente a uma noção de compromisso, de empenhamento para produzir algo de concreto, de objectivo, superando a pura negação através de propostas capazes de unirem e de estimularem uma mudança consistente. «Enfadar-se apenas», diz Hessel numa entrevista ao El País, «não tem sentido para mim», acrescentado que a pura ira «não conduz a parte alguma, deve ser seguida de compromisso.» Uma sugestão vinda de quem anda há quase oito décadas envolvido no combate político e social e claramente dirigida a quem se aplica, criando condições para o rápido retrocesso e a depressão pós-revolta, a indignar-se sem apresentar propostas consistentes e sem dialogar com quem é possível dialogar, de modo a gerar as empatias que autorizam a verdadeira mudança. Um aviso para quem se preocupa principalmente com o «contra», descurando o «por». A indignação pura que leva ao protesto – vemo-lo claramente por estes dias, como há muito não acontecia –  é por vezes urgente, dramática, imperativa, mas não pode ser um fim em si. Sob pena de se autodestruir e de levar consigo aqueles que lhe dão a voz.

                          Bónus: 5 minutos de conversa com Stéphane Hessel

                            Atualidade, Democracia, Opinião

                            Duzentos mil

                            Coreia do Norte

                            Como motivo de apreensão, sabemos que não é esta de momento a nossa prioridade. Mas se quisermos – como o provaram, no limite, as atitudes corajosas de tantas vítimas e sobreviventes dos campos de concentração ou extermínio – mesmo nas piores condições pode e deve criar-se um espaço destinado impedir que as desgraças dos outros sejam vividas num silêncio que só as agrava. Quando pouco ou nada podemos fazer para as minorar, podemos, pelo menos, tudo fazer para que esse sofrimento possa ter algum sentido. Por isso, e de acordo com um extenso relatório divulgado há dias pela Amnistia Internacional, não pode passar em claro que os campos de presos políticos da Coreia do Norte são afinal ainda maiores e piores do que até há pouco se pensava, contando nesta altura com cerca de 200 mil pessoas detidas.

                            Sucedem-se as execuções, o trabalho escravo tornou-se a regra, a tortura e a fome são uma constante. A Amnistia teve acesso a imagens de satélite que conseguem determinar a localização e o tamanho dos campos de prisioneiros políticos, tendo reunido também testemunhos de antigos detidos e de ex-guardas prisionais. Estes permitiram traçar um quadro negro e muito preocupante das condições de vida nesses campos. É possível que o aumento das prisões esteja relacionado com a tentativa de impedir perturbações numa altura em que aparentemente se assiste a uma transferência de poder em Pyongyang. Mas nada do que se passa é aceitável ou justifica, como tantas vezes se passa deste lado do planeta, que continue a praticar-se o crime de omissão.

                            Pode entretanto, assinar aqui, uma petição pedindo o encerramento do campo da Yodok, o maior e sem dúvida um dos piores.

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                              O inevitável é inviável

                              Não se trata de um programa para a acção, mas sim de uma declaração de princípios. Isso faz toda a diferença e torna este manifesto particularmente importante.

                              Manifesto dos 74 nascidos depois de 74

                              Somos cidadãos e cidadãs nascidos depois do 25 de Abril de 1974. Crescemos com a consciência de que as conquistas democráticas e os mais básicos direitos de cidadania são filhos directos desse momento histórico. Soubemos resistir ao derrotismo cínico, mesmo quando os factos pareciam querer lutar contra nós: quando o então primeiro-ministro Cavaco Silva recusava uma pensão ao capitão de Abril, Salgueiro Maia, e a concedia a torturadores da PIDE/DGS; quando um governo decidia comemorar Abril como uma «evolução», colocando o «R» no caixote de lixo da História; quando víamos figuras políticas e militares tomar a revolução do 25 de Abril como um património seu. Soubemos permanecer alinhados com a sabedoria da esperança, porque sem ela a democracia não tem alma nem futuro.

                              O momento crítico que o país atravessa tem vindo a ser aproveitado para promover uma erosão preocupante da herança material e simbólica construída em torno do 25 de Abril. Não o afirmamos por saudosismo bacoco ou por populismo de circunstância. Se não é de agora o ataque a algumas conquistas que fizeram de nós um país mais justo, mais livre e menos desigual, a ofensiva que se prepara – com a cobertura do Fundo Monetário Internacional e a acção diligente do «grande centro» ideológico – pode significar um retrocesso sério, inédito e porventura irreversível. Entendemos, por isso, que é altura de erguermos a nossa voz. Amanhã pode ser tarde. (mais…)

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                                O caso Weiwei

                                Ai Weiwei, o mestre-escultor das sementes de girassol em porcelana que é possível esmagar com os pés, o importante artista, filósofo e activista dos direitos humanos, foi preso este fim-de-semana em Pequim quando se preparava para viajar até Hong-Kong. Na mesma altura foram também detidos diversos colaboradores seus. Neste momento as autoridades da República Popular da China mantêm Weiwei incontactável.

                                Uma petição exigindo a sua libertação pode ser assinada aqui. Imagens de algumas das suas obras podem ser vistas neste slideshow.

                                  Apontamentos, Artes, Atualidade, Democracia

                                  Indignar-se

                                  Stéphane Hessel

                                  Custa pouco mais do que um maço de cigarros o livro de Stéphane Hessel, best-seller em França, que chegou agora às nossas livrarias. Indignai-vos! é a declaração de um imperativo, escrita por alguém que tem suficiente autoridade moral para o fazer: aos 93, herói da Resistência francesa, sobrevivente dos campos de concentração nazis e um dos redactores da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o autor continua lúcido e tão atento aos motivos para a indignação do nosso tempo quanto aos dos anos durante os quais, em vez de se calar, de pactuar, de desistir, arriscou a vida por causas imprescindíveis.

                                  Alguns destes motivos são colocados pela necessidade de resistência à barragem de informação que se tem esforçado por fazer-nos acreditar não existirem alternativas ao mundo no qual vivemos: «Ousam dizer-nos que o Estado já não consegue suportar os custos das medidas sociais. Mas como é possível que actualmente não tenha verbas para manter e prolongar estas conquistas, quando a produção de riquezas aumentou consideravelmente desde a Libertação, quando a Europa estava arruinada?» Tal é possível, conclui, «apenas porque o poder do capital nunca foi tão grande, insolente, egoísta, com servidores próprios até nas mais altas esferas do Estado.» E continua: «Os bancos, agora privatizados, preocupam-se principalmente com os seus dividendos e com os elevadíssimos salários dos seus administradores, e não com o interesse geral. O fosso entre os mais pobres e os mais ricos nunca foi tão grande, a competição nunca foi tão incentivada.»

                                  A fantasia segundo a qual não é possível actuar contra esta situação de desigualdade tem no entanto os seus agentes, responsáveis directos pelo disseminar de uma convicção de que as coisas «são como são» e de que o que há a fazer é cada um tentar arranjar maneira de passar à frente dos outros. O antigo resistente propõe então «uma verdadeira insurreição pacífica contra os meios de comunicação de massas que só apresentam como horizonte à nossa juventude uma sociedade de consumo, o desprezo pelos mais fracos e pela cultura, a amnésia generalizada e a competição renhida de todos contra todos.» Por isso, mesmo no coração das democracias – onde não é preciso atirar pedras ou pegar em armas para fruir do direito à palavra – indignar-se é preciso. Desde logo contra esta ditadura da inevitabilidade, responsável pela disseminação sedativa do princípio da desigualdade «natural». Foi isto que, ao aproximar-se do final da vida, Hessel sentiu que ainda era importante dizer. «A todos aqueles e aquelas que irão fazer o século XXI.»

                                  Stéphane Hessel, Indignai-vos! Objectiva. Prefácio de Mário Soares. Trad. Paula Centeno. 52 págs.

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