Afinal o Vaticano ainda não deferiu a canonização dos três pequenos pastores da Cova da Iria. Só a diferiu. Parece que falta uma evidência confirmada em laboratório. Para a Santa Sé, diz o sibilante cardeal Dom José Saraiva Martins, natural de Gagos de Jarmelo e prefeito da excelentíssima Congregação das Causas dos Santos, são sempre necessárias «provas científicas do milagre».
Cartier-Bresson usava uma todos os dias. E Robert Capa também. E Corbijn, Erwitt ou Rodchenko. E Arbus, e Kertész, e Lagerfeld. E Frank. E Winogrand. Salgado também usa. Sem ela a representação do mundo conhecido seria outra, o poder da imagem seria forçosamente menos indeclinável, a nossa memória comum seria infinitamente mais pobre, mais disforme.
Este post foi originalmente publicado há seis dias. Pela actualidade que mantém, é de novo chamado à primeira linha. Com algumas pequenas alterações.
O desinteresse dos principais partidos da esquerda portuguesa pelas frentes do combate democrático que vão sendo sucessivamente abertas pelo mundo surge-nos como uma triste constante. Exceptuando-se, naturalmente, as «solidariedades» ocasionais escolhidas caso a caso. Mesmo quando os sinais evidentes da repressão e da revolta, ou os primeiros indícios de novos genocídios, nos entram em imagens brutais pelas casas adentro. Para o PCP e para o Bloco de Esquerda, o drama birmanês permanece distante, quase como se nada tivesse a ver connosco, como se não justificasse um estremecimento de emoção, uma palavra de protesto, uma clara reprovação. Que importa afinal o ruído que chega da rua distante quando mantemos o nariz mergulhado no prato da sopa e nas tristes agendas eleitorais? A despolitização da política e o sectarismo, cara e coroa da mesma moeda, castram e desumanizam a experiência da cidadania, questionando o próprio conceito de democracia de quem os pratica.
Vale a pena seguir a interessante série «Eles adoram queimar», publicada por Francisco José Viegas n’A Origem das Espécies. A propósito do episódio da incineração de uns quantos exemplares da revista Veja por esta incluir um artigo muito crítico da personalidade e da acção de Che Guevara. A série é, no mínimo, bastante educativa.
Já depois de publicado este post chegou-me o número da Veja. O artigo em causa, do qual, aliás, em boa parte discordo – mais pela leitura parcial que propõe do que pelos factos que invoca – é um texto opinativo completamente banal, igual a milhares de outros que todos os dias nos chegam. O problema residirá na proposta de questionamento de uma certa dimensão do sagrado. E desta vez não se trata de Maomé…
A imagem pública de Ernesto Guevara de la Serna manteve, praticamente desde a sua integração na guerrilha cubana, um grande destaque mediático. Parte importante da auréola de romantismo revolucionário que acompanhou a tomada do poder pelos barbudos da Sierra Maestra, deveu-se à forma como Fidel, Camilo Cienfuegos ou Guevara projectaram, para um público mundial, a representação de uma causa que se mostrava radicalmente jovem, igualitária e justiceira. Assim, pelos inícios da década de 1960, o argentino era já uma lenda viva, cuja importância simbólica transcendia até os sectores da esquerda que viam no regime cubano a materialização das suas utopias e a superação do já decaído modelo soviético do socialismo. Ainda que acidental, a fotografia de Alberto Korda, projectando uma imagem heróica e poética do Che, foi obtida em 1960, quando este ocupava já um lugar de destaque como protagonista da Revolución.
Este realce ampliou-se logo após o seu desaparecimento físico, transformando-lhe o rosto – o do combatente vivo e o do mártir morto – em símbolo maior de uma rebeldia com causa que uma parte da intelectualidade da esquerda mais heterodoxa olhava então com simpatia, e que a juventude dos sixties politicamente mais activa reconhecia como sua. Em Portugal, ainda durante o período marcelista, textos seus foram publicados e o seu estilo pessoal glosado, enquanto posters com a reprodução da célebre fotografia rivalizavam nos escaparates com os aforismos sentimentais de Júlio Roberto, e decoravam instalações associativas e quartos de estudantes.
Antes ainda da canonização, hoje reconhecível em Cuba e que omite as divergências que foi tendo com Fidel e o levaram a deixar Havana e a partir para o Congo e para a Bolívia – «a minha casa ambulante continua a ter duas pernas e os meus sonhos não conhecerão fronteiras» –, a universalização do Che começara já, impulsionada pelo próprio sentido internacionalista da sua concepção de socialismo, sinalizada com clareza na estrela de cinco pontas que usava na inconfundível boina. «Criar um, dois, três, muitos Vietnames» não era simples palavra de ordem, um mero slogan, mas todo um programa de enfrentamento do imperialismo americano que, como sistema mundial, deveria também ser combatido a essa escala, recorrendo-se para o efeito a uma guerra de guerrilha, descentrada em múltiplos focos rurais, que deveria tornar inoperacionais os regimes que colaboravam com o poder ianque, derrubando-os de seguida. E arrastando consigo as injustiças do próprio capitalismo.
Esse percurso original do guevarismo, partilhado, apesar de algumas divergências tácticas, pelos grupos e grupúsculos partidários da guerrilha urbana da década de 1970, terminou com o recuo global do socialismo de Estado enquanto modelo. Na «era do vazio» dos anos 80, viu-se então confinado a núcleos de nostálgicos, de activistas ultra-radicalizados ou de militantes dos velhos partidos comunistas, carentes de símbolos atraentes e que não hesitaram em transformar num dos (agora) seus aquele que antes haviam tantas vezes reprovado (os textos que o comprovam existem, e as memórias também, por muito que o tentem camuflar as posteriores operações de cosmética).
A última década do século passado reconheceu, no entanto, um manifesto «regresso do Che», reunindo simpatizantes e activistas de diferentes causas que, enquanto ícone e fonte de inspiração, transportaram para um novo quotidiano a sua imagem. A resistência ao unilateralismo e os movimentos antiglobalização recuperam então, reconstruindo-a, a dimensão rebelde e planetária de Guevara, não hesitando em ignorar ou em justificar o seu papel, comprovadamente marcado pela intolerância e pela defesa de actos de extrema «violência revolucionária» pelos quais foi responsável na fase de lançamento do regime cubano, e que foram recentemente lembrados num livro de Alvaro Vargas Llosa (Che Guevara Myth and the Future of Liberty).
Ao mesmo tempo, a revolução da informação e do consumo de massas, passaram também a aproveitar a sua imagem como produto de compra e venda, fazendo-a transportar na rua, por muitos daqueles que o Che sem dúvida desprezaria ou combateria, em t-shirts e pins, como gadgets e em tatuagens, como Homer Simpson ou Cristo. Numa mesma capa de revista, ao lado de Maradona ou Paris Hilton, o seu rosto passou a anunciar paraísos tropicais ou uma «revolução» transformada, ela própria, como produto de moda, em agente dinamizador do mercado de vestuário e bebidas. Em Che: Market and Revolution, a crítica inglesa Trisha Ziff reconhece mesmo, em cerca de trezentas peças assinadas ou anónimas, o aproveitamento comercial – se quisermos, a corrupção – da velha imagem obtida por Korda.
É esta «domesticação» do Che que Rui Ramos glosa no artigo da revista Atlântico («O desprezo de Che Guevara»), mas pegando-lhe, a meu ver, de uma forma equívoca. Ou antes, fazendo-o através de uma leitura que tende a depreciar o papel histórico de Guevara e a ridicularizar, de uma forma parcial, politicamente comprometida e a-histórica, as leituras contemporâneas que atribuem um valor positivo e dinâmico ao seu legado. Efeito do qual a própria revista se serviu, reproduzindo na capa um desenho que o assemelha a Adolf Hitler. Se, como estratégia de marketing, pode ser uma boa ideia, este expediente tende a acentuar uma distorção essencial que o artigo promove, através de um processo de «descontextualização» da actividade e da influência do Che, de incompreensão perante as metamorfoses da sua figura, e de impaciência em face da sobrevivência visível dos ecos do seu legado.
Dois aspectos, que materializam duas divergências, separam aquela que me parece ser uma abordagem objectiva do tema na relação com aquela que é a leitura do autor do artigo.
A primeira tem a ver com a inscrição da acção de Guevara na história do seu tempo. Neste sentido, avaliar o Che como um falhado ou um oportunista, quase um louco, para quem «os males do mundo não o levavam a compadecer-se pelos outros, mas a desprezá-los», como o faz Rui Ramos, é tão pouco rigoroso como entendê-lo, à maneira das hagiografias, como ser perfeito ou semideus. No seu tempo, foi sim um agente transformador, integrado no fluxo mundial de expectativa de mudança vivido no decurso dos «longos anos 60», e, ao mesmo tempo, integrador de solidariedades e de projectos de emancipação que cumpriram o seu papel histórico. Incluindo-se neste, para além da sobrevivência do castrismo, a própria transformação do funcionamento dos regimes democráticos do ocidente e a valorização política e moral dos movimentos de emancipação do então chamado «terceiro mundo».
A segunda discordância tem a ver com a desvalorização da sobrevivência – naturalmente adaptada a diferentes circunstâncias – do legado simbólico do argentino. Em artigo aparecido há dias no El Pais, Iván de la Nuez, o ensaísta cubano que vive em Barcelona, autor de Fantasia Roja. Los intelectuales de izquierdas y la Revolución cubana, coloca a questão em termos que me parecem correctos, ao considerar que, se para a direita o «fetiche do Che» é «uma derrota cultural após uma vitória política», ao invés, para a esquerda, sobretudo para a actual esquerda radical, a manipulação desse fetiche significa «uma vitória cultural depois de uma derrota política». Quer se queira ou não, quer se goste ou não – e independentemente da imputação fundamentada de actos de barbárie que tem vindo a ser feita ao Che-homem de Estado – a verdade é que a sua auréola de idealista e de herói, a capacidade de sedução de alguns dos valores que orientaram a sua intervenção, a própria noção da violência revolucionária como necessidade, permanecem activas no imaginário de uma parte substancial das gerações mais recentes. Ainda que, muitas vezes, sob a capa de um ícone pop. Sobreviveram aos quarenta anos que, no próximo dia 9, se perfazem sobre a data da sua morte. E sobreviveram à própria decadência e anunciada morte dessa crença marxista e leninista que, muito antes de Fidel, o próprio Che assumiu como sua.
Um homem que amou muito os livros despediu-se dos livros que tanto amou. Não porque deixasse de os querer para si, mas apenas porque, aos 90 anos, no pleno uso das suas faculdades intelectuais, a vista simplesmente já não lhe obedece. Olhou os seus livros uma última vez, virou costas e foi à sua nova vida de estantes vazias. Conheço poucas histórias de renascimento tão tristes quanto esta.
A Atlântico é, vamos a uma etiqueta, uma revista da direita civilizada e inteligente. Os artigos que publica são quase sempre bem escritos, estimulantes e informativos, mesmo quando partem – e partem quase sempre – de posições culturais nas quais não me revejo e de pontos de vista que rejeito frontalmente. A esquerda portuguesa, que não possui uma única revista de ideias digna da designação, deveria aprender um pouco com experiências como esta, pensando-se a si própria em público, sem preconceitos, sectarismos e medos atávicos, e procurando aproximar-se de um nicho de leitores – composto, chamemos-lhe assim para simplificar, de intelectuais e das suas margens – cujo peso nas sondagens eleitorais é pouco mais que nulo mas possui uma capacidade crítica e uma influência social que transcendem em muito essa pequenez.
O último número da revista, o deste Outubro, contém dois artigos que me interessaram particularmente, mas dos quais, todavia, me apetece discordar. Até porque são assinados por historiadores de quem tenho lido textos exemplares, sobretudo quando nestes eles se ocupam do seu métier. Ambos se apresentam ali, precisamente, com «argumentos de historiador», ao mesmo tempo que escrevem diatribes de uma subjectividade quase total. Mas se ambos os artigos me parecem reprováveis, não é propriamente por causa dessa subjectividade, mas justamente porque se apresentam, aos olhos do leitor, como abordagens objectivas, quando de facto o não são.
O primeiro é de Vasco Pulido Valente e visa uma breve leitura crítica do filme A Vida dos Outros, realizado pelo alemão Florian Henckel von Donnersmarck e estreado em 2006. Por um mero acaso, vi há cerca de duas semanas o DVD. Vi-o com vagar, vi também os diversos extras (que incluem um longo e interessante making of, além de algumas entrevistas um tanto desiguais) e não posso estar mais em desacordo com VPV.
A Vida dos Outros é a história da conversão de Gerard Wiesler, um capitão da Stasi, a polícia política da antiga RDA, e tem como eixo a percepção do confronto entre o mundo triste e carcerário do qual Wiesler era fiel executor, e a vida incerta, mas mais livre e mais humana, daqueles que ele tinha como tarefa perseguir. VPV – que considera o argumento «um melodrama de intelectual adolescente» – parte, na sua leitura, de um princípio que não me parece poder ser assumido pela mesma pessoa que tanto tem feito pela aceitação da dimensão narrativa da história e pela inclusão da ficção como alimento e ferramenta do discurso historiográfico. Indignar-se porque o filme contém sequências que não são historicamente verosímeis é um erro banal, mas que não podia imaginar a ser cometido por ele. Digo o óbvio: o filme não pretende ser uma reconstituição, mas sim uma ficção, e como todas as ficções amplia e manipula pormenores, no sentido de coagir a leitura que o autor propõe. Aliás, von Donnersmarck di-lo abertamente num dos extras do DVD: a vida na RDA, por exemplo, não era tão baça e desolada quanto a imagem das ruas (cinzentas, vazias, infinitamente tristes) pode fazer crer (havia cor, ruído, pessoas nas ruas), ele apenas forçou esse aspecto para adensar o ambiente dramático que pretendia criar.
Mas mesmo colocando-nos no plano da verosimilhança, não entendo como é possível considerar-se a transfiguração do protagonista como «implausível metamorfose». Ou então proclamar, a pés juntos, que jamais existiu ou existirá a possibilidade prática de um «redenção pela arte», uma vez que se assim fosse, argumenta VPV, os oficiais nazis que eram também excelentes músicos, como Heydrich ou Hans Frank, ter-se-iam por certo arrependido rapidamente dos seus crimes. VPV sabe muito bem que estas coisas não se podem prever e que cada caso humano é um caso humano, e se o diz, apoiado até em comparações forçadas e um tanto abstrusas com os agentes da Pide, é porque também tem, por vezes, uma certa vontade de jogar algo arbitrariamente com as próprias palavras. Ou uma recaída – a expressão é utilizada por ele neste pequeno artigo – de «intelectual tardo-adolescente». O que, sinceramente, só lhe fica bem.
O segundo artigo, mais extenso e ambicioso, é de Rui Ramos e tem um título abertamente provocatório: «O desprezo de Che Guevara». Mas a sua leitura terá de transitar para um outro post.
Em ambas as sedes de candidatura o bar tem um lugar destacado. Passam muitos militantes a mastigar frutos secos e a beberricar qualquer coisa com umas pedras de gelo lá dentro, o que lhes dá um certo ar de profissionais de seguros em intervalo de acção de formação.
Será bom para Marques Mendes ter perdido. Parecia mais capaz, e mesmo mais feliz, quando passava mais tempo em Fafe e não precisava de se pôr todos os dias em bicos de pés. Embora ao lado de Carlos Coelho e de Macário Correia até se assemelhe a um «Grande Português».
Acho Ângelo Correia uma figura simpática. Talvez seja por ele não se importar de se meter ao barulho. Ou por parecer aquele tio que nunca tivemos mas imaginamos a almoçar com um guardanapo à volta do pescoço e a contar anedotas cheias de subentendidos. Ou por dizer quase sempre, com um ar sábio, a primeira coisa que lhe vem à cabeça.
Quando Menezes entrou no salão de hotel para fazer o seu discurso de vitória, numa das paredes um enorme ecrã de plasma continuava a projectar primeiros planos de José Mourinho. Parece perseguição, mas sabe-se lá se será premonição.
Apreciei as toilettes das senhoras. E mais ainda os respectivos penteados. Mas já não percebo porque razão os homens militantes copiam os da geração anterior e não cuidam um bocadinho mais do aspecto, não se mostram mais frescos e modernos. Como José Sócrates, por exemplo.
As duas partes foram falando, sem ponta de ironia como lhes competia, de um confronto «vivo», «franco», «aberto», «civilizado». Não é possível imaginar aquilo que teriam dito se assim tivesse de facto acontecido.
Uma certa boa consciência «democrática», que a todo o momento faz a contabilidade dos longos anos de combate à ditadura dispendidos pelos seus antepassados, quase ignora aquilo que está neste momento a passar-se na Birmânia. Para ela, quando se combate uma ditadura, é preciso saber-se primeiro se essa ditadura é «boa» ou «má». Em caso de dúvida, joga-se pelo seguro e não se abre a boca. Até pode ser que ela não seja tão «má» quanto dizem. Ou que a democracia que se segue seja muito «pior». A coerência e a honestidade, para quem insiste neste tipo de atitude, jamais serão valores absolutos.
A jornalista insiste com António Lobo Antunes. Trata-o quase como se tratam os velhinhos. «Comoveu-se» com a recepção que teve em Berlim? E «comoveu-se» com o Prémio Camões? Acontece que, por estes dias, comover-se – ou seja, chorar em público – passou a ser notícia. Uma patologia simpática, que se procura em certos rostos. As câmaras da televisão buscam sedentas as lágrimas nos olhos de Rui Costa, de Cristiano Ronaldo, de Nelson Évora, de Luís Filipe Menezes. Mesmo quando elas custam a sair. Sampaio foi durante algum tempo o nosso chorão de estimação e as câmaras procuravam-no: levou o lenço aos olhos? estava a fungar? a voz embargou-se-lhe? E se sim, que admirável! E que belas, que belas, as lágrimas amargas de Eusébio ou as ardentes dos jogadores da selecção de râguebi! E os duros, não se comovem? Gostamos de imaginar que sim, embora precisemos esperar para obter a prova. Câmaras prontas na direcção de Filipe Scolari, de Vasco Pulido Valente, de Manuela Ferreira Leite, de Valentim Loureiro, de Paulo Portas! E José Sócrates, chorará? Não importa se chora sozinho e com a cabeça entre as pernas, mas sim se o mostra em público. Será apanhado, um dia, e então rejubilaremos. E a Kate McCann, porque não chora baba e ranho, como Elton John quando soube da morte da Diana, que chorava todos os dias?
Neste tempo seduzido pelo divertimento ininterrupto, pelo efémero que já era, pelo sorriso fácil, rápido e fotogénico, comover-se, chorar, torna-se notícia, um luxo, que irrompe no quotidiano previsível daqueles que vendem uma imagem de felicidade. Procura-se nos famosos o instante de abandono, a morte do familiar, a carreira em queda. E fotografam-se-lhes então as lágrimas. As daqueles que as vertem todos os dias, essas nada têm de particularmente interessante. São banais, por vezes um tanto sórdidas, e não importa perder tempo com elas. As de António Lobo Antunes, que todos reconhecemos, essas sim. Queremos vê-las, ou, pelo menos, que ele nos fale um pouco delas. Mas só mesmo um pouco.
Tamara Galkina era a mulher de K., um oficial de alta patente do Exército Vermelho. Envolveu-se com Y., um dos jovens subordinados do marido, e acabou por partir com ele para outra cidade. Y. ocupava então um posto de alta patente no NKVD. Certa noite, no ano de 37, eles chegaram e arrombaram a porta. Não se preocuparam com Y., mas a ela levaram-na. K., o seu ex-marido, vira o seu nome envolvido no caso do Marechal Tukhachevsky, um dos principais alvos das grandes purgas dos anos 30, e ela foi acusada de qualquer coisa, embora jamais tenha percebido muito bem do quê. Acabou condenada a dez anos num «campo de trabalho correctivo», por um crime que o homem do qual se separara havia supostamente cometido. O tempo foi passando e Y., entretanto promovido a general, foi destacado como administrador de uma região importante do Gulag, sendo nessa condição que acabou por reencontrá-la. Y. contou então a Tamara que ele mesmo tinha forjado algumas provas contra ela, de forma a ver-se livre de qualquer suspeita, mas propôs-lhe que esquecessem o passado e voltassem a ser amantes. Ela recusou. Alguns anos depois, após a reabilitação de Tamara, acabaram porém por tornar-se amigos. Passaram então a telefonar regularmente um ao outro e, ocasionalmente, encontram-se para tomarem chá e falarem dos velhos tempos.
Parece o plot de um velho romance russo de terceira categoria, mas não é. Trata-se do resumo de um depoimento recolhido pela jornalista moscovita Irina Sherbakova no âmbito de um projecto destinado a preservar a memória dos sobreviventes do Gulag.
Tem dias em que me apetece desblogar. Tem noites em que também. Ficar calado, a ouvir os outros dizerem alto que lhes apetece o mesmo. Uma mania sem consequências de maior.
André Gorz e D. diante da fábrica Renault-Billancourt, em 1947. Foto. Suzi Pillet
Fundador, com Jean Daniel, do Nouvel Observateur, colaborador de Les Temps Modernes e de Multitudes, marxista heterodoxo, amigo de Marcuse, amigo e ex-amigo de Sartre, anti-capitalista descrente do proletariado, pensador da ecologia política, André Gorz, o filósofo austríaco-francês, suicidou-se hoje em sua casa, juntamente com a mulher, Dorine. O mundo que foi preenchendo a vida de ambos já o fizera há muito. «Os corpos do casal repousavam um ao lado do outro».
Um dos melhores contrabaixistas de sempre nunca gravou um disco em seu nome. Por isso, Scott LaFaro é hoje lembrado «apenas» por ter sido um dos primeiros parceiros, talvez o melhor de todos, de Bill Evans, o pianista melancólico e genial que se inclinava sobre o seu piano como o Schroeder dos Peanuts. Morreu em 1961, aos 25 anos, mas teve ainda tempo para tocar com Chet Baker, Miles Davis, Stan Getz ou Ornette Coleman. Duas semanas antes do acidente, gravara ao vivo, com Evans e o baterista Paul Motian, Sunday at the Village Vanguard e Waltz for Debby, dois dos mais importantes álbuns da história do jazz.
Bill Evans Trio – Gloria’s Step, take 3 (Sunday at the V.V.)
O WikiLeaks, «a place for journalists, truth tellers and everybody else; global defense of sources and press freedoms, circa now» é um serviço em linha tem já mais de um milhão de documentos disponíveis. Ele simplifica a experiência da denúncia, mas também da delação, tornando-as fáceis, seguras e possíveis numa escala planetária. Uma espécie de «Wikipedia para fugas de informação não-detectáveis». Conseguiu um documento que compromete alguém de quem não gosta, mas esse alguém tem muito poder? Acha que certa pessoa anda a apoderar-se de dinheiros públicos e tem provas disso, mas receia que ela descubra que foi você quem a denunciou? Conhece um político corrupto, tem informações que o podem desmascarar, mas não quer enfrentar um processo complicado que pode afectar a sua vida? Nada mais simples: mostra tudo aquilo que sabe e pode documentar no WikiLeaks e jamais alguém conseguirá saber que foi você quem deu com a língua nos dentes. Um instrumento assustador, com resultados práticos ainda imprevisíveis, que pode transformá-lo num minuto em justiceiro mascarado ou num canalha. Sem se levantar da sua secretária.
O suplemento Digital, do Público, traz hoje um artigo sobre o tema. O título, do qual me sirvo neste post, é «Garganta Funda já não precisa de se esconder na garagem».
O Aquilino que foi para o Panteão Nacional não foi só o carbonário, a «terceira carabina do Terreiro do Paço», ou o «grande prosador» de linguagem vernácula do qual falou Cavaco Silva, seu putativo leitor, num discurso que ignorou o percurso republicano e antifascista do filho do padre de Carregal de Tobosa. Foi também um português que sabia que coisa era o «caldo de leite com abóbora e feijão vermelho, temperado a orelheira de porco e salpicão, vinho, o palhete e espirrador». Que gostava de «bolinhos de bacalhau sobre o vinagre, o caldo verde, o polho de grão assado no espeto, as talhadas de salpicão, a perna de vitela ou o javali caçado na mata». Que se imaginava na tasca do Chacim, em Infesta, a comer o «ceote de lampreia do Abade de Mozelos, regado a vinhos dos Arcos». Olhando as coisas sob este ponto de vista, suavizamos um pouco o cerimonial mórbido em que agora o meteram.