Eles vivem!

Num comentário aparecido no Esplanar sobre a breve conversa que por interpostos blogues tenho mantido com Luís Mourão, Carlos Leone faz notar que ela enuncia um «desentendimento incurável, mas amigável». E liga esta benignidade com aquilo que pode, de facto, ser essencial: tal é possível apenas por seremos, não se sei ambos, «não-crentes». Talvez seja verdade no que me toca: os amigos católicos – não me dou com muçulmanos, juro sobre qualquer livro que apenas por uma sucessão de acasos -, mesmo os mais tolerantes, «progressistas» (como se lhes chamaria noutra época), cultos e afáveis, deixam-me sempre de pé atrás. Quando, por um descuido da fala, digo alguma coisa que lhes toca o santo dos santos (há dias disse a um que considerava ter o actual papa «uma insuportável voz de padreca», o que é uma triste verdade), capto então, por uma fracção de segundo, um olhar que me deixa gelado. Só entre os não-crentes consigo, de facto, dizer aquilo que me vem à cabeça a propósito do sagrado sem qualquer recriminação.

Temo-nos servido desta conversa, Luís Mourão e eu, não para opor ideias, mas como pretexto para discorrer sobre as nossas. Julgo que ambos entendemos as razões do outro, como sabemos que ao privilegiar-se uma forma de abordar os textos e as ideias, jamais se exclui a seguinte. Por isso, que posso fazer senão concordar uma vez mais com ele quando se diz «contra a estupidez das ideias feitas e das vidas vividas por imitação»? Ou apoiá-lo de novo quando recorda, a quem ande um pouco distraído, que toda a leitura é única? Só que se trata aqui do acto de ler, de decifrar, não da acção de papaguear imposta aos simples para lhes domar os impulsos e os conduzir à acção alienada. E o papagueamento existe, rodeia-nos, ameaça-nos, e, por muito que nos repugne, não o podemos ignorar. Porque, entre outras coisas, é sobre ele que se fundam os poderes que nos submetem e a incapacidade para os contrariar. E porque o seu ruído nos pode levar ao silêncio. Daí o interesse que mantenho, procurando estendê-lo a outros – a começar pelos que têm o dever de ouvir-me… – por essa forma activa de sobrevida em estado cataléptico.

    Opinião.