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Contra e por

Stéphane Hessel

Indignai-vos!, o livro-libelo de Stéphane Hessel, tem servido para defender que a mudança de um real injusto, tantas vezes imposto como inevitável, começa pela capacidade de nos indignarmos perante os poderes que o determinam, rebelando-nos contra eles. E tem servido também para municiar uma insurreição pacífica contra as vozes «que só apresentam como horizonte à nossa juventude uma sociedade de consumo, o desprezo pelos mais fracos e pela cultura, a amnésia generalizada e a competição renhida de todos contra todos». Hessel, hiperactivo aos 93, acaba entretanto de publicar um novo livro, Engagez-vous! (Comprometei-vos!), constituído por uma conversa com o diplomata Gilles Vanderpooten ao longo da qual menciona o beco sem saída no qual pode cair a indignação pela indignação. Defende que esta deve unir-se obrigatoriamente a uma noção de compromisso, de empenhamento para produzir algo de concreto, de objectivo, superando a pura negação através de propostas capazes de unirem e de estimularem uma mudança consistente. «Enfadar-se apenas», diz Hessel numa entrevista ao El País, «não tem sentido para mim», acrescentado que a pura ira «não conduz a parte alguma, deve ser seguida de compromisso.» Uma sugestão vinda de quem anda há quase oito décadas envolvido no combate político e social e claramente dirigida a quem se aplica, criando condições para o rápido retrocesso e a depressão pós-revolta, a indignar-se sem apresentar propostas consistentes e sem dialogar com quem é possível dialogar, de modo a gerar as empatias que autorizam a verdadeira mudança. Um aviso para quem se preocupa principalmente com o «contra», descurando o «por». A indignação pura que leva ao protesto – vemo-lo claramente por estes dias, como há muito não acontecia –  é por vezes urgente, dramática, imperativa, mas não pode ser um fim em si. Sob pena de se autodestruir e de levar consigo aqueles que lhe dão a voz.

Bónus: 5 minutos de conversa com Stéphane Hessel

    Atualidade, Democracia, Opinião

    Duzentos mil

    Coreia do Norte

    Como motivo de apreensão, sabemos que não é esta de momento a nossa prioridade. Mas se quisermos – como o provaram, no limite, as atitudes corajosas de tantas vítimas e sobreviventes dos campos de concentração ou extermínio – mesmo nas piores condições pode e deve criar-se um espaço destinado impedir que as desgraças dos outros sejam vividas num silêncio que só as agrava. Quando pouco ou nada podemos fazer para as minorar, podemos, pelo menos, tudo fazer para que esse sofrimento possa ter algum sentido. Por isso, e de acordo com um extenso relatório divulgado há dias pela Amnistia Internacional, não pode passar em claro que os campos de presos políticos da Coreia do Norte são afinal ainda maiores e piores do que até há pouco se pensava, contando nesta altura com cerca de 200 mil pessoas detidas.

    Sucedem-se as execuções, o trabalho escravo tornou-se a regra, a tortura e a fome são uma constante. A Amnistia teve acesso a imagens de satélite que conseguem determinar a localização e o tamanho dos campos de prisioneiros políticos, tendo reunido também testemunhos de antigos detidos e de ex-guardas prisionais. Estes permitiram traçar um quadro negro e muito preocupante das condições de vida nesses campos. É possível que o aumento das prisões esteja relacionado com a tentativa de impedir perturbações numa altura em que aparentemente se assiste a uma transferência de poder em Pyongyang. Mas nada do que se passa é aceitável ou justifica, como tantas vezes se passa deste lado do planeta, que continue a praticar-se o crime de omissão.

    Pode entretanto, assinar aqui, uma petição pedindo o encerramento do campo da Yodok, o maior e sem dúvida um dos piores.

      Atualidade, Democracia, Olhares

      O inevitável é inviável

      Não se trata de um programa para a acção, mas sim de uma declaração de princípios. Isso faz toda a diferença e torna este manifesto particularmente importante.

      Manifesto dos 74 nascidos depois de 74

      Somos cidadãos e cidadãs nascidos depois do 25 de Abril de 1974. Crescemos com a consciência de que as conquistas democráticas e os mais básicos direitos de cidadania são filhos directos desse momento histórico. Soubemos resistir ao derrotismo cínico, mesmo quando os factos pareciam querer lutar contra nós: quando o então primeiro-ministro Cavaco Silva recusava uma pensão ao capitão de Abril, Salgueiro Maia, e a concedia a torturadores da PIDE/DGS; quando um governo decidia comemorar Abril como uma «evolução», colocando o «R» no caixote de lixo da História; quando víamos figuras políticas e militares tomar a revolução do 25 de Abril como um património seu. Soubemos permanecer alinhados com a sabedoria da esperança, porque sem ela a democracia não tem alma nem futuro.

      O momento crítico que o país atravessa tem vindo a ser aproveitado para promover uma erosão preocupante da herança material e simbólica construída em torno do 25 de Abril. Não o afirmamos por saudosismo bacoco ou por populismo de circunstância. Se não é de agora o ataque a algumas conquistas que fizeram de nós um país mais justo, mais livre e menos desigual, a ofensiva que se prepara – com a cobertura do Fundo Monetário Internacional e a acção diligente do «grande centro» ideológico – pode significar um retrocesso sério, inédito e porventura irreversível. Entendemos, por isso, que é altura de erguermos a nossa voz. Amanhã pode ser tarde. (mais…)

        Atualidade, Democracia

        O caso Weiwei

        Ai Weiwei, o mestre-escultor das sementes de girassol em porcelana que é possível esmagar com os pés, o importante artista, filósofo e activista dos direitos humanos, foi preso este fim-de-semana em Pequim quando se preparava para viajar até Hong-Kong. Na mesma altura foram também detidos diversos colaboradores seus. Neste momento as autoridades da República Popular da China mantêm Weiwei incontactável.

        Uma petição exigindo a sua libertação pode ser assinada aqui. Imagens de algumas das suas obras podem ser vistas neste slideshow.

          Apontamentos, Artes, Atualidade, Democracia

          Indignar-se

          Stéphane Hessel

          Custa pouco mais do que um maço de cigarros o livro de Stéphane Hessel, best-seller em França, que chegou agora às nossas livrarias. Indignai-vos! é a declaração de um imperativo, escrita por alguém que tem suficiente autoridade moral para o fazer: aos 93, herói da Resistência francesa, sobrevivente dos campos de concentração nazis e um dos redactores da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o autor continua lúcido e tão atento aos motivos para a indignação do nosso tempo quanto aos dos anos durante os quais, em vez de se calar, de pactuar, de desistir, arriscou a vida por causas imprescindíveis.

          Alguns destes motivos são colocados pela necessidade de resistência à barragem de informação que se tem esforçado por fazer-nos acreditar não existirem alternativas ao mundo no qual vivemos: «Ousam dizer-nos que o Estado já não consegue suportar os custos das medidas sociais. Mas como é possível que actualmente não tenha verbas para manter e prolongar estas conquistas, quando a produção de riquezas aumentou consideravelmente desde a Libertação, quando a Europa estava arruinada?» Tal é possível, conclui, «apenas porque o poder do capital nunca foi tão grande, insolente, egoísta, com servidores próprios até nas mais altas esferas do Estado.» E continua: «Os bancos, agora privatizados, preocupam-se principalmente com os seus dividendos e com os elevadíssimos salários dos seus administradores, e não com o interesse geral. O fosso entre os mais pobres e os mais ricos nunca foi tão grande, a competição nunca foi tão incentivada.»

          A fantasia segundo a qual não é possível actuar contra esta situação de desigualdade tem no entanto os seus agentes, responsáveis directos pelo disseminar de uma convicção de que as coisas «são como são» e de que o que há a fazer é cada um tentar arranjar maneira de passar à frente dos outros. O antigo resistente propõe então «uma verdadeira insurreição pacífica contra os meios de comunicação de massas que só apresentam como horizonte à nossa juventude uma sociedade de consumo, o desprezo pelos mais fracos e pela cultura, a amnésia generalizada e a competição renhida de todos contra todos.» Por isso, mesmo no coração das democracias – onde não é preciso atirar pedras ou pegar em armas para fruir do direito à palavra – indignar-se é preciso. Desde logo contra esta ditadura da inevitabilidade, responsável pela disseminação sedativa do princípio da desigualdade «natural». Foi isto que, ao aproximar-se do final da vida, Hessel sentiu que ainda era importante dizer. «A todos aqueles e aquelas que irão fazer o século XXI.»

          Stéphane Hessel, Indignai-vos! Objectiva. Prefácio de Mário Soares. Trad. Paula Centeno. 52 págs.

            Atualidade, Democracia, Memória, Olhares

            Os 178 trabalhos de Cuba

            Cuba

            «É preciso suprimir as preocupações paternalistas que atenuam a necessidade de trabalhar para viver», disse Raúl Castro após mais de 50 anos ligado a um governo que cedeu a tal descuido. Para dois milhões de cubanos, funcionários do Estado, 500.000 agora e mais 1.500.000 a prazo, isto significa uma acusação formal de mandriice. E a obrigação de procurarem um novo modo de ganhar a sua vida. Como? Trabalhando numa das 178 actividades privadas que o governo lhes permite ter, ainda que não possuam formação para qualquer uma delas ou um financiamento básico para lançarem o negócio. A lista – anexo 1, da resolução número 32 de 7 de Outubro de 2010 – parece uma sucessão de deixas para um mau programa de humor. Abre com «reparador de instrumentos de música» e encerra com «alugador de bicicletas». Pelo meio, «poceiro» (o operário que abre poços), «cabeleireiro», «engomadeira», «fabricante de cintos», «polidor de metais», «pedreiro», «vendedor de vinho», «figura folclórica» (imagino o que possa ser), «cartomante» (sic), «vendedor de flores artificiais», «descascador de frutos naturais», «par de dança» ou, acreditem, «dandy» (talvez em Cuba signifique outra coisa). Pode também entrar-se com expectativas na carreira de «estofador de botões» (a pessoa que reveste de tecido alguns modelos antiquados daqueles acessórios do vestuário), «tratador de cães», «carregador de isqueiros», «colector-vendedor de matérias primas» (aquele que remexe no lixo para recolher e revender o que se puder aproveitar), «operador de compressor de ar, reparador de pneus e de câmaras de ar», ou «preparador-vendedor de bebidas não alcoólicas ao domicílio». Como disse o Castro mais novo, «é preciso acabar de vez com a ideia de que em Cuba é possível viver sem trabalhar». Existe agora um mundo novo de possibilidades, bem preciso e bem delimitado, que liberta o Estado dos inúteis e dos preguiçosos e que prepara o futuro do país. Basta solicitar licença para exercer uma actividade que conste do catálogo, aguardar pelo deferimento e ficar à espera do milagre da sobrevivência. Para pelo menos dois milhões de trabalhadores cubanos e para as suas famílias é este o deprimente horizonte.

            Dados retirados do suplemento «Le Mag» do Libération de 23 de Janeiro.

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              No olho do vulcão

              Túnis

              Nawaat – a palavra significa «núcleo» em árabe – autodefine-se como «um blogue colectivo independente animado por tunisinos que dá a palavra a todos aqueles que pelo seu combate cívico a tomam, proferem e difundem». Tem publicado centenas de textos, fotografias e principalmente vídeos sobre o movimento popular de protesto que desde meados de Dezembro tem percorrido a Tunísia. É independente, não aceitando qualquer subvenção partidária. No ar desde 2004, foi desenvolvendo ao longo destes últimos seis anos a dose de engenho e de arte bastante para contornar a censura imposta pela ditadura de Ben Ali. E foi agora instrumental no lançamento e na organização dos protestos. Editado em inglês, francês e árabe, pode ser visitado aqui.

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                Limpeza de pele

                Mark Twain underwater

                – We blowed out a cylinder-head.
                – Good gracious! anybody hurt?
                – No’m. Killed a nigger.
                – Well, it’s lucky; because sometimes people do get hurt.

                O Público noticiava há dias que a New South Books, uma editora do Alabama, vai reeditar As Aventuras de Huckelberry Finn, de 1884, expurgadas das 219 referências à palavra nigger que aparecem no romance. Também a palavra injun será substituída. A primeira, que se refere pejorativamente ao preto, ao negro, à «pessoa de cor», como insistem em dizer os racistas brancos mais embaraçados, será substituída por slave. Já injun, epíteto ofensivo aplicado aos native americans, será trocada por indian. Uma vez mais, justifica-se o gesto rasurador – que não é novo, pois até a Bíblia foi submetida já a alguns liftings recentes –, com a consideração dos termos originais como sendo ofensivos ou politicamente impróprios. Na ignorância, completa ou propositada, de Mark Twain se ter servido daquelas palavras para reforçar o lugar social injusto de algumas das personagens. O escritor foi, aliás, um apoiante empenhado da abolição da escravatura e do alargamento dos direitos civis dos negros americanos (tal como foi também, já agora, um partidário da extensão às mulheres do direito de voto). Foi ainda grande amigo ao longo da vida de John Lewis, um negro que serviu de inspiração para o personagem Jim, central no romance em causa.

                Muitos anos antes de Martin Luther King ou Malcom X terem sequer nascido, já Twain se empenhava num combate, na sua época particularmente difícil e solitário, que muitos anos mais tarde faria com que alguns sectores racistas afiançassem ter ele uma quantidade importante de «sangue negro». Ou «afro-americano», como em sentido inverso, e de forma completamente anacrónica em relação aos conceitos e às palavras usados no tempo do escritor, existe quem prefira dizer. Vale sempre a pena, diante de tais afirmações de reiterada ignorância, imprecisão ou mera estupidez, insistir no perigo que comporta este tipo de escolha supostamente purificadora. Em nome da omissão de palavras ou de conceitos julgados depreciativos, ou na tentativa de contrariar uma absurda «censura preventiva» – que tem levado, por exemplo, à retirada de algumas bibliotecas públicas americanas de livros, clássicos muitos deles, contendo termos julgados «impróprios» –, alteram-se obras literárias e apagam-se pedaços de uma realidade historicamente vivida ou imaginada em contextos muito diversos e que só podem ser compreendidos nas suas circunstâncias. Com tais gestos dilui-se também o rastro de etapas dos processos de emancipação das sociedades e das próprias palavras. Voltando-se o feitiço contra o feiticeiro, se é que não convirá referir este profissional como «técnico de práticas mágicas», «agente de subculturas locais» ou coisa que o valha.

                  Democracia, Memória, Olhares

                  Rir para não pirar em Pyongyang

                  Pyongyang

                  Não sei se já todos vocês passaram por uma situação análoga, mas aconteceu-me uma meia dúzia de vezes. Viver uns quantos dias, por opção mal avisada, numa cidade desinteressante, sem nada de especial para fazer, sem conhecer ninguém, sem lugares bonitos para visitar, mas, por não dispor de transporte próprio, a contar pacientemente os dias que faltam para sair dali para fora. Nessas alturas, se não queremos morrer de tédio ou que nos aconteça alguma coisa má ao cérebro, o melhor que há a fazer, para além de dormir muito, de ler todos os livros que tivermos conseguido levar e de tomar notas para o romance que vinte anos antes planeámos escrever, é procurar fazer render aquilo que se encontra à nossa mão. Esquadrinhar os recantos das praças, reparar em cada centímetro dos corredores do museu local, ponderar a dimensão dos edifícios e das estátuas, tentar perceber como comunicam os naturais, e principalmente observar o que se passa no hotel que nos coube como se de uma inesgotável aventura se tratasse.

                  Pois foi precisamente isto que fez Guy Delisle, o canadiano autor de livros de banda desenhada que em 2003 publicou Pyongyang. A Journey in North Korea, relato visual de uma sua estadia de trabalho, como supervisor de um estudo asiático de cinema de animação, na cidade capital do império norte-coreano da dinastia Kim. Só que, neste caso, à situação do viajante aborrecido de morte associou-se a consciência de um universo regulado pela vigilância paranóica e pela repressão. A sua forma de sobreviver no mundo sombrio ao qual se viu confinado, e que procurou descrever neste livro, colocando-o ao dispor da compreensão do leitor, foi então olhá-lo de uma forma aparentemente ingénua, fazendo com que o seu modo de observação fosse filtrado pelo relato de episódios nos quais o absurdo e a comicidade insinuam um devastador efeito crítico. Insistindo na arma do humor, que mesmo na sociedade mais repressiva do mundo serve, como em toda a parte, de factor de resistência. Segundo Delisle, uma piada com bastante êxito em Pyongyang é aquela que procura explicar por que motivo os velhos autocarros que circulam na capital, todos eles montados na distante década de 1950 por operários dos arredores de Budapeste, têm invariavelmente entre uma e cinco estrelas de cinco pontas pintadas na carroçaria: é uma por cada 5000 quilómetros percorridos sem acidentes.

                  Tal como outros livros de Guy Delisle, este está à venda nas lojas da rede FNAC.

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                    Liberdade a sério

                    liberdade

                    É sabido desde James Fenimore Cooper que a espionagem é uma das belas-artes. Muito mais criativa e inesperada – Robert Littell ou John Le Carré sabem bem do que falam nos seus romances – do que anuncia todas as manhãs o aborrecido «mundo real». Mas mais silenciosa também: o seu universo é da cor da penumbra e os personagens que o cruzam existem principalmente nos relatórios classificados como confidenciais, nas pequenas notícias saídas nas páginas pares dos jornais, ocasionalmente num obituário rebuscado. Na verdade, a maior parte das figuras que circulam por estes subúrbios da vida não se revê no agente 007. Não dá muito nas vistas, mantém uma vida aparentemente sossegada, sem o glamour do smoking ou o olhar vítreo de Madame M, sem o roçagar de lindíssimas mulheres ou perseguições em automóveis desportivos. De facto, a vida do espião típico, infatigável e eficaz não se distingue da vida do funcionário anónimo, cansado, de uma companhia de seguros com falta de clientela. Afinal este é um indicador de uma realidade maior que qualquer pessoa avisada deveria conhecer: a vida diplomática e a espionagem são irmãs gémeas apenas com cargos diferentes, ambas feitas de aparências, de enganos e de muitas máscaras. Mas jamais de distracções.

                    Por isso se torna perigoso que nos deixemos arrebatar pela actividade frenética da WikiLeaks. Não, não me parece que Julian Assange seja um Robin dos Bosques, muito menos um Jean Valjean, e não me espantaria que fosse até mais um Julien Sorel. Um tipo arrivista que passa aos olhos de meio mundo por cândido, honesto e imprescindível. Esta é a minha suspeita – não provada, admito – e por isso não embandeiro em arco com elogios descomedidos ao homem. Só que uma eventual desconfiança não pode ignorar uma certeza que estes dias têm provado: a de que a repressão da actividade da organização está a a servir de pretexto para um ataque generalizado contra a liberdade de expressão e de informação através da Internet. E isto de modo algum pode aceitar-se. Devemos pois enfrentar a arbitrariedade dos poderes que visam abafar vozes em condições de questionar a fiabilidade dos poderosos, por muito que o seu combate possa ter propósitos e se sirva de meios um tanto enigmáticos. Afinal a WikiLeaks não tem qualquer programa claro, mais parecendo um megafone de feira do que uma voz afirmativa em prol de uma causa com objectivos. O que não significa que deva ser calada e que a informação que entretanto vai passando não possa servir para questionar o comportamento arrogante e bem pouco transparente de numerosas figuras do topo da política internacional.

                    Por isso também é importante apoiar as acções destinadas a impedir por todos os meios que tirem a voz a Assange. Sem esquecer, todavia, que um combate ainda mais difícil e necessário travam aqueles que em países como a China, Cuba ou a Coreia do Norte, como o Irão, a Líbia ou mesmo Angola, se batem também pela liberdade de opinião como valor absoluto. Sem esquecer que sobre estes incorrem perigos perto dos quais aquilo que pode acontecer aos activistas do WikiLeaks não passa de cócegas. No domínio do exemplo dado e de um ponto de vista bem objectivo – o da defesa intransigente de uma liberdade sem adjectivos, independente daquilo que possa fazer-se com ela – não vejo em que devam distinguir-se substancialmente os riscos assumidos, devido à actividade que mantêm ou desenvolveram em rede, pelo australiano Assange, pela cubana Yoani Sánchez ou pelo Nobel chinês da Paz Liu Xiaobo. Nestas matérias é preciso manter todos os piscas ligados.

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                      O Brasil em má companhia

                      Direitos Humanos no Irão

                      Para Mohammad-Javad Larijani, representante do Irão na recente reunião da Assembleia-Geral da ONU na qual foi aprovada uma resolução pedindo o fim do apedrejamento como forma de punição – para além de condenar Teerão por graves violações de direitos humanos e por silenciar jornalistas, bloggers e opositores –, esta constituiria uma inaceitável «politização do assunto». A resolução acabaria por ser aprovada, se bem que com a abstenção dos representantes de Angola, do Benin, do Butão, do Equador, da Guatemala, de Marrocos, da Nigéria, da África do Sul ou da Zâmbia. Já a Venezuela, a Síria, o Sudão, Cuba, a Bolívia e a Líbia votaram mesmo contra. Vale a pena olharmos para esta lista e repararmos, um a um, nos regimes que consideraram ser seu dever recusar-se a apoiar uma iniciativa desta natureza. Nada que pudesse surpreender em qualquer dos casos se à lista das abstenções se não tivesse juntado um outro Estado. Refiro-me ao Brasil, que desta maneira se recusou também a condenar formalmente a prática da lapidação e o regime iraniano. Temos pois um parente que anda em muito más companhias.

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                        Asia Bibi e a blasfémia

                        As filhas de Asia Bibi

                        Do El País de hoje:

                        «La Organización de la Conferencia Islámica (OCI) intenta que Naciones Unidas se pronuncie a favor de legislar contra la blasfemia con ocasión de la reunión del Tercer Comité de la Asamblea General especializado en las cuestiones sociales, humanitarias y religiosas. Aunque se trata de una solicitud rutinaria de la OCI desde 1999, en esta ocasión resulta particularmente inoportuna: sobre una cristiana paquistaní, Asia Bibi, pesa una condena a muerte por haber presuntamente criticado al profeta Mahoma.

                        El debate en Naciones Unidas puede transmitir el equívoco mensaje de que la aplicación de la pena capital es una cuestión controvertida internacionalmente cuando la creencia religiosa está por medio. Ni existe ni debería existir controversia alguna: la pena de muerte es execrable en toda circunstancia, también cuando se dicta por lo que no es, en el fondo, más que el ejercicio de la libertad de opinión. Mejor harían la OCI y la Asamblea General solicitando la conmutación de la pena dictada contra Asia Bibi.» [continua aqui]

                        Mais informação sobre o caso de Asia Bibi

                          Atualidade, Democracia, Recortes

                          Imaginar não custa

                          Greve Geral

                          Aproxima-se o dia 24 de Novembro e com ele virá a Greve Geral destinada a protestar, em primeiro lugar nos locais de trabalho mas também nas ruas, contra as pesadas medidas de austeridade que para centenas de milhares de pessoas serão também de penúria. É impossível deixar de acompanhar a CGTP e a UGT nesta jornada de combate para retirar do silêncio o protesto daqueles que de uma forma ou de outra irão certamente sofrer. E não se pense que estes serão apenas os sectores sociais que já vivem na pobreza ou para ela caminham. Muitas pessoas que até agora mantinham uma vida digna, que não precisavam de cortar a direito na alimentação, na saúde, na educação, no vestuário, na habitação, vão ter de o fazer. Pior: vão ter de o fazer na perspectiva deste não ser ainda o fim da linha e sem uma previsão de melhoria para a próxima década. Protestar é por isso importante. Não porque o protesto ou «a luta» – esse conceito abstracto que algum tentam manter invocando a utopia do governo perfeito «dos trabalhadores» que sucederá à «queda do capitalismo» – leve os actuais governantes a mudarem de posição, mas para que, quem decide colocando os outros apenas como figurantes e não como protagonistas, entenda que é preciso pensar, procurar e promover uma alternativa.

                          Só que existe um problema que limita sempre o alcance deste combate. É verdade que as dificuldades são reais e não melhoram, antes pelo contrário, fazendo um apelo a que se conservem sem reequilíbrios, dentro do actual sistema, todos os direitos e regalias dos trabalhadores. Não se pode voltar ao velho slogan do final da década de 1970 bradando apenas «os ricos que paguem a crise». O Estado social não vive do ar e as coisas chegaram a um ponto tal que nem todo o dinheiro dos nossos ricos dará para fazer com que a economia passe a rolar de maneira equilibrada e sem problemas. Não se pode viver do dinheiro que não há e os sacrifícios serão, sem dúvida, inevitáveis. Mas é preciso evitar que eles penalizem sobretudo o elo mais fraco. A alternativa passaria necessariamente por uma política económica e social radicalmente diferente, capaz de alterar as suas prioridades em função de um conceito não meramente gestionário do serviço público. Capaz de combinar a dinâmica internacional do mercado com uma gestão segura mas corajosa e imaginativa dos recursos. Que não se aplique a nivelar por baixo mas aproveite as capacidades humanas e materiais do país para o tornar mais competitivo e próspero. Não sendo economista ou político profissional, não posso passar, como o cidadão, desta declaração de princípios utópicos que apontam para a compatibilização do desenvolvimento com uma política social justa.

                          Só que nada disto se pode fazer sem vontade política e o drama, o nosso drama, consiste em ser necessária uma política alternativa, solidária, democrática e de esquerda que não tem quem a prepare, debata, demonstre e aplique. Há cerca de duas semanas, num curto texto de opinião saído no Público, o politólogo André Freire queixava-se de que, em Portugal «a direita (PSD vs CDS) é capaz de cooperar; a esquerda (PS vs BE e PCP) não, nunca o foi, excepto em questões marginais de luta política», deixando implícita a necessidade desta cooperação «à esquerda». A verdade, porém, é que ela não é possível, uma vez que a linha dominante do PS apoia uma versão light das políticas neoliberais que subjugam o país e o mundo desde os anos oitenta, o PCP não sai da sua posição obreirista, mostrando-se incapaz de se comprometer com soluções democráticas de governo e limitando-se a uma posição de natureza protestativa, e o BE não tem ainda dimensão, maturidade política e apoio público para se apresentar como alternativa de poder. Diante desta situação, só resta a quem trabalha uma posição de protesto e defensiva. Preparando a resistência aos golpes ainda mais brutais que esse governo de direita que se anuncia inevitavelmente trará. A Greve Geral do dia 24 será um passo nesta direcção. Quem sabe se ela servirá para abalar consciências e lançar os fundamentos «subjectivos e objectivos» que permitam avançar gradualmente, com metas, numa outra direcção. Imaginar não custa dinheiro. Por enquanto.

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                            Mercado chinês

                            Chinese market

                            A visita de Hun Jintao a Portugal é como a visita de Hun Jintao a qualquer lugar do mundo. Segundo os jornais, são mais de trinta as entidades e empresas chinesas que acompanham o Presidente chinês e uma das cartas na manga e na mesa consiste na compra do BCP – não confundir, por favor, com o PCP (camaradas, sim, ma non troppo!) – pelo ICBC, o poderoso Industrial and Commercial Bank of China. Jintao vem pois, basicamente, tratar de negócios. Em algum momento, porém, dirá umas quantas palavras de circunstância sobre uma certa «fraternidade entre os povos», materializável na caritativa generosidade de Pequim para com os países-pobrezinhos da Europa. Esses que bem precisam do investimento chinês para desatascarem a carroça da estrada esburacada para a qual inadvertidamente se deixaram empurrar. E para continuarem a assegurar o seu papel de compradores.

                            Neste contexto, pouco importarão princípios reclamados por uns quantos extravagantes que não sabem permanecer sabiamente calados. Princípios vagos, traduzíveis em palavras como «democracia», «liberdade de expressão», «direitos humanos», «direitos dos trabalhadores» ou «sindicatos livres». Temas incómodos que apenas servem de embaraço à imposição, nos convénios laboriosamente preparados, de umas rápidas rubricas capazes de satisfazer os mercados e «estimular as respectivas economias». Ou, mais propriamente, que enriquecerão uns quantos, concedendo-lhes, ao mesmo tempo, a boa consciência de prestarem um serviço público, uma vez que «riqueza atrai riqueza». Por isso nada há a esperar para além da deferência dos partidos do poder, traduzida num silêncio cobarde perante o imperador chinês e as iniquidades em vigor no Estado «dos dois sistemas». Aquele no qual combinam harmoniosamente o capitalismo mais selvagem e a repressão «socialista» dos direitos e da voz de quem dá o corpo ao manifesto. Tudo se compra, tudo se vende no mercado chinês. Mas quem manda é o mercador, não o cliente.

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                              Sem culpa mas com desculpa

                              Lombardi

                              De acordo com o director da Sala de Imprensa da Santa Sé e porta-voz do Vaticano, o teólogo, presbítero e padre jesuíta Federico Lombardi, a Igreja católica é mais vítima do que culpada da «praga dos abusos sexuais», a qual avisadamente vê como «uma das pragas do mundo actual». Os motivos do flagelo parecem-lhe óbvios: a presente «crise da família», a desordem trazida pelo turismo e o comércio sexual facilitado «pela Internet e pelas novas formas de comunicação.» Eis de novo a reacção típica da hierarquia da Igreja católica, que a propósito do tema confunde causas e instrumentos. Insiste em ignorar, em termos públicos, uma ligação mais do que óbvia entre a autoridade da função sacerdotal e da própria Igreja junto de numerosas pessoas e comunidades, a intensa repressão sexual que esta insiste em pregar e impor como norma de conduta, e os abusos recorrentes, que na esmagadora maioria dos casos permanecerão aliás no mais completo silêncio, devido ao pudor ou ao receio dos envolvidos. Na Irlanda, para não ir muito longe, conhecem-se números aterradores sobre a proliferação deste tipo de situações, ocorrida de forma transversal e vertical no conjunto da instituição e das suas ramificações, mas o volume de denúncias públicas é ainda bastante moderado. Para não falarmos daquilo que inevitavelmente aconteceu nos mais variados recantos do mapa ao longo de séculos de coacções e silêncios. Nessa longa era de paz e de sossego sem Internet ou outras formas livres de comunicação que perturbassem, com conversas bastante inoportunas e indecorosas sugestões, o casto descanso, por vezes aromatizado com suor e sémen, das celas, das camaratas e das sacristias.

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