Author Archives: Rui Bebiano

A OPA e eles

Apesar do estrépito mediático, aquela OPA, como qualquer OPA, desinteressou-me de todo. Bem sei que jamais serei próspero e invejado por não ligar muito à vida financeira do país – ou à minha própria vida financeira –, mas talvez seja um pouco mais feliz assim, sem apertos de ventre por causa do valor das acções, diarreias determinadas pela oscilação dos preços do crude, náuseas impostas pelas sequelas de um qualquer golpe de Estado ocorrido no principado de Andorra. Por isso, pouco mexeu com a minha pacata existência a recém-concluída novela (será que foi?) a propósito da oferta pública de venda das acções da Portugal-Telecom. E, em princípio, nem deveria quer saber – como o não querem saber talvez uns 99% dos portugueses – se foi o dr. Granadeiro ou o eng. Belmiro quem ganhou a contenda. Mas, sinceramente, comecei a preocupar-me um pouco quando ouvi na televisão as entrevistas balbuciantes dos accionistas que em assembleia votaram contra as pretensões da Sonae. Soou-me muito a capitalismo «de patrões», e não a atitude «de empresários». A conservadorismo de quem deseja o lucro imediato e tem medo do risco e da ousadia que, tanto quanto ouvi dizer, serão a fonte da fortuna. Mas poderá ser impressão minha. Coisa de ignaro em questões de boa e de má moeda, um tipo que se esquece sistematicamente de abrir os suplementos de Economia.

    Apontamentos

    Busca Fidel

    No

    Tanto ou mais eficazes que os processos de censura directa, a manipulação e a sonegação da informação representam dois dos instrumentos centrais utilizados pelos regimes autoritários para controlarem a circulação de uma opinião livre e dos projectos capazes de os contrariarem. Impede-se deste modo o aparecimento e a afirmação de políticas ou de modelos culturais alternativos, criando-se as melhores condições para que a ordem das coisas possa ser perpetuada. Os Estados totalitários do século XX levaram ao limite essa tarefa de apagamento da diferença e de imposição do pensamento único, chegando ao ponto – tal como, de forma extrema, aconteceu no Camboja dos khmers vermelhos ou acontece ainda na Coreia do Norte – de se esforçarem por apagar do horizonte visível pela população toda a realidade não-controlada, situada para lá das fronteiras de um território insulado, vigiado, aterrorizado. Tivemos uma experiência desta natureza no Portugal de Salazar, que algumas vozes têm nos últimos tempos procurado descrever como moderada, e até, de certa forma, benigna.

    Será este olhar benigno sobre o controlo das consciências que mantêm aqueles que insistem em conceber a Cuba actual como uma experiência de «democracia possível», de algum modo perfeita pois apenas exclui aqueles que dela não possuem uma perspectiva positiva, ou então que, pela via dessa mesma descrença, implicitamente servem o inimigo americano. A censura existe e os prisioneiros políticos também, mas estes seriam apenas aos «contra-revolucionários», aqueles que se atreveriam a questionar um governo de indiscutível bondade e de irrepreensível perfeição. Só que o pior, o mais duro e sufocante para quem se atreve a sentir-se desalinhado, ou, pior ainda, para as pessoas que não têm a possibilidade de conhecer o mundo para além do canal único de televisão e dos dois jornais controlados pelo Estado, é a omissão da informação. E mesmo a Internet, de acesso circunscrito e vigiado – como acontece também na «moderníssima» China – tem sido integrada neste processo de silenciamento e de controlo. Lembra-o hoje o Público, no novo suplemento Digital, ao revelar-nos o Buscador 2por3 (www.2por3.cu), o Google cubano, que apenas pesquisa nos sites patrocinados pelo Governo de Havana ou pelos media oficiais. Que mantém uma secção que se ocupa apenas com os discursos de Fidel. E que, por exemplo, tem como dez primeiros resultados, se digitarmos «Portugal», duas referências a movimentos de solidariedade portugueses pela libertação dos «cinco heróis cubanos» detidos nos EUA, três à actuação de Portugal no Mundial da Alemanha e cinco a discursos de Castro durante a sua última visita ao nosso país, ocorrida no já longínquo ano de 2001.

      Opinião

      Pobrezinhos mas invejados

      Um estudo sobre a identidade nacional, desenvolvido no âmbito da actividade do Instituto de Ciências Sociais, revela que a História e o futebol constituem os dois maiores motivos de orgulho dos portugueses. Sobre o futebol pouco me espanto e nada me admiro, dada a carência de experiências contemporâneas de relevância no confronto público com outros países mais desenvolvidos. Figo e Cristiano Ronaldo são embaixadores seguros da nossa existência, ao passo que Durão Barroso se mostra apenas um vice-cônsul expedito e os Madredeus perderam o pio. O destaque da História terá, aliás, idêntica motivação, convocando os pergaminhos, herdados do salazarismo, da nossa vivência comum de fidalgos arruinados. Pobrezinhos, sim, mas invejados pelos outros. Por mim, preferia não ser invejado e viver bem, como acontece com a maior parte dos suecos, dos islandeses e dos japoneses, que relativizam a História e não stressam com os resultados do futebol. Mas julgo que estarei mais próximo da minoria dos inquiridos.

        Órfãos do Che

        Pós-Che

        Não adianta olhar para o lado e passar à frente. O Che vive e, por mais morto que esteja, insiste em confrontar-nos. Não a sua alma errante, obviamente, mas a sua imagem lembrada, evocada, manuseada, maquilhada. A suprema cosmética conseguiu-a em 1997 Fidel Castro, ao decidir – como acaba de provar a reportagem «Operación Che. Historia de una mentira de Estado», publicada num número especial da revista Letras Libres por Maite Rico e Bertand de la Grange – o enorme embuste que foi a exumação do seu cadáver (sem testes de ADN) e a deposição dos supostos restos mortais, em cerimónia apoteótica, num mausoléu em Havana voltado para o planeta. Quem no-lo lembra é Mario Vargas Llosa, no artigo «Los huesos del Che», recém-saído no El País, e que sublinha de uma forma transparente, sem marcas de repulsa ou de sedução, alguns dos sentidos tomados pela manipulação contemporânea da memória de Ernesto Guevara de la Serna.

        «El Che representa una hermosa ficción, un personaje del que la historia contemporánea está huérfana: el héroe, el justiciero solitario, el idealista, el revolucionario generoso y desprendido que realiza hazañas soberbias y es, al final, abatido, como los santos, por las fuerzas del mal. No importa que los historiadores serios muestren, en trabajos exhaustivos, que el Che Guevara real, de carne y hueso, estaba muy lejos de ser ese dechado de virtudes milicianas y éticas. Que fue valiente, sí, pero también sanguinario, capaz de fusilar a decenas de personas sin el menor escrúpulo, y que, desde el punto de vista militar, sus fracasos y errores fueron bastante más numerosos que sus éxitos. Es verdad que era consecuente con sus ideas, sobrio y austero, incapaz de las payasadas y dobleces de los politicastros profesionales. Pero, también, que la violencia y eso que Freud llamó ‘la pulsión de muerte’ lo atraían y guiaron su conducta tanto como su pasión por la aventura y la revolución.»

        O pior que podemos fazer, nas tentativas de traçar abordagens compreensivas dos personagens que marcam a História, é desumanizá-los, transformá-los em símbolos, confundi-los com deuses ou com heróis. Pois apenas estes são perfeitos. Nas nossas cabeças, claro.

          Olhares

          A preto e branco e às cores

          Alexandre O'Neill

          Podemos detectar, do imediato pós-Abril à actualidade, uma certa tendência para desenhar o Estado Novo a preto e branco. Os principais e quase sempre involuntários responsáveis por este estado de coisas são muitos dos que lhe sobreviveram e que dele nos vão legando uma memória selectiva. Fixam-se principalmente na evocação dos momentos mais sonoros, ou mais dramáticos, ou mais difíceis, capazes de terem deixado um inequívoco legado na vida colectiva. Ou então na experiência individual, mas de acordo com esse processo de depuração do passado que ocorre sempre que cada um de nós ascende do pessoal, e único, ao domínio das generalizações encaixadas na forma de máximo denominador comum. E rejeitam tudo o resto. Alguns historiadores incorrem no mesmo lapso, ao aceitarem apenas a leitura do salazarismo construída na tradição da esquerda – da mais à menos ortodoxa – que muitas vezes procurou integrar a investigação em interpretações que a antecediam. O mesmo, aliás, se passou com a historiografia conotada com a direita, a qual avalia a democracia saída da «revolução dos cravos» como um tempo de decadência e a época que a antecedeu como essencialmente gloriosa.

          No entanto, à medida que o reconhecimento daquele período aperta a sua angular, que se ensaiam sucessivos estudos de caso, que se registam histórias de vida, ambientes, práticas e gestos que não constam das publicações sobre o período centradas na vida das elites, nem dos manuais oficiais que ensinam o salazarismo às crianças – e aqui são absolutamente centrais o testemunho oral, a correspondência privada, os arquivos individuais –, pode perceber-se que algo mais acontecia. E a época ganha outra vida. E outra cor. É essa a impressão mais vivida com que fiquei da leitura do excelente Alexandre O’Neill. Uma Biografia Literária (e pessoal) escrita por Maria Antónia Oliveira. O «Sr. Nildo», comedor voraz, fumador compulsivo, frequentador de tascas, amante de muitas mulheres e enorme poeta (praticamente desemparelhado, à época), cruza ali, com os seus amigos ou com parceiros de momento, um universo de profanação do «pequeno Portugal», de provocação do «português suave». E a experiência da boémia enquanto processo de resistência. Parte significativa de uma forma de oposição não alinhada, situada fora da vida e da luta das classes populares, «pequeno-burguesa» se se quiser – mas propedêutica da queda do regime –, que tem sido quase ignorada, e cujo eco, em larga medida apoiado em textos inéditos e testemunhos pessoais, se pode encontrar neste livro.

            História

            Foot-ball

            Foot-ball

            «Para poder jogá-lo, é necessário ser são de coração e pulmões, ter pernas rijas, pé leve, resistência para uma a duas horas de campo, visão rápida e presença de espírito.

            Além de promover o desenvolvimento harmónico do corpo, é o foot-ball uma escola de coragem, de decisão, de consciência da própria responsabilidade, de disciplina, de solidariedade, de sacrifício até, em que a personalidade de cada um se apaga diante do interesse colectivo.

            (…) Além das vantagens directas ligadas aos exercícios físicos, provocam eles resultados indirectos do maior alcance, afastando a mocidade da frequência dos cafés, das casas de tavolagem e dos bordéis. É, em regra, nos cafés, respirando um ar viciado, que os rapazes se intoxicam pelo álcool, muitas vezes com uma inconsciência que assombra.»

            H. Teixeira Bastos, A Vida do Estudante de Coimbra (antiga e moderna), Coimbra, 1920

              Recortes

              Almanaque

              Leitura Furiosa

              De fio a pavio. A expressão caiu em desuso, mas foi assim – no todo e a fundo, com muita surpresa e algum entusiasmo – que, durante duas semanas de um Agosto do princípio deste século, li de enfiada os dezoito números (e um suplemento) da revista Almanaque que saíram entre Outubro de 59 e Maio de 61. A nota de abertura do primeiro número não enganava:

              «Este Almanaque (…) vem ao gosto moderno, segundo a linha 1959, trata por tu o teatro de Beckett e Ionesco, os escritores da Beat Generation, os Pat Boone ou os Georges Brassens, os íntimos de Françoise Hardy e as verdadeiras causas do caso Pasternak. Só não conhece os segredos dos painéis de Nuno Gonçalves, mas há-de chegar lá um dia.»

              No número 2, o tom mantinha-se, sublinhando-se a intenção de contrariar o salazarista «viver habitualmente» e olhar o mundo para além dos monótonos postos fronteiriços de Quintanilha ou Vilar Formoso:

              «Bem se ralavam os nossos trisavós com terem ou não terem morrido mil pessoas nas inundações da Manchúria ou ter mudado de coronel a presidência da Bolívia. Nós não. Logo de manhã começamos a preocupar-nos com coisas que rigorosamente não nos dizem respeito. Que o Sultão de Alahabar tem trezentas mulheres, que em Munique uma velha bebeu por aposta cem litros de cerveja e morreu. E temos pena do Sultão, e temos inveja da velha.»

              «O programa da revista era simples» – dirá José Cardoso Pires, um dos seus fundadores, em entrevista ao Século Ilustrado – procurando-se principalmente «ridicularizar os provincianismos, cosmopolitizados ou não, sacudir os bonzos contentinhos e demonstrar que a austeridade é a capa do medo e da falta de imaginação». O anseio de universal que transparecia das páginas da revista – com uma profusão de temas e citações e uma ousadia gráfica que chegaram a ser tomadas, à esquerda e à direita, como expressão de afectação – não se limitava pois a vagas intenções, distribuindo-se por secções e artigos nos quais era uma constante a aproximação a outras realidades e maneiras de estar no mundo. Reportagens mensais sobre países e povos considerados exóticos (Afeganistão, Israel, Saara, Pérsia, Polónia, os índios americanos, os esquimós), artigos sobre a forma como se divertiam os habitantes de Londres, Tóquio ou Nova Iorque, pequenos textos sobre filósofos ou rockers contemporâneos (sem grande distinção formal entre as duas categorias de gente), uma secção («As latitudes da felicidade») que procurava fazer um retrato da psicologia e das formas de vida das jovens mulheres da Suécia, de Inglaterra, dos Estados Unidos, da Alemanha, de França ou da Itália.

              E ainda, tal como um verdadeiro almanaque – lembra-o agora Maria Antónia Oliveira num passo da recentíssima biografia literária de Alexandre O’Neill (outro dos fundadores, ao qual se devem juntar, para além de Cardoso Pires, Luís de Sttau Monteiro, Augusto Abelaira, José Cutileiro, João Abel Manta, Baptista-Bastos e o jovem Vasco Pulido Valente) –, com «muitas fotos, desenhos, artigos frívolos, astrologia, receitas, anedotas, artigos sobre actores de cinema, curiosidades, críticas de discos e de filmes, floricultura» e outras prosas consideradas mais sérias. Uma «espécie de magazine» bastante enviesado, num tempo em que eles eram mais que raros e absolutamente necessários.

              Publicado originalmente em Passado/Presente
              Fotografia de Eduardo Gageiro, retirada de um dos números da Almanaque

                História

                Ainda o Público light

                Não me apetecia voltar à vaca-fria do Público remodelado. Não me apetecia falar ainda da Pública de domingo, que parece assumir em parte a futilidade do inenarrável e saudavelmente extinto suplemento Xis. Não me apetecia referir também a forma com o Local, tão útil para tantas pessoas – para os leitores de Coimbra e de toda a região centro deste país, por exemplo – foi literalmente implodido. Mas o Rui Ângelo Araújo fez-me mudar de ideias. Concordo com ele e com ele partilho a secreta e (provavelmente) infundada esperança revelada no último parágrafo deste post d’Os Canhões de Navarone.

                  Da decadência do Entrudo

                  « – O Entrudo está perdido. Eu lembro-me que, sendo rapaz, houve tal Entrudo na minha rua, que por conta das peças que ali se fizerão, houverão vinte brigas e quatro mortes. Então havião homens de bigodes; porém, hoje, estes Peraltas, ainda que lhes botem três arrates de polvilho no topete, fazem uma cortesia, e vão andando seu caminho. Oh tempora! Oh mores!
                  (…)
                  – Pois eu lembro-me que em hum Entrudo gastei três arrobas de polvilhos e nove arrates de grangea; todos os vestidos ficaram perdidos, as alcatifas, os cortinados, e as cadeiras, nunca mais prestarão para nada. Eu andei toda a Quaresma com huma doença nos olhos, que me embaraçou de ir ver as Procissões. Ah, Senhores, muito me diverti aquelle Entrudo!»

                  Comedia nova, intitulada O Entrudo desabuzado em Lisboa, Lisboa, off. de Domingos Gonsalves, 1783

                    Recortes

                    À mercê do medo

                    Medo na cidade

                    Desprovidos de panoramas do futuro, mas intimados a cada dia a definir mais e mais objectivos, sobrevivemos à mercê do medo.

                    «O progresso, que foi outrora a mais extrema expressão de um optimismo radical, promessa de felicidade universal e eterna, cedeu o seu lugar ao pólo oposto, anti-utópico e fatalista, das previsões: hoje em dia, representa a ameaça de uma evolução impiedosa e inesquivável, que não pressagia paz nem tranquilidade, mas crises e tensões contínuas, ao mesmo tempo que nos não consente um momento de repouso; uma espécie de jogo de “quem vai ao ar, perde o lugar”, em que a mais pequena distracção implica uma derrota irreversível e a exclusão sem concessões. Em lugar das grandes esperanças e sonhos dourados, o progresso suscita noites de insónia, semeadas de pesadelos, em que nos vemos ficar para trás, perdemos o comboio ou nos atiramos da janela de um automóvel que, entretanto, acelera o andamento.»

                    Zygmunt Bauman, «Em busca de refúgio na Caixa de Pandora» (in Confiança e Medo na Cidade)

                      Recortes

                      Palmatoadas

                      Castigo

                      Todos ouvimos, diariamente, palavras e expressões que surgem datadas, remetendo para tempos que se vão esfumando. Há dias, quase me ia zangando com um amigo que discordava de um exemplo, adiantado de forma peremptória, que me parece ilustrativo de situações deste tipo. Dizia-lhe eu que, tal como «larápio», também a palavra «gatuno» praticamente caiu em desuso, confinada – pelo menos em Portugal continental – à exígua panóplia de epítetos grosseiros com os quais se costumam brindar os árbitros de futebol. E, além disso, não se escreve ou pronuncia «gatuno», mas sim «ga-tu-no!». O meu amigo, adepto pertinaz da luta de classes e do Vocabulario Portuguez e Latino do Padre Rafael Bluteau, não conseguia conceber um mundo sem «gatunos» (e também sem «amos», outra palavra decaída).

                      Em situação análoga encontra-se a expressão «erro de palmatória», utilizada por alguns autarcas de província (ainda hoje, na rádio, por um presidente de Câmara), e por Alberto João Jardim, para combaterem determinadas medidas do governo central. Recorro ao Houaiss, que identifica a palmatória, ou férula, como uma «pequena peça circular de madeira com cinco orifícios em cruz e provida de um cabo, usada como instrumento de castigo para bater na palma da mão do castigado». Uma «menina-de-cinco-olhos», pois, utilizada no passado para punir alunos indisciplinados. De acordo com a Wikipedia, «no Brasil, antigamente era costume nas festas de formatura os alunos presentearem os seus professores com palmatórias, como sinal de submissão à autoridade». Actualmente, porém, o seu uso é considerado crime na maioria dos países ocidentais, tendo sido a doce Inglaterra o último país ocidental a aboli-lo, em 1989. Por isso, integrar no discurso político a memória de um tal objecto, se é verdade que pode ser entendido como exemplo de uma «metáfora morta» ao serviço da retórica, funciona também como vestígio de um modelo de autoridade e de um tipo de castigo que sobrevivem, fora da lei, na matriz cultural de quem a invoca. É feio e fica mal, prontos.

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                        Ainda me torno iberista…

                        Agora que passaram seis dias sobre a renovação do Público – e mesmo sem tomar ainda em consideração a edição de domingo – creio que já posso emitir uma opinião menos superficial sobre o assunto. Reafirmo a minha primeira impressão, que não foi de simpatia. Junto, àquilo que escrevi no dia 12, um aspecto que agora me parece definitivo: o texto é quase sempre mais curto e simplificado, funcionando, muitas das vezes, como simples «ilustração» da imagem que o acompanha. E até o suplemento Ípsilon, que prometia outras possibilidades, desiludiu um pouco. Veja-se, por exemplo, o tom ligeiro, ou ligeirinho, do artigo sobre o sempre actual tema do plágio (não é a sua autora, Alexandra Lucas Coelho, que questiono, mas sim o modelo ao qual esta se submeteu).

                        Não sei se, desta maneira, será possível captar os novos leitores que se procuram. Mas, disso tenho a certeza, muitos dos antigos sentir-se-ão um tanto perturbados nas suas expectativas. E não porque rejeitem a novidade. Falo por mim: procuro, no jornal da manhã, um espaço de solidão e de abertura, capaz, por entre as migalhas da torrada e o sumo de laranja, de pôr a carburar a conversa com o mundo, pela via da escrita e do pensamento, que me está na matriz. Não procuro frases fugazes (zap!), títulos vistosos (zap!), imagens em Cinemascope e Color De Luxe (zap!), pois, para isso, tenho a leitura frenética da Internet e das revistas, da qual, aliás, sinto também alguma necessidade. E tenho a televisão. E o telemóvel 3G. Sendo assim, vou continuar a ler o jornal de JMF – até porque gosto de alguns dos seus colaboradores e a alternativa, o DN, tem navegado um tanto à deriva – mas vou passar a procurar algo de mais substancial nas páginas do El País. E ainda me torno iberista…

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                          Perplexidade

                          reading

                          Num inquérito alargado e plural que envolveu uma amostra de 2851 (perto de 15%) dos alunos da Universidade de Coimbra (*), cerca de 18,3% dos inquiridos revelou jamais ler livros. Destes, 7,3% pertencem às Artes e Letras, 10,9% ao Direito e 13% às Ciências Sociais, áreas que estão num dos extremos da escala. No outro, quase 48% de Desporto e 40% dos alunos das diversas Engenharias afirmaram jamais pegarem em tais objectos. Do conjunto, para cada rapariga que declarou não ler livros, existem três rapazes que nunca o fazem. Partindo do princípio – não provado, mas que me parece admissível – de acordo com o qual muitos dos inquiridos terão, por pudor ou incerteza, entendido que raramente lêem quando de facto nunca lêem, os valores reais poderão ser ainda mais desoladores.

                          Acredito que o livro em papel se está a transformar, cada vez mais rapidamente, num suporte complementar dos processos de aquisição de informação e conhecimento. Todavia, se por um lado ainda não chegámos ao previsível ponto de não-retorno que consumará a sua redução aos espaços de conservação e arquivo, por outro, parte substancial da informação em rede é ainda parcial e bastante insuficiente. Sendo assim, podemos questionar-nos sobre onde irá buscar a informação da qual precisa para a sua formação a parte desses alunos – e, acrescente-se, 33% deles também declarou que nunca ou raramente lê jornais – que conclui os cursos com formal aproveitamento. Mas o pior de tudo é imaginar o perfil, a sensibilidade e os processos de percepção do mundo desses futuros «doutores» e «engenheiros» que desconhecem os prazeres e os safanões proporcionados pela leitura física do livro.

                          (*) Inquérito integrado nas iniciativas de um projecto de investigação – da responsabilidade de Elísio Estanque e de mim próprio – do qual em breve serão divulgadas as principais conclusões. Mais alguns dados parciais aqui.

                            Apontamentos

                            Colunex

                            Não poderia estar mais de acordo com aquilo que Eduardo Pitta escreveu a propósito das pobres credenciais de muitos dos nossos colunistas «de referência». Também me tenho questionado sobre as razões do destaque atribuído, em respeitados jornais da nação, a pessoas que se limitam a alinhar «de carreirinha» os lugares-comuns dos directórios partidários. Pois se eu, que sou tímido, distraído e bastante caseiro, conheço dezenas de cidadãos que escrevem melhor, têm ideias mais originais, possuem uma capacidade crítica superior à daquelas baças e previsíveis pessoas, porque motivo os sociáveis e sempre bem informados directores desses jornais lhes têm continuado a garantir a intangibilidade do direito de admissão? Suponho que por inércia não será.

                              Opinião

                              Brevíssimas notas pós-11 de Fevereiro

                              # Uma vaga de civismo e de razoável tolerância dominou a campanha, se a compararmos com as batalhas apocalípticas travadas em 1998 entre cruzados e sarracenos. Não se verificaram grandes cenas de peixeirada (bom, a D. Laurinda Alves não conta, pois é uma senhora).

                              # Existem importantes correntes de opinião e de militância cívica que são absolutamente transversais na sociedade portuguesa. Os partidos políticos começam agora a entendê-lo, ainda que possuam uma tendência inata para o esquecerem depressa. Espero enganar-me.

                              # Uma parte da esquerda percebeu que uma outra, que não pensa tal e qual como ela, não é necessariamente composta por traidores do povo, adeptos da mesma Igreja metodista que frequenta George W. Bush e vis serventuários do capitalismo. Óptimo sabê-lo, camaradas e amigos!

                              # Como era de prever, a Igreja católica começa a recuar, em termos de influência. Principalmente junto dos jovens e nos ambientes urbanos. Renascerá, como sempre, mas para isso precisará ganhar uma outra cara. Aceitar a contracepção e a educação sexual nas escolas são já pequenos passos que folgo constatar.

                              # O problema do aborto não desapareceu, evidentemente. Nem o combate por vidas cada vez mais dignas e autónomas. Apenas existe agora um terreno mais limpo para os enfrentar.

                                Opinião

                                A nova cara do Público

                                ler o jornal

                                A primeira impressão é-me pouco simpática. Não pela inovação em si. Acontece apenas que existe espaço livre a mais (para o meu gosto, claro), fotografias demasiado grandes (para isso existem as revistas), um lettering que se me revela de difícil apreensão (poderá também ser este um sinal subliminar da minha oftalmologista), um logotipo que me deixa os olhos a arder (novo sinal?), alguma confusão na disposição dos colunistas (falta de hábito, admito), uma arrumação dos Classificados que os parece remeter para um mundo paralelo (esquisitice minha, provavelmente). Pelo sim, pelo não, durante uns dias, vou comprar sempre o Público (que leio desde o número um e quero muito continuar a comprar) e o Diário de Notícias (com o qual aprendi a ler, e que, talvez por isso, me oferece sempre um certo sentimento de pertença a não sei bem o quê). O futuro me fará ver como é que isto vai acabar.

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                                  Da «superioridade moral» do Sim

                                  Lonely

                                  Sempre evitei aceitar que alguém, uma ideia, uma determinada atitude, a partilha de um conjunto de princípios ou de convicções, possam determinar uma qualquer forma de «superioridade moral». A percepção da fragilidade e da imaterialidade da condição humana, associada a uma visão optimista e céptica do mundo, têm-me ajudado a fugir a essa tentação de me considerar superior – pela forma como penso ou actuo, pelas certezas passageiras que partilho – às pessoas com as quais pouco ou nada tenho a ver. Por vezes indigno-me com elas, outras vezes ignoro-as, mas jamais considero deter um qualquer valor de superavit moral. De vez em quando, porém, caio na tentação de contradizer esta espécie de filosofia de vida.

                                  É o que me tem acontecido nestes últimos dias, no contexto do confronto – mais confronto que debate – entre os adeptos do Sim e os do Não, a propósito do referendo do próximo domingo. Senti isso quando olhei, e quando ouvi, aquela plateia que, do lado dos defensores do actual estado de coisas, apareceu no último «Prós e Contras» da RTP1. Primeiro olhei para trás e vi um conjunto de pessoas triste e pobres, algo perdidas no meio de tantas luzes e de senhores e senhoras bem-falantes e bem-penteados, claramente ali plantadas por instituições religiosas ou de caridade social. Pessoas que jamais estariam, espontaneamente, num debate daquela natureza. À frente delas, os seus «patrões». Quase apenas gente «de bem» onde, por detrás daquele imutável sorriso que apenas os fanáticos são capazes de manter, cada palavra, cada proposta, soava a total hipocrisia, a vergonhosa mentira, a completa insensibilidade, por vezes a uma cegueira fácil de admitir a quem não sabe, ou não quer saber, das consequências sociais daquilo que propõe. Em relação àquela gente, a tudo aquilo que ela representa, admito que me sinto tentado a afirmar, associado a todos aqueles que se lhes opõem, alguma superioridade moral. De entre eles, apenas desculparei os que defendem o que defendem com base em critérios de fé. Mas como a fé é igualmente uma coisa que me incomoda, confesso que também em relação a ela, no gozo de uma liberdade não condicionada a quaisquer dogmas, experimento uma certa dose de sobranceria. Vamos ver se isto passa no dia 11.

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