Author Archives: Rui Bebiano

Uma tradução drôle

Li Drôle de Jeu há muito tempo. Numa edição francesa que um amigo me emprestou, convencido que a leitura do romance de Roger Vailland faria de mim – como o fez de muitas pessoas mais ou menos da minha geração – um verdadeiro militante das causas da esquerda e do antifascismo. Não foi o romance que formou as minhas convicções da época, mas li-o muito emotivamente, quase febril. Mais tarde tentei, sem o conseguir, comprar a edição portuguesa da Ulisseia, que saira em 1959 com um prefácio de José Cardoso Pires e que Hélder Macedo havia vertido para o português sob o título Cabra Cega. Já no final da década de 1980, a Europa-América lançaria uma outra tradução, que nunca vi mas sei ter mantido o mesmo título. E assim permaneceu identificado o romance de Vailland nos inventários de muitos milhares de leitores. Até que, neste Julho de 2007, os Livros de Brasil editaram Drôle de Jeu – com uma bela capa, aliás – intitulando-o… Jogo Curioso (!!!). Comprei o livro porque queria muito ter uma edição em português, mas ainda não comecei a releitura, pelo que não posso falar desta nova versão. A tradução do título, porém, não promete nada de bom. Ela é só por si qualquer coisa de lamentável e uma prova de ignorância do trabalho anteriormente feito. E se o tradutor pretendia reinventar o título – uma opção desde logo muito discutível e potencialmente enganadora – deveria ter em linha de conta que «drôle», significa estranho, bizarro, esquisito, singular. Jamais curioso.

[8/9/2007] Escrevo após a leitura desta nova edição (infelizmente, sem a possibilidade de a cotejar com o original). Não seria justo se não dissesse que os meus receios se mostraram menos fundados do que supunha. Esta versão lê-se com agrado, com raros momentos nos quais se nota que «alguma coisa» não está bem. Erro sistemático, que me é particularmente desagradável, é o uso – aliás, cada vez mais comum na linguagem coloquial – da palavra «encarregue» como particípio passado do verbo «encarregar». E permanece a questão do título: agora ainda me parece mais absurda a escolha do tradutor.

    Etc., Leituras

    Silêncio e solidão

    Silêncio e solidão marcaram sempre, para sempre, a obra de Ingmar Bergman (1918-2007). Saindo do cinema numa noite de inverno, no país rectangular e pronunciado em surdina, seguia pensando – lembro-me muitíssimo bem – em silêncios mais remotos mas não menos difíceis. Em solidões menos impostas mas igualmente fatais e insuportáveis.

      Apontamentos, Cinema

      Tour de France

      Dantes gostava de ciclismo. Às vezes com algum amigo, outras vezes sozinho, uma das minhas brincadeiras nas longuíssimas férias de verão consistia em fazer corridas com umas pequenas bicicletas de plástico colorido movidas a golpes de dados. As provas, que incluíam até um prémio de montanha, viviam principalmente dos duelos entre o sportinguista João Roque e o benfiquista Peixoto Alves (bem, já não sou da época do Trindade contra o Nicolau…). Quando Agostinho passou a ganhar tudo, desinteressei-me pelo circuito pátrio e internacionalizei a corrida, que incluía agora os duelos mortais e alpinos entre Jacques Anquetil e Raymond Poulidor, aos quais se juntaria depois o próprio Agostinho. Admirava em todos eles o esforço visivelmente brutal, feito de músculos e vontade, do homem absolutamente sozinho contra o calor do sol, as rajadas do vento e os grandes declives. Depois fui-me distanciando. Talvez isso tenha acontecido na altura em que o jogo de equipa se começou a sobrepor à capacidade individual. Já fora de tempo, Lance Armstrong terá sido, porventura, o último dos meus super-heróis do selim e do pedal. Hoje, sem grandes estrelas no pelotão e com a desconfiança instalada devido à sucessão de casos relacionados com o uso de estimulantes, deixei de me interessar por este desporto de estrada. O Tour de France – esse «exercício colectivo de nostalgia» – está a chegar aos Campos Elísios e eu mantenho a televisão desligada.

        Apontamentos, Atualidade

        «Hay que tenerlos»

        Tão rápido no intento de humilhar os funcionários públicos reduzindo-os à condição de culpados de todos os males da nação, e aceitando que sejam afastados aqueles que em palavras ou actos desrespeitem a «nova ordem», o governo continua a condescender com o tom ostensivamente agressivo e provocatório usado pelo funcionário público Alberto João Jardim para se referir ao primeiro-ministro ou aos ministros do governo da República. Não que a situação seja nova, evidentemente, mas ela atingiu agora níveis extremos e absolutamente intoleráveis. As referências recentes à suposta falta de dinheiro para financiar a IVG na Região Autónoma da Madeira – quando se gasta o quádruplo a financiar um rali, se delapidam somas brutais para pagar o fogo-de-artifício do reveillon, ou se paga para que os dois clubes madeirenses de futebol estejam entre os cinco clubes portugueses que de maiores orçamentos dispõem – acompanhando essas referências dos insultos mais ordinários aos representantes do Estado, exigem-se medidas e não apenas vagas declarações de virgens ofendidas (mas um pouco distraídas também). Um caso sério de chantagem e de insubordinação que deveria merecer, no mínimo, uma advertência pública por parte do Presidente da República, do primeiro-ministro e do Tribunal Constitucional. Mas para tal, convenhamos, «hay que tenerlos».

          Atualidade, Opinião

          mundo_novo.mp3

          Por muito que se desdobre em declarações ameaçadoras e incentive atitudes repressivas por parte dos governos, a indústria fonográfica tradicional está com a corda na garganta. Com a generalização da Internet e da banda larga, as capacidades áudio dos novos telemóveis e os versáteis leitores de MP3, a venda de música pelos processos tradicionais entrou numa crise irreversível. Dois episódios recentíssimos vêem prová-lo, para quem ainda possa ter dúvidas. Com um enorme impacto, Prince distribuiu gratuitamente o seu último álbum («Planet Earth») junto com o tablóide britânico Mail On Sunday, enquanto Manu Chao vai lançando uma a uma as faixas do novo «La Radiolina» directamente através do seu site, sem passar pela edição em CD. Manu relativiza mesmo o problema da «pirataria» (ou da troca livre) de música gravada: «Quantos discos de vinil não copiámos para cassetes? Em adolescentes, quando um amigo comprava um álbum, fazíamos 80 gravações. Não tínhamos dinheiro para comprar música mas tínhamos vontade de a ouvir.» Onde irão então os artistas buscar o dinheiro para pagar o seu trabalho? À venda online «à peça» e aos concertos ao vivo, obviamente, pois para estes existirá sempre um público fiel e disposto a alguns pequenos sacrifícios. Um mundo novo e perturbador da velha ordem do mercado da música? Sim, e daí?

            Atualidade, Etc.

            Geração rasca

            Sem a repercussão do artigo de Manuel Alegre, passou quase despercebida a entrevista de António Arnaut ao semanário Visão. No entanto, desprovida do tom aparatoso e plangente de Alegre, ela parece-me muito mais pedagógica e, ao mesmo tempo, capaz de evidenciar o profundo desencanto da geração dos fundadores com os caminhos que vem seguindo o actual PS. Uma abordagem desiludida, mas de certa forma sábia, que não soa a ressentimento, assumindo o que lhe parece ser a inevitável transitoriedade da geração agora no poder. Descreve-a assim Arnaut: «É um produto das circunstâncias. Noto falta de cultura cívica. É gente sem reflexão sobre os comportamentos, a arte, a literatura e a história do nosso povo. (…) Muitos deles não têm uma ideia para Portugal, não reconhecem o país. Vivem do imediatismo, da conquista do poder. Conquistado, vivem para aguentá-lo. Esta geração vale-se mais da astúcia que da seriedade. E aprendeu os ensinamentos de Maquiavel.» Vale a pena ler a entrevista completa.

              Atualidade, Opinião, Recortes

              Prokofiev revisto

              Soube por João Tunes, sempre atento aos meandros da agitprop em curso no rectângulo pátrio, que na próxima festa do Avante! – a qual terá como original e actualíssimo tema «90 anos da Revolução de Outubro, a luta dos trabalhadores e dos povos pela Paz, a Democracia, o Progresso e o Socialismo» – diversas iniciativas irão mostrar o valor e o significado da Revolução bolchevique (obviamente extirpada dos milhares de páginas de revisionismo histórico pós-leninista). Uma dessas iniciativas consta de uma apresentação pública da Cantata Outubro, de Sergei Prokofiev.

              Não deixa de ser curioso, porém, o facto de Prokofiev ter consabidamente mantido, ao longo de grande parte da sua vida, uma relação de grande ambiguidade em relação ao regime soviético. Comporia, é certo, diversas peças de acordo com os cânones do realismo socialista e do culto de Estaline, a troco de um abrandamento das limitações de que foi alvo logo após o seu regresso à URSS em 1934, mas mesmo assim foi sujeito a constantes pressões pessoais, proibido de viajar para o estrangeiro e acusado, como seria de calcular, de «formalismo e cosmopolitismo». E a sua Cantata pelo Vigésimo Aniversário da Revolução de Outubro – que inclui fragmentos de textos de Marx, Lenine e Estaline, tendo sido produzida na mesma época em que escreveu a Cantata Zdravitsa, dedicada ao camarada secretário-geral do PCUS – é por muitos considerada uma sátira a essa Revolução. A equipa de musical advisers do PCP precisa diversificar as suas fontes de informação.

                História

                Com que voz

                Politics

                Liga-me aquilo que Manuel Alegre representa um conjunto de sentimentos contraditórios. Não aprecio o estilo grandiloquente (que já apreciei, aliás, quando ouvia os mesmíssimos tom e timbre de voz na Rádio Voz da Liberdade). Não gosto dele como poeta (embora reconheça a importância simbólica e patrimonial da sua «poesia de combate»). Não sinto grande empatia em relação a um padrão de discurso político assente em pressupostos estritamente éticos (que pode ser respeitável mas já pouco diz aos portugueses com menos de trinta anos). E parece-me excessiva, quando não um tanto ridícula, a construção de uma imagem de geronte do regime, falando «para a estatuária», da qual o próprio parece gostar e que a concepção editorial do artigo que hoje editou no Público («Contra o medo, liberdade») acaba por alimentar.

                Já simpatizo, porém, com a forma como insiste, a contracorrente, no concurso da coerência de princípios para a credibilização (ou na descredibilização) da política e dos políticos. Tal como gosto da forma como tem sublinhado que – por múltiplas razões, entre elas uma efectiva despolitização dos aparelhos partidários – a política não se esgota nos partidos e só fará bem a estes e à própria democracia reconhecê-lo. E, acima de tudo, admiro a sua capacidade para, numa época na qual a esmagadora maioria dos melhores quadros do país se desvinculou claramente da política activa, afirmar que a capacidade de decisão não pode ser «erigida num fim em si mesmo, quase como uma ideologia.» Poucos o dizem e menos ainda são capazes de levantar a voz em favor dessa dimensão crítica e prospectiva da política que é, no fundo, a sua alma. Uma atitude que a lógica «aparelhística», assente na coacção e na fuga ao debate, presa à defesa amoral dos pequenos e grandes interesses de grupo, e à incapacidade de pensar o futuro em termos de desígnio, tem vindo a apresentar como «irrealista» e descartável. Nesta direcção, o artigo aparatoso e amargurado de Manuel Alegre tem algum valor. Temo é que esse valor seja apenas histórico.

                  Atualidade, Opinião

                  O carvão, «futuro da humanidade»

                  Apesar das naturais incompatibilidades da atitude surrealista original perante a moral e a estética do leninismo e do comunismo soviético – as quais levaram Aragon, Pierre Unik, Éluard e Tzara, a abandonarem as suas convicções originais para deixarem de ser simples compagnons de route e se tornarem militantes – é conhecida a fugacidade da aproximação de André Breton ao PCF . Mas nunca entendi o motivo directo que o terá feito entrar por uma porta e logo sair pela outra. Ora acabo de sabê-lo por leituras travessas: em 1932, na primeira e única reunião da Associação de Escritores e Artistas Revolucionários em que participou, destinaram-lhe nada mais nada menos que a tarefa de redigir um relatório minucioso sobre a indústria italiana do carvão.

                    Apontamentos, História

                    Edmund e a memória

                    O Foguetão foi um semanário juvenil de grandes dimensões, impresso a cores e com o caderno exterior em papel couché, fundado e extinto em 1961. Foi a primeira publicação portuguesa a divulgar tiras do Astérix, preludiando a avalancha da BD franco-belga que chegaria a seguir. Lembro-me que tinha uma particularidade da qual gostava muito: utilizava a capacidade gráfica que o tamanho permitia para reproduzir, em dimensões colossais, factos e objectos do passado, literalmente revelados nas suas entranhas (ainda me lembro do interior do navio-almirante de Nelson), como a construção das pirâmides, a batalha de Trafalgar ou o naufrágio do Titanic. Uma dessas montagens contava a conquista do Monte Everest pelo explorador neozelandês Edmund Hillary e o seu guia sherpa Tensing Norgay (que um dia, num texto descuidado, confundi com Chang, o tibetano amigo de Tin-Tin). Hillary, de quem ouvia falar pela primeira vez, surgia ali como um herói apenas comparável aos semideuses homéricos. Talvez por isso, na memória que então comecei a construir, ele me parecesse um homem que pertencia já ao passado, com toda a certeza morto e merecidamente evocado. Foi pois com algum espanto que encontrei hoje, num jornal diário, uma referência à comemoração dos seus magníficos 88 anos. Ao contrário daquilo que muitas vezes se julga, a memória que mais partidas nos prega é a da infância. Preservada é sobretudo a recordação da infância que concebemos alguns anos mais tarde, o que não é bem a mesma coisa. Happy Birthday, Sir Edmund! E desculpe tê-lo abatido ao efectivo!

                      História, Memória, Olhares

                      Mais distante que a Índia

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                      O programa de rádio Antena Aberta, de Eduarda Maia (Antena 1), resolveu esta manhã colocar em debate as recentes declarações públicas de Saramago propósito da utopia, ciclicamente retomada por uns quantos quixotes, de uma Ibéria una e plural. Para que não existam dúvidas, declaro que, nas suas linhas mais gerais, a ideia do escritor colhe a minha simpatia. E a de um ou outro ouvinte também. Todavia, a larga maioria dos participantes interveio, de uma forma excessiva e exaltada, em sentido contrário. A culpa do tom, claro, é deste tipo de programas, que dá voz a qualquer huno e nem sempre introduz na conversa alguma pedagogia da tolerância. Por isso, não estranhei ouvir um cozinheiro do Porto bradar que «não podemos ofender a gesta dos nossos maiores», nem «afrontar os mártires que permitiram dignificar o solo pátrio» (não estou a inventar!). Imagino o senhor – pela conversa, um homem dado aos clássicos – de panela inox na cabeça e com o garfo dos fritos em riste, «dando a vida, se preciso for», rua a rua, copa a copa, sob a inspiração da padeira Brites, na guerra de guerrilhas contra os malditos castelhanos.

                      Mas estou convencido, ao conviver habitualmente com gerações mais recentes e razoavelmente cosmopolitas, que são cada vez menos os portugueses que olham o país do lado como aquele território inóspito, selvagem, Arizona fronteiriço a cruzar a galope até se começar a ouvir distintamente alguém que se expresse em francês. Quando conto aos meus alunos espanhóis sobre o ditado «vindo de Espanha, nem bom vento nem bom casamento», ficam espantados, uma vez que se habituaram – eles, os pais e os avós deles – a ignorar Portugal, ou, como lembra Buñuel na autobiografia, a considerá-lo país «mais distante de nós que a Índia». Por sua vez, muitos jovens portugueses desconhecem já a simples existência da referida sentença, o que não deixa de ser bastante saudável.

                      Para os mais velhos, no entanto, não era assim. Desde 1640 que os espanhóis – não diferenciando galegos de aragoneses, ou andaluzes de naturais de Castilla-La Mancha – são inimigos potenciais, seres diferentes, excessivos e um tanto conspícuos. E o Estado Novo apenas acirrou os ânimos. Em 1960, Francisco da Cunha Leão, na obra O Enigma Português, trata-os mesmo, depreciativamente, como gente «indiferente à natureza cósmica», e «extremada nas práticas do amor e da sexualidade». Talvez por isso, sei de várias raparigas a quem foi recusado alojamento depois das honestas senhorias dos quartos que elas pretendiam arrendar as terem ouvido comunicar naquela língua cantada e sobrecarregada de guturais.

                      A Ibéria será pois uma nova ilha inalcançável nos tempos mais próximos. Jamais a península que habitamos. Da minha parte, confesso aqui que faço sempre por me livrar primeiro das moedas de um e de dois Euros com a efígie do rei Juan Carlos no verso. Mas isto nada tem de antiespanholismo atávico. Bem pelo contrário! Simplesmente o Bourbon tem aquela cara de toureiro, o que, falando numa dimensão meramente ética e artística, me repugna um pouco, pois tendo a simpatizar muito mais com o toiro. E além disso sou republicano.

                        Apontamentos, Olhares

                        Sapatos vermelhos

                        Diante do recém-editado livro autobiográfico de Zita Seabra (ZS) é muito difícil sustentar um registo de equidade crítica quando a maior parte do que lemos insinua uma rejeição que nem sempre é boa conselheira. Como seria de esperar, a recusa apriorística da possibilidade de ler o livro instalou-se, de imediato, entre pessoas mais ou menos próximas do Partido Comunista ou dos sectores situados à esquerda do PS. E muitas daquelas que o leram, fizeram-no sobretudo à procura das imprecisões ou dos juízos que permitissem depreciar o que a autora escreveu. Acontece, porém, que contando-me entre os portugueses que se distanciaram no passado e se distanciam hoje das posições públicas de ZS – relembro apenas o seu apoio à campanha pelo Não no referendo sobre a IVG e a sua actual assumpção como parte da ala direita do PSD –, me interesso também pela história recente. Tenho, por isso, uma certa obrigação de me esforçar para compreender a utilidade deste volume.

                        Livro algum tem necessidade de justificar a sua existência. Porém, não sendo analista, historiadora ou política no activo com um papel relevante, não se encontrando ainda em idade de fazer um «balanço de vida», não tendo nada de particularmente novo para contar e escrevendo até com alguma dificuldade, para quê dar-se a autora ao trabalho de falar publicamente sobre o seu próprio passado? Deixarei para o final deste texto uma tentativa de resposta a esta questão.

                        Foi Assim relata a infância, a juventude e a vida adulta de ZS sensivelmente até à sua expulsão do PCP, ocorrida em Janeiro de 1989, centrando-se particularmente na experiência de clandestinidade, na intensa actividade pública que manteve nos anos que se seguiram a 1974 e no processo que levou ao seu isolamento político e pessoal dentro do PCP. Todavia, de tudo isto, de um tempo tão intenso, de uma relação tão estreita que manteve com a intervenção dos comunistas na sociedade, nada do que ZS conta se mostra particularmente novo ou interessante, tanto ao nível dos processos como dos métodos. A referência que faz à vida na condição de clandestina, à actividade na UEC, ao seu papel durante o PREC e na Assembleia da República, não contém algo que não se encontre já bem documentado e que, provavelmente, apenas interessará a quem estiver fora destes temas e, levado pela campanha mediática em redor do livro, se decida a comprá-lo. Presumo, no entanto, que, de entre este eventual núcleo de leitores, poucos serão aqueles que o conseguirão ler até ao final. Ou, pelo menos, que serão capazes de o ler com a devida atenção.

                        De facto, o texto encontra-se escrito de uma forma absolutamente surpreendente para quem o sabe da responsabilidade de uma pessoa que rompeu com o PCP há já quase vinte anos e tem vindo a tomar posições cívicas que a distanciam claramente dessa área de origem. No entanto, a linguagem utilizada, a rígida ética que lhe subjaz, o jargão utilizado na análise do tempo e dos factos aos quais se reporta, são impressionantemente próximos daquele que foi, e em certa medida ainda é, o discurso-padrão dos comunistas. Torna-se quase insuportável para um leitor consciente deste aspecto o modo como ZS usa a «língua de madeira» comunista para falar, de uma forma que se pretende analítica, da sua relação com a experiência de luta e de organização do PCP. Muitas frases revelam essa fala ancorada no passado, feita de clichés, liturgicamente repetidos ao longo de décadas e que, estranhamente, a autora mantém intactos, deles se servindo a todo o momento: «comportamento exemplar» (p. 53), «eivado de irrealismo e de voluntarismo» (p. 65), «um camarada altamente responsável» (p. 71), «um camarada de confiança» (p. 83), «teve bom porte na PIDE» (p. 153), «regressou com uma ampla publicidade» (p. 163), «era uma revolucionária profissional, uma verdadeira bolchevique» (p. 187), «os controleiros das faculdades e os militantes mais destacados» (p. 211), «tal como Lenine ensinou e nós aprendemos» (p. 235), «Amílcar Cabral gozava de prestígio» (p. 250), «só a verdade nos libertará» (p. 436). E a listagem poderia ser multiplicada por dez, quinze ou vinte vezes.

                        Acrescento ainda este fragmento que parece tirado de uma qualquer cartilha ou de uma proclamação do PCP da era pré-Abril: «Ia finalmente passar à acção directa e preparar a queda do regime através da revolução democrática e nacional, à qual se chegaria pela insurreição popular armada, primeira etapa da revolução socialista. Só após a instalação da ditadura do proletariado se encontraria o caminho livre para a forma suprema de organização da humanidade: o comunismo.» (p. 151). O mesmo posso dizer da sua explicação do «centralismo democrático», que parece tirada de uma síntese escolar do Que Fazer?, de Lenine (p. 174). ZS não se reverá agora, naturalmente, nestas posições, mas a forma como mantém este conjunto de fórmulas para «explicar às criancinhas» o sentido da crença que partilhou com milhares de outros comunistas portugueses, não só não é abonatório da sua actual capacidade de análise, como, e acima de tudo, define um discurso extremamente equívoco, entediante para quem já as conhece e incompreensível para quem, ao ler isto, delas toma conhecimento pela primeira vez.

                        Esta maneira de escrever parece-me indissociável do percurso cultural da autora. Todo este livro revela uma formação exígua ao nível das leituras (apenas alguns romances e textos teóricos que qualquer pessoa da sua geração e extracto sociopolítico leu), das práticas culturais específicas (quase exclusivamente confinadas ao gosto interrompido pelo ballet), dos interesses por um saber não instrumental. O próprio conhecimento dos clássicos do marxismo-leninismo se afigura insuficiente para uma pessoa que teve as responsabilidades políticas de ZS, o que é revelado na admiração que ainda hoje nutre por quem o detinha (como José Pacheco Pereira, Miguel Portas e, naturalmente, Álvaro Cunhal) e exemplifica o nível da formação teórica de muitos dos quadros comunistas portugueses. A mesma coisa no que se refere aos gostos artísticos (as referências musicais ou do campo da pintura são de uma banalidade atroz, mesmo para a época, não faltando sequer a referência sacramental à Guernica de Picasso) ou ao gosto pelo cinema, que reconhece ter sido muitíssimo limitado pelas imposições da vida clandestina e que, com toda a certeza, não terá podido recuperar nos anos do PREC. Algo de manifestamente estranho, aliás, para quem, entre 1993 e 1995, foi presidente do Instituto Português de Cinema e do organismo que lhe sucedeu. Não é pois de estranhar que, a dado passo, se refira ao filme Emmanuelle como sendo… «pornográfico» (p. 426).

                        Uma outra área na qual o desconhecimento de ZS se me afigura chocante refere-se às práticas e aos processos organizativos dos sectores que agrupa na designação canónica, leninista, de «esquerdistas». Esta atitude, muito comum entre a generalidade dos antigos militantes ou simpatizantes do PCP que estiveram ligados ao sector estudantil, não é para mim novidade. Mas perceber esta perspectiva limitada e confusa daquela que foi a sua principal dirigente nos anos finais do regime, é, no mínimo, perturbante. Como o é o não ter lido um pouco, antes de escrever, para se informar melhor.

                        Já tenho alguma dificuldade em pronunciar-me sobre a parte mais apelativa do livro – a situada no domínio da petite histoire – e que é também aquela sobre a qual se podem colocar maiores dúvidas relacionadas com uma interferência profunda da subjectividade ou um questionamento da veracidade de alguns dos episódios relatados. Não me repugna, confrontando este testemunho com outros (como aquele recentemente publicado por Raimundo Narciso), aceitar o carácter complexo, para não dizer tortuoso, da personalidade de Álvaro Cunhal (o «Camarada» que marcou para sempre a vida de Zita). Nem reconhecer a atitude sectária, frequentes vezes seguidista, da generalidade dos apparatchiks do PCP (a sessão do plenário do Comité Central no qual ela foi expulsa do mesmo, do qual por certo existirá uma acta, é particularmente denunciadora de uma crua incapacidade para se aceitar a diferença fora dos processo do «centralismo democrático» e de se reconhecer o que de «bom» fez uma camarada marcada a partir daquela altura pelo «mal»). Mas grande parte do que se conta – algumas frases e atitudes do «Camarada», a confirmarem-se são particularmente abjectas no plano meramente humano – permanecerá no âmbito do testemunho estritamente individual. Sobre esta fase de ruptura, existem já outros depoimentos publicados – entre eles um livro da própria ZS, O Nome das Coisas, escrito «a quente» e editado logo em 1988 –, bem como uma possibilidade de se obterem relatos de pessoas vivas, que permitirão aferir melhor o processo que a autora descreve.

                        A leitura encontra-se também marcada por traços de personalidade e de estilo de ZS que, sendo respeitáveis na dimensão da sua idiossincrasia, tornam por vezes penosa a comunicação com o leitor. Desde logo as inúmeras provas de arrogância e de exposição de uma dimensão quase providencial das decisões que foi tomando. «Eu fiz», «eu resolvi», «eu escolhi», «eu decidi» são expressões pouco agradáveis para a cultura democrática ou para a educação de muitos daqueles que a lêem. Um exemplo apenas: referindo-se à altura em que, em 1974, Cunhal se tornou ministro sem pasta do governo, conta ZS: «passei-lhe de imediato o Domingos Lopes para chefe de gabinete». Tanto quanto sei, Domingos Lopes não será propriamente um cachecol ou uma garrafa térmica. A afirmação desta «personalidade difícil» é ainda complementada, negativamente, pela inépcia absoluta para lidar com o humor ou com a ironia: mesmo alguns episódios realmente engraçados que conta são, no discurso de Zita, passados à condição de mais um elemento na enumeração dos factos que relata, sem uma exploração literária que melhoraria o prazer da leitura e a aproximaria um pouco mais de quem a lê. A mesma coisa em relação à vida amorosa e aos afectos, pelos quais passa sem referência praticamente alguma, se exceptuarmos o «sentimento de culpa» que, sendo filha única, de certa forma sente pela separação que deles voluntariamente manteve. Ao contrário daquilo que já li, mesmo a referência a Sita Valles, a notável militante comunista que viria a ser torturada e executada em Angola após o falhanço do golpe militar dirigido por Nito Alves, me parece mais do domínio da admiração do que de uma efectiva amizade. Falo daquilo que percebo pela leitura, naturalmente, não daquilo que Zita Seabra eventualmente sentirá e que, por formação ou por deformação, se esforça a todo o momento por esconder.

                        Volto então à questão colocada inicialmente. Para que serve afinal este livro da Aletheia, marcado por um grafismo propositadamente decalcado das Edições Avante!, ampliado por uma intensa campanha mediática e colocado nos escaparates melhor situados das lojas da Bertrand e da FNAC? Para ser lido, como escreveria o senhor de La Palisse. Mas quem o lerá? Presumo que, para além de uns quantos interessados na nossa história recente, de alguns quadros partidários, e, por dever de ofício, de um ou outro opinion maker, talvez a parte do público estigmatizada ainda pela cultura do anticomunismo, ou aquela outra que espera encontrar neste livro uma versão circunspecta da má-língua de Catarina Salgado. Sob este aspecto, podem desenganar-se. Pouco lhes interessará a vida da mulher que sempre gostou de usar sapatos vermelhos.

                        Zita Seabra (2007), Foi Assim. Lisboa: Aletheia Editores. 442 páginas.

                        Sobre o mesmo assunto (uma ajuda do Miguel Cardina):
                        Zita e o Camarada [João Gonçalves, Portugal dos Pequeninos] O livro que não se deve ler (1) [João Tunes, Água Lisa (6)] O livro que não se deve ler (2) [João Tunes, Água Lisa (6)] Foi assim, não foi nada, talvez fosse [João Tunes, Água lisa(6)] Os verdes anos de Zita [F. Penim Redondo, Dote Come] Não foi assim [Nuno Ramos de Almeida, Cinco Dias] Novo livro de Zita Seabra. Leitura a não perder [Da Rússia, José Milhazes] Foi assim, mas há sempre alguém que não deseja acreditar [José Manuel Correia, Aparências do Real] Foi Assim com Zita Seabra [Raimundo Narciso, A Grande Dissidência] Zita Seabra – defender o quadrado [Sofia Loureiro dos Santos, Defender o Quadrado] Não, não foi assim (1) [Vítor Dias, O Tempo das Cerejas] Não, não foi assim (2) [Vítor Dias, O Tempo das Cerejas] Não, não foi assim (3) [Vítor Dias, O Tempo das Cerejas] Não, afinal não era assim (4 e último) [Vítor Dias, O Tempo das Cerejas]

                          Memória, Opinião

                          Circo-Maravilhas

                          Na Europa e nos Estados Unidos, onde existe uma menor necessidade política de erguer fictícias grandezas, mas também no mundo islâmico, no qual o próprio conceito de grandeza se mede por diferentes padrões (e o acesso aos grandes media é muito condicionado), a maioria das pessoas pouca ou nenhuma importância atribuiu à «eleição» das 7 Maravilhas do Mundo e a todo o espectáculo mediático e comercial construído à sua volta. Foi, pois, essencialmente do interior dos países cujas autoridades participaram na mobilização da população, manipulando o desconhecimento e o chauvinismo para elegerem a «sua maravilha» e melhorarem artificialmente a autoestima local, que saíram os «eleitos».

                          A maior prova desta distorção – muitos leitores brasileiros decerto concordarão comigo – está na escolha, patrocinada pelo próprio governo do Brasil, daquele mega-mamarracho de arte religiosa que se dá pelo nome de Cristo Redentor e que, «braços abertos sobre a Guanabara», encima, desfeiando-o, o (ainda assim, e sempre) belo morro do Corcovado. A verdade é que esta obra de engenharia-kitsch não pode de modo algum comparar-se – mesmo entrando na lógica tonta do «maior» e do «menos grande», e falando apenas de construções em pedra – com outros «candidatos» não escolhidos, como o Alhambra, Stonehenge, os templos de Angkor, o Kremlin, a Catedral de São Basílio, as pirâmides de Gizé, as estátuas da ilha de Páscoa, a Acrópole, a Hagia Sofia, ou mesmo a estátua de Liberdade. Com estes, obviamente, não ocorreu uma grande mobilização com recurso aos meios de comunicação de massas, perdendo-se assim a oportunidade de integrarem o novo mito mediático e de ostentarem o qualificativo turístico. Que a UNESCO, aliás, se encarregou já de desvalorizar.

                          Samba e pandeiro não vão faltar, é o que vale. «Panem et circenses», lembrava o sempre juvenil Juvenal. Uma prática tão antiga quanto contemporânea, mais subtil em alguns locais, mais directa e despudorada noutros.

                          Das «maravilhas» locais não falo. A minha capacidade de maravilhamento anda um pouco transviada.

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                            A vida em rosa

                            O mais bem-humorado título relacionado com a apresentação dos novos equipamentos cor-de-rosa do «clube da águia» – e que brinca também com os comentários, de tonalidade explícita ou veladamente homofóbica, que sobre o tema têm circulado sobretudo na blogosfera – saiu no Inimigo Público desta semana. Sugere apenas o lamento desesperado e triste – «Ai mulher, que o Benfica saiu do armário!» – do «bom chefe de família» lusitano.

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                              O sumiço da utopia


                              Existe um livro de João Martins Pereira – No Reino dos Falsos Avestruzes, editado em 1983 pel’A Regra do Jogo – que, apesar de visivelmente datado sempre que refere determinados aspectos da vida política portuguesa da época, merece ser revisitado com alguma atenção, suscitando o reencontro com um padrão de reflexão política hoje praticamente inexistente. Quase ao acaso, dou de caras com uma frase sublinhada naquela altura: «A banalização do adjectivo «utópico» num sentido pejorativo não deveria impressionar nem complexar a Esquerda; foi a Direita que, ao pretender-se realista e pragmática, lhe lançou essa armadilha». Nesse mesmo ano, Tony Blair entrava pela primeira vez para o Parlamento britânico: o resto da história é conhecido.

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