Na tentativa de parodiar a inadaptação de parte da esquerda britânica às mudanças do mundo pós-queda do Muro, Anthony Giddens falou de um certo «marxismo tendência Groucho». A frase pegou rapidamente. Foi citada, adaptada e abusada. Reparei, há dias, que já estão a chegar à universidade muitas pessoas incapazes de entenderem o alcance daquela gasta boutade do ex-director da London School of Economics. Bem sei que a maioria também não ouviu falar do primitivo Sócrates. Para não falar de Xenofonte, claro. O que não é propriamente muito animador. Mas reconheçamos que é grave, para a compreensão do mundo actual, jamais ter apreciado a inconfundível técnica de fumar charutos desenvolvida e divulgada pelo, julgo eu, segundo Marx mais conhecido de todos os tempos.
«Vous parlez tout le temps de guerres. Il ne pouvait pas être question de guerres. Ces gens étaient des hors-la-loi. On ne fait pas la guerre à des hors-la-loi. On les extermine. Des hors-la-loi! Mon garçon, c’était une grande époque. Oh! c’était du beau travail, une merveille de l’organisation et d’audace dans l’exécution.»
Em De l’origine du XXIe siècle (2000), um filme de 17 minutos de Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville, contendo imagens de arquivo da 2ª Guerra Mundial e atrocidades nazis, entrecruzadas com extractos de Maurice Chevalier em Gigi, de Jerry Lewis em The Nutty Professor, e de À bout de souffle, do próprio Godard (ECM Cinema).
Da entrevista concedida ao jornal Público por Blanco Cabrera, dirigente do Partido dos Comunistas do México que participa, em Lisboa, no Encontro Internacional que junta 63 Partidos «Comunistas e Operários»:
«Na Coreia do Norte há fome. Não acha que há um grande distanciamento entre a clique política e o povo?
Conhecemos a experiência da sociedade não capitalista na Coreia do Norte. Sabemos que é um caminho que conta com a aceitação do povo. Como é que sabe que conta com a aceitação do povo? A Coreia do Norte é um país opaco e repressivo…
Recebemos a informação que nos é dada pelos companheiros do partido coreano e houve uma ocasião em que uma delegação do nosso Partido visitou a República. Efectivamente, é pouco o que se sabe, mas nós confiamos.»
Poderão Simone de Beauvoir, Alexandre Solzhenitsyn, Sofia Loren, Mary Quant, Rainer Werner Fassbinder, a princesa Diana, Juan Carlos de Borbón, Franz Beckenbauer ou a Madre Teresa de Calcutá integrar, ao mesmo tempo, o admirável panteão dos heróis mundiais do pós-2ª Grande Guerra? Para a revista Time, que acaba de publicar o extenso dossier «60 Years of Heroes», podem, sem dúvida alguma. Claro que nenhum deles detém a heroicidade paradigmática de figuras como Aquiles, Alcibíades, El Cid, Francis Drake ou Giuseppe Garibaldi, mas a estes já o tempo e a lenda transformaram há muito em semideuses de visita aos parentes terrenos. E a Time possui, do conceito de herói, uma concepção bastante democrática.
A forma, áspera e directa como é seu timbre, utilizada por Miguel Sousa Tavares para se referir ao universo dos blogues, é recorrente. Sousa Tavares – que há não muitos anos se declarou, na revista Grande Reportagem da qual era director, contra o uso dos computadores – está no seu direito de recusar, ou mesmo de desprezar, uma qualquer forma de comunicação. Esta ou outra. Todos nós conhecemos pessoas que também não gostam de ler jornais, ou que, confrontadas com o voice mail, adiam assuntos urgentes porque «se recusam a falar para máquinas», não sendo por causa disso que lhes deveremos desejar mal algum. Mas já me parece absurdo que, em crónica publicada no Expresso, o jornalista ataque os blogues, todos os blogues, para apontar o dedo ao mau jornalismo – aquele acrítico em relação às fontes, correndo atrás do boato mais abjecto – ignorando ao mesmo tempo que eles definem um dos meios de comunicação nas quais actualmente se escreve melhor português (e o pior também, naturalmente), se afirma um discurso mais livre, e onde se tem revelado, ou treinado na escrita, um grande número de pessoas, muitas delas jornalistas ou colaboradores habituais dos jornais.
Miguel Sousa Tavares tem entretanto razão na indignação que mostra por ter sido alvo, em blogue anónimo, de uma acusação de plágio. Acusação que, ainda que pudesse (ou possa) ser fundamentada, perde toda a credibilidade por ter sido feita de cara encoberta. O uso do anonimato – não do pseudónimo que, se consistente, pode até ser algo de substancialmente positivo – é um fenómeno antigo. Como o são os autores das cartas por debaixo da porta, dos bilhetes compostos com letras recortadas, dos graffitti em casas de banho públicas ou dos telefonemas com a voz distorcida. Eles podem sempre dizer aquilo que entenderem e na forma que lhes apetecer: ofender, caluniar, ameaçar, inventar, pôr na boca de A o que A jamais disse, dizer que «C disse a B que A». E sem possibilidade de contraditório, uma vez que pessoa alguma, com vergonha na cara e no seu perfeito juízo, aceita participar num jogo viciado com oponentes invisíveis.
Eis, pois, um assunto sobre o qual vale a pena reflectir e que merecerá, crescentemente, algumas precauções e iniciativas – incluindo no que se refere à actividade dos fornecedores de serviços em linha – no campo da segurança dos dados e da responsabilização de quem comunica. Como ando nisto há para aí uma dúzia de anos, participei em dezenas de projectos online destinados a defender a liberdade de expressão, escrevo habitualmente também em blogues e continuo a assinar tudo aquilo que escrevo com o meu verdadeiro nome, creio que posso dizê-lo sem que me confundam com um partidário da censura.
O evento que determina toda a sequência do «breve século XX» é, para Hobsbawm, a Revolução Soviética. O assalto ao Palácio de Inverno, em 1917, e a queda do Muro de Berlim, em 1989, como princípio e termo de uma experiência de poder – e também, acrescento seguindo Furet, da ilusão que ela alimentou – teriam balizado o período. Mas pode dizer-se que este começou a ser arrasado antes mesmo da sua construção, em 1961. A data de arranque dessa demolição avant la lettre terá sido 23 de Outubro de 1956, quando os tanques soviéticos entraram em Budapeste e puseram termo à Revolução Húngara. O movimento havia trazido para a rua um grande número de estudantes, intelectuais e operários apoiantes de um programa de democratização e de distanciamento em relação à União Soviética, destinado também a liquidar o regime de partido único e a levar ao poder o comunista reformador Imre Nagy.
A experiência chefiada por Nagy acabou lavada em sangue – o de muitos milhares de húngaros e o dele próprio, preso após haver recebido um salvo-conduto e executado na sequência de um julgamento similar ao dos processos de Moscovo –, provocando clivagens dentro do movimento comunista internacional e, principalmente, no interior do universo muito particular dos compagnons de route dos partidos comunistas ocidentais. Jean-Paul Sartre, Edgar Morin, Pierre Emmanuel ou Italo Calvino foram apenas alguns deles. Sartre assume a ruptura falando do horror que passara a sentir pelas iniciativas da «fracção dirigente da burocracia soviética».
No annus mirabilis de 1968, a invasão da Checoslováquia e o termo da Primavera de Praga e da experiência de Dubcek com o seu «socialismo de rosto humano», apesar de menos brutais, definiram essa incapacidade de regeneração por parte dos governos comunistas no poder, determinando um crescente isolamento internacional e a resistência, surda ou efectiva, de uma parte crescente das sociedades que controlavam. A erupção de 1989 terá marcado o termo dessa viagem dolorosa inaugurada em 1956.
Recebi há cerca de dois meses um cartão de débito da Caixa Geral de Depósitos que substituía o anterior, em final de prazo de validade. Este apontava como novo «tempo de graça» aquele que se estenderia até Abril de 2009. Há dois dias, porém, chegou-me um novo cartão, agora com o diferente prazo-limite de 09/09. Ao procurar conhecer o motivo de tão rápida troca, tentando saber qual dos cartões deveria afinal utilizar, recebi da amável menina que me atendeu nos «serviços de apoio» da Caixa uma explicação edificante. «Sabe», disse-me a moça, «por razões informáticas foram omitidos nos anteriores cartões os títulos académicos de quem os possui», acrescentando que «entretanto recebemos inúmeras queixas por parte de clientes que se sentiam lesados». Olhei de novo para o cartão mais recente – enquanto ouvia mais um «obrigado por ter recorrido aos nossos serviços» – e lá estava, de facto, o tão requisitado e distintivo título. Situações como esta devolvem-me, por vezes, um certo respeito pelos tempos do tratamento igualitário. «Cidadão», «camarada», «irmão», «sócio», «parceiro», «pá», «amigo» igual a mim.
Seguia num velho autocarro que, em final de tarde, atravessava a Mancha rumo a Barcelona. O machimbombo tinha uma espécie de animação cultural: um motorista entradote mas bastante jovial, que intercalava horríveis cassetes contendo extractos de zarzuelas, interpretadas pela Orquestra y Coros da Radio Nacional de España, com obtusas anedotas «de andaluzes». Em alguns casos, estas pareciam-me até ser a cópia, se não o original, das nossas obtusas anedotas «de alentejanos». De tempos a tempos, conseguia abstrair-me do ruído de fundo e olhar a paisagem que era para mim aquela que havia associado à figura do Quixote. Não a do romance, que à época ainda não havia lido sequer, mas a que obtivera com a mistura de uma versão simplificada, requisitada na carrinha Citroën da biblioteca-itinerante da Gulbenkian, com aquela retirada da projecção televisiva do velho filme de Rafael Gil, rodado em 1947 (relembro agora, recorrendo ao Google, com Sarita Montiel e um ainda jovem Fernando Rey). Reencontrei essa paisagem extensa, de planícies de um amarelo-torrado provocado pela presença dos campos de trigo e da terra argilosa, ontem mesmo, ao ver Volver, o último filme de Pedro Almodovar. O filme é belo de novo, e intenso como sempre, retomando os temas e os tipos que são recorrentes da cinematografia do realizador, embora, talvez por isso mesmo, não me tenha parecido particularmente original. Mas as viagens transmancha daquele grupo insólito de mulheres de três gerações, numa velha carripana vermelho-barro, sob um sol inconfundível e uma poeira que parecia jamais assentar, fez-me recuperar aquela travessia, há mais de trinta anos, pelo cenário real de um imaginado Quixote. Para mim, as mais emotivas sequências do filme.
Pode corresponder a uma forma de preguiça decidir não escrever o post que tinha começado há alguns dias, substituindo-o por palavras de outra pessoa que escreveu entretanto sobre o mesmíssimo assunto que eu procurava abordar (sem a clareza que pretendia, diga-se). Mas se elas retomam ideias que têm servido, mais que recorrentemente, a resistência perante a tirania do «politicamente correcto», fazem-no com uma limpidez que justifica completamente o traço grosso. Transcrevo assim um fragmento da crónica de Pedro Norton («O PC volta a atacar»), publicada hoje na revista Visão.
«Como muitas das grandes tragédia do século XX, esta variante do marxismo cultural que convencionou chamar-se «politicamente correcto» (PC) terá nascido pela melhor das razões: como intrumento de protecção dos mais fracos em cada sociedade. Mas desenganem-se os que pensam que o PC é apenas um conjunto de regras de linguagem mais ou menos ridículas destinadas a impedir discriminações injustas. O PC é muito mais do que isso. Tal como o próprio marxismo, o PC é um sistema ideológico fechado e autocontido que explica simplisticamente toda a história através das relações de poder entre versos grupos definidos com base na sua raça, género ou orientação sexual. De um lado encaixa os opressores: homens brancos, heterossexuais, ocidentais e demais demónios. Do outro cataloga vítimas: mulheres, negros, homossexuais, «não ocidentais», etc. Tudo o que primeiros façam ou digam é, não apenas errado mas intrinsecamente «mau» (no sentido moral do termo). Tudo o que os segundos entendam por bem fazer deve ser, por natureza, compreendido, defendido quando não aplaudido.
O fenómeno seria simplesmente idiota se o PC não fosse ele próprio profundamente «politicamente incorrecto». Ou, dito de outra forma, se o PC, nascido como forma de combater a intolerância, não se tivesse transformado numa das ideologias mais intolerantes da nossa era. E se por essa via não estivesse profundamente empenhado em combater um das conquistas fundamentais das sociedades liberais: a liberdade de expressão. O fenómeno seria simplesmente caricato se, em pleno século XXI, não estivéssemos a comprometer o debate livre e a afastar do campo das ideias que são admissíveis todas as que não passam pelo crivo prévio do PC.»
Levanta-me uma dúvida a edição pelo Público, a partir de amanhã, de um conjunto de 10 DVD que recordam os 80 anos sobre o nascimento da «eterna jovem e bela Marylin Monroe». Será que a mais famosa falsa loira da história gera ainda o avassalador efeito erótico que produziu na época de O Pecado Mora ao Lado, de Os Homens Preferem as Loiras, ou mesmo de Misfits (que não integra esta colecção)? Sucessivas gerações de homens e de mulheres reconheceram nela um ideal de sensualidade, ou mesmo de ousadia sexual, no limiar – «poo poo pidoo!» –do que era então possível situar entre o publicamente aceitável (para as famílias que iam ao cinema) e o intimamente perturbador (nas capas de revistas para cinéfilos). Apenas comparável ao furor que, num sentido menos clássico, logo de seguida despertou Brigitte Bardot. Sei que em sociedades onde vigora uma ética religiosa muito estrita e o corpo feminino deve mostrar-se velado e submisso, Marylin continua a patrocinar sonhos muito quentes e húmidos. Passar-se-á o mesmo no nosso mundo de modelos anoréxicas, enfeites sado-maso e corpos andróginos? Aposto que o nível etário dos coleccionadores dos DVD do jornal da Sonae vai integrar maioritariamente homens, supostamente heterosexuais e com mais de sessenta anos. Mas gostaria muito de me enganar.
Uma palavra velha no ar, para legitimar a censura. A palavra é «provocação». O encenador Hans Neuenfels é «provocador» porque, no Idomeneo, colocou em cena as cabeças cortadas de Buda, de Cristo e de Maomé. O papa é «provocador» porque argumentou em nome da fé que julga «a verdadeira», confrontando os que consideram a sua como «a única». Lenine «provocou» quando escreveu O Estado e a Revolução. Saramago «provocou» quando criou uma nova leitura dos evangelhos. Stravisnky «provocou» quando produziu A Sagração da Primavera para os Ballets Russes de Diaghilev. Joyce e D. H. Lawrence «provocaram» quando escreveram Ulisses e O Amante de Lady Chatterly. Genet quando redigiu o Diário de um Ladrão. Rushdie quando lançou os Versículos Satânicos. Não constar do Index librorum prohibitorum será talvez, no limite, grosseira «provocação». Mas não existe criação, ou ideia inovadora, ou defesa coerente de uma causa, que vivam sem a suprema «provocação» de confrontarem outras. Dizer que não é conveniente porque, que não agora porque, que se deve silenciar porque, que pode ser chocante porque, é o argumento primeiro de todas as ditaduras e de todos os que desejam, ou admitem – o que é praticamente a mesma coisa -, um controlo «razoável» das consciências. Será que dizer uma verdade assim tão simples e tão essencial constituirá uma «provocação»?
Uma das minhas fantasias inaugurais – viver em ambiente rústico dentro da cidade – jamais a preencherei. Despertar pela manhã com as galinhas da quinta. Adormecer com o ladrar distante de um rafeiro. Sentir, como o ultra-romântico, os ramos da nespereira roçando a vidraça, «empurrados pelo vento». Mas também caminhar quinhentos metros, passar o portão de ferro, e, quase anónimo, poder comprar o diário, a eau de toilette preferida, o livro que saiu ontem, uns sapatos de camurça. Infelizmente terei de me conformar a viver no apartamento periférico, eternamente cúmplice das embraiagens dos automóveis a tentarem estacionar e da gritaria dos desvairados nocturnos. Esta madrugada foi assim que acordei: dois sujeitos que discutiam na rua sob o efeito do sono, do álcool, talvez do ciúme, ou de qualquer outra causa ou sentimento. O mais afirmativo gritava alto, exaltado, repetindo o impropério: «És um enermúgno, tás a ouvir! Um enermúgno, pá! Não passas dum enermúgno, seu enermúgno!» O insultado mantinha-se em silêncio e remoía, com os olhos no chão e incapaz de argumentar. Admitindo o tom de voz do companheiro ou a grandeza do neologismo.
René Magritte: projecto de publicidade para os cigarros Belga (1936)
Se existe leitmotiv certo nas imagens que tenho reproduzido nos blogues, ele pode ser encontrado na presença do cigarro. Não se trata de campanha contra o antitabagismo demencial que tem ocupado governantes de diferentes países. Nem de tique de dandy ou de rebelde, procurando no gesto singular a marca da diferença ou da insubmissão. Fui percebendo que o fazia de forma não-consciente, levado, talvez, tanto quanto pelo gosto do tabaco, pela beleza que detecto na volúpia do verdadeiro fumador. Não o viciado em nicotina, que já não fuma por prazer, mas aquele que sabe esperar o justo momento e se pode rever nas palavras de Richard Klein em Cigarettes Are Sublime (Duke Univ. Press, 1993). Assim: «Fumar um cigarro pode ser comparável a escrever um poema: inalando o fumo quente da própria criação, deixando que as palavras no papel possam arder ao ar visível de uma elocução surda, exalando em espiral figuras de desejo, conduzindo, com gestos modulados pelo fumo, uma conversa que ninguém mais pode escutar.»
Ser benigno, caro Luís Mourão, não é obviamente a mesma coisa que ser sensato. O pior que nos pode acontecer é que em nome da amabilidade, ou do desejo frouxo de permanecermos invisíveis, alguma vez, algum dia, esqueçamos a capacidade de pensar sozinhos e de falar de maneira única. De pronunciar o que pensamos como só nós pensamos e somos capazes de pronunciar. Concordemos pois em dissonância.
Completado o esclarecimento acerca da intenção que o Bruno, a meu ver de forma um pouco equívoca, pôs nas minhas palavras, passo agora a algumas ideias avulsas que se prendem, directa ou indirectamente, com o post dos Avatares.
Parece-me estar muito mais próximo do posicionamento do Bruno do que suposto seria diante de uma questão tão séria quanto aquela que ele coloca ao demarcar-se daquilo que eu possa ter escrito. Essa aproximação advém, principalmente, do facto de, ainda que contaminado por algumas opiniões que tendem a tornar-se mainstream no campo de uma certa esquerda, ele recusar acepções maniqueias a propósito de «bons» e «maus», de «nós» e «eles», de «ser por» ou de «ser contra». Creio, sem qualquer hipocrisia, que só a inteligência, o conhecimento e a honestidade – para mim, reclamo apenas a terceira destas características – permitem, como acontece com o Bruno, o assumir de posições complexas, bem mais difíceis de sustentar do que aquelas que identificam os pastores e orientam os seus rebanhos.
1 – Como nesta altura se terá percebido já, o «discurso do nós e eles» não o partilho, de forma alguma. Mas sei que dificilmente podemos fugir-lhe, uma vez que ele é constantemente avançado sobretudo por uma das partes da contenda (sim, trata-se de uma contenda, e bem grave). E essa parte é precisamente aquela que tomou a ofensiva. Falo, claro, do extremismo islâmico, que não me parece representar uma consequência do embate, ou um sintoma dele, mas ser antes a sua causa mais imediata (embora não a mais profunda). São precisos discernimento e coragem para escapar ao separar das águas.
2 – É inegável, ao contrário daquilo que algumas boas consciências proclamam ou que leituras posteriores têm tentado estabelecer, que o Islão nasceu historicamente como religião de guerra e o cristianismo apareceu como religião de paz (começando ab ovo pelo conhecido distanciamento do próprio Cristo em relação às intenções subversivas dos zelotas). Se a tradição islâmica viveu depois momentos de aceitação e de diálogo – o que, sem dúvida, aconteceu (pelo menos desde o quinto califa Harun al-Rachid, correspondente de Carlos Magno e senhor da ficcionada Scheherazade) – também o cristianismo conheceu, como todos sabemos, o mais atroz estado de barbárie. Mas as matrizes são distintas, independentemente das nossas vontades ou desejos.
3 – Já não sei onde se pode chegar com a recorrente exaltação do «Islão moderado». Admito que essa moderação exista, e sobretudo que existam muçulmanos sensatos e amantes da paz, pelo menos entre sectores da débil classe média dos países islâmicos e entre alguns dos seus intelectuais, mas penso que ela jaz calcada na rua pelos gritos de «Allahu akhbar!» e pela defesa intolerante da jihad como essência do Islão. E, no caso de existir, se não será a compreensão ou a mudez diante dos seus algozes o pior serviço que lhe podemos prestar.
4 – Não me parece que seja ineficaz ou incorrecta, perante o fundamentalismo, uma defesa tenaz e sem concessões de conquistas do género humano, como sejam a liberdade de culto e de opinião, o laicismo, a igualitarização da mulher, o reconhecimento dos direitos e da diferença das minorias étnicas ou sexuais. Argumentar – sei que o Bruno não o faz, mas fazem-nos alguns dos que vivem obcecados com o velho «remorso» ocidental que o marxismo fez florescer à escala planetária – que se devem «respeitar», na sua «diferença», atrocidades e violações de conquistas essenciais apenas porque elas se inscrevem numa tradição cultural outra, parece-me alguma coisa de politicamente inaceitável.
5 – O relativismo cultural permitiu, sem dúvida, grandes passos em frente, como o reconhecimento de um importante espírito de tolerância civil e religiosa. Infelizmente, deixou-se perverter pela impossibilidade de colocar limite à permissividade absoluta que, implicitamente, acabou por integrar. Gostava de saber, assim apenas num parágrafo, o que pensam os seus defensores de um diploma como a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas em 1948. É só uma dúvida que tenho.
Concluo estes parágrafos um tanto dispersos – embora nada vagos, e que já ultrapassaram em muito a pequena divergência com o BSM – com um citação de Samir Kassir, executado em Beirute (veja-se este post) por defender, como «desgraça árabe», a destruição de uma tradição de aceitação, que os regimes teocráticos e antidemocráticos que dominam a generalidade do «mundo árabe» se têm esforçado por apagar da face da Terra. De forma a continuarem a oprimir a grande massa de pessoas pobres, ignorantes e crédulas que dominam sem qualquer controlo.
«Enquanto resistência à opressão, [a ascensão do Islão político] resulta também do fracasso do Estado moderno e do igualitarismo das ideologias do progresso, e, neste sentido, aparenta-se à ascensão dos fascismos na Europa. Com efeito, uma vez despojados do véu religioso que os reveste, os comportamentos sociais dos movimentos islamitas apresentam muitas analogias com as ditaduras fascistas.»
Estaremos nós, aqueles a quem esta possibilidade jamais será indiferente, e ainda que pelo silêncio, ou por tacticismo, dispostos a pactuar com essa emergência?
Embora raros por aqui, de vez em quando lá aparece um ou outro post de puro copy-paste. O que só acontece quando se ouvem palavras fortes. Estas, de Miguel Sousa Tavares, enunciadas hoje na crónica («Regresso às Cruzadas») do Expresso, são-no sem dúvida.
«(…) O que o Papa disse sobre o Islão, fingindo que não queria dizer, é exactamente o mesmo que se poderia dizer sobre qualquer outra religião, incluindo a católica. Se é certo que, em nome do Islão, existem hoje milhões de muçulmanos privados de acesso à educação, à ciência e ao conhecimento, milhões de seres humanos arrastados para guerras que não desejaram e condenados a viver na miséria e no subdesenvolvimento a mando dos seus teólogos, também é verdade que o mesmo se passou durante séculos com os católicos a quem a Igreja ensinou apenas a esperar pela justiça e pelo Paraíso depois de mortos. E não foi a Igreja que mudou, mas a Revolução Francesa que ensinou os homens a mudar, contra a Igreja.»
Nos Avatares de um Desejo o Bruno Sena Martins leu-me de uma forma que merece um reparo. Aproveito a boleia para algumas reflexões complementares.
Começo pelo reparo. O Bruno deixa implícito que uma pergunta minha, introduzida num texto com funções retóricas, corresponderia, explícita ou implicitamente, a uma posição pessoal. Essa pergunta definiria uma certa cumplicidade com aquele que teria sido o gesto de «coragem» materializado por Bento XVI na lição de Ratisbona.
Relendo-se com atenção a frase sublinhada – «Terá sido então um acto de coragem, uma forma de enfrentar o recuo das democracias perante um lado do Islão que exige cada vez mais, que aspira ao pagamento do tributo e à humilhação do infiel?» – parece-me claro que o futuro do indicativo, seguido de uma interrogação, coloca uma possibilidade, não produz uma afirmação. Porém, importam-me mais outras coisas que o Bruno diz no seu comentário.
Não vou fazer aqui considerações sobre a forma como considero a figura de Ratzinger ou a identidade profunda de um Islão que ele pretenderia, de acordo com as leituras apressadas feitas por alguns dirigentes islâmicos, diabolizar e combater. Aquilo que o papa fez – leia-se, na íntegra, a tradução de «A Fé e a Razão» que saiu ontem na edição portuguesa do Courrier International – foi, de facto, algo que teve muito menos de enfrentamento do que de recolocação, embora de forma conservadora, da necessidade imperiosa de um diálogo de religiões.
Bento XVI, que jamais pretendi «defender» – aliás, nem católico sou, e muito menos «ratzingueriano» – argumentou ali, principalmente, contra a impossibilidade da conversão pela violência, afirmando que «agir de maneira não racional é contrário à natureza de Deus». Se tal contraria alguns princípios corânicos, ou algumas intenções actuais dos islamitas, isso já é outra questão. No exercício das suas funções, aparentemente, o papa pode não ter sido oportuno. Mas lendo com rigor aquilo que ele disse, parece-me um texto coerente com uma posição não-defensiva, por parte da Igreja católica, perante a agressividade que, como o Bruno reconhece, transparece de certas leituras, actualmente dominantes, dos textos corânicos. Como gostava de dizer um velho professor meu, «são dois mil anos de manha».
A «perigosa deriva civilizacional de confrontação totalizante», da qual sou acusado, não estava, pois, presente no meu texto. O meu ponto de vista é muito mais equilibrado – como, embora diferente, me parece ser também o do Bruno Sena Martins – e isso pode ser percebido em outros textos que aqui tenho escrito sobre o problema do confronto que tem vindo a ser requerido pelo islão «fundamentalista» e ao qual, em regra, o «ocidente» tem respondido de forma atabalhoada e quase sempre profundamente criticável.
Neste caso, teria preferido que a frase citada tivesse sido aquela com a qual fechei o parágrafo onde se encontrava a interrogação: «No fundo, aquilo que me importou não foi propriamente o que disse Bento XVI, os motivos pelos quais o disse naquele lugar e naquele momento, mas antes a tenebrosa consideração de ele não ter o direito de o dizer.»
Num comentário aparecido no Esplanar sobre a breve conversa que por interpostos blogues tenho mantido com Luís Mourão, Carlos Leone faz notar que ela enuncia um «desentendimento incurável, mas amigável». E liga esta benignidade com aquilo que pode, de facto, ser essencial: tal é possível apenas por seremos, não se sei ambos, «não-crentes». Talvez seja verdade no que me toca: os amigos católicos – não me dou com muçulmanos, juro sobre qualquer livro que apenas por uma sucessão de acasos -, mesmo os mais tolerantes, «progressistas» (como se lhes chamaria noutra época), cultos e afáveis, deixam-me sempre de pé atrás. Quando, por um descuido da fala, digo alguma coisa que lhes toca o santo dos santos (há dias disse a um que considerava ter o actual papa «uma insuportável voz de padreca», o que é uma triste verdade), capto então, por uma fracção de segundo, um olhar que me deixa gelado. Só entre os não-crentes consigo, de facto, dizer aquilo que me vem à cabeça a propósito do sagrado sem qualquer recriminação.
Temo-nos servido desta conversa, Luís Mourão e eu, não para opor ideias, mas como pretexto para discorrer sobre as nossas. Julgo que ambos entendemos as razões do outro, como sabemos que ao privilegiar-se uma forma de abordar os textos e as ideias, jamais se exclui a seguinte. Por isso, que posso fazer senão concordar uma vez mais com ele quando se diz «contra a estupidez das ideias feitas e das vidas vividas por imitação»? Ou apoiá-lo de novo quando recorda, a quem ande um pouco distraído, que toda a leitura é única? Só que se trata aqui do acto de ler, de decifrar, não da acção de papaguear imposta aos simples para lhes domar os impulsos e os conduzir à acção alienada. E o papagueamento existe, rodeia-nos, ameaça-nos, e, por muito que nos repugne, não o podemos ignorar. Porque, entre outras coisas, é sobre ele que se fundam os poderes que nos submetem e a incapacidade para os contrariar. E porque o seu ruído nos pode levar ao silêncio. Daí o interesse que mantenho, procurando estendê-lo a outros – a começar pelos que têm o dever de ouvir-me… – por essa forma activa de sobrevida em estado cataléptico.