Author Archives: Rui Bebiano

Na tradição da contestação

Há 39 anos, precisamente na manhã do dia 17 de Abril de 1969, teve lugar em Coimbra o episódio que levou ao rubro o conflito conhecido na história e na memória do movimento estudantil português como «a crise de 69». Nos anos que se seguiram, mas principalmente após a instauração da democracia, a data passou a ser celebrada como um momento de profundo significado simbólico para a vida associativa coimbrã, a sua autonomia e o seu impacto no país. Porém, tal como acontece com todas as celebrações que não são acompanhadas de uma atitude crítica e interpretativa que as explique e actualize, esta lembrança tem vindo a transformar-se num ritual, integrando discursos pontuados por clichés, e até a exibição repetitiva de alguma iconografia, cuja leitura se revela progressivamente limitada. Principalmente para as novas gerações, mas também para muitos daqueles que participaram daquele «evento fundador» e que de forma alguma se revêem na dimensão litúrgica e celebratória da sua evocação.

Esta redutora simplificação vai-se tornando perceptível durante a leitura de A Tradição da Contestação. Resistência Estudantil em Coimbra no Marcelismo, de Miguel Cardina (MC), que a Angelus Novus acaba de editar. Resultante da tese de mestrado que o autor defendeu em 2005 mas entretanto actualizou, este livro cumpre desde logo uma importante função: bem documentado e reflectido, ajuda-nos a diluir algumas formas de ver o movimento estudantil, desde os finais da década de 50 até 1974, mas em particular durante os anos da governação marcelista, que são imperfeitas porque fundadas em leituras do passado mais apoiadas em generalizações e no rastro nostálgico de determinados momentos do que no estudo e na reflexão crítica.

Contribui também para mostrar de que forma narrativas pré-formatadas do passado do movimento têm servido como instrumento destinado a evocar instantes e gestos reputados como exemplares ou heróicos (como é o caso do referido episódio do 17 de Abril), que promovem um território de legitimidade e de reconhecimento público adequado à aceitação dos processos reivindicativos e das vozes do associativismo estudantil no presente. Deste modo, pode dizer-se que este livro relativiza uma leitura passiva, que reduz o movimento estudantil à evocação oficial de determinadas datas, limpando-o da poeira comemorativista que tende a esvaziá-lo da sua complexidade ou a transformá-lo numa caricatura de recorte mais ou menos nostálgico.

Este problema é visível no processo de hipervalorização, aqui comentado, da «crise de 69». Não se contesta que esta tenha correspondido a um momento central da história do movimento estudantil português e que foi decisiva para o aprofundamento do processo de decadência e crise do regime que desabou em Abril de 1974. No entanto, ela tem sido vezes de mais anotada como um «acontecimento em si», espécie de clímax antes do qual dominara o conformismo e depois do qual se estabelecera uma fase de refluxo, ou de esmorecimento, da iniciativa estudantil, que, de acordo com essas leituras, teria sido apanhada algo adormecida pela Revolução dos Cravos.

A verdade, mostra MC, é que o período que preparou a «crise», a «crise» em si, e os anos que se lhe seguiram, estabeleceram antes um continuum que incorporou, entre outros aspectos, transformações vivenciais (com a rápida desvalorização das praxes académicas), alterações culturais (com uma abertura rápida aos valores comuns à cultura juvenil internacional dos anos 60), e principalmente um alargamento muito grande da participação cívica estudantil, crescentemente politizada no sentido de integrar o activismo e as suas reivindicações nos processos mais gerais de transformação da sociedade portuguesa da época e na sua própria vida. A Tradição da Contestação mostra assim, com nitidez, que a «crise» não correspondeu ao apogeu do movimento, mas antes a um momento de mudança e de viragem.

De facto, a rápida e acentuada politização, notada sobretudo junto dos universitários comunistas e da esquerda radical – que apesar de ilegalizada e minoritária desenvolvia uma intervenção cada vez mais notória -, mas também entre os estudantes comuns, maioritariamente empurrados para um lugar de visível oposição ao regime e à sua guerra colonial, constituiu um das marcas mais salientes do movimento nos anos de 1971/1974, que MC aborda com particular detalhe. Essa politização extrema, associada a factores como o encerramento compulsivo da AAC, levou à perda de relevância da intervenção de índole essencialmente associativa, e formalmente reformista, que até essa altura dominara a actividade reivindicativa estudantil, traduzindo também o aprofundamento de um clima geral de desafectação em relação ao que restava do Estado Novo e aos seus intérpretes. Clima do qual apenas era possível excluir os então ultraminoritários sectores da direita estudantil.

Foi também ao longo destes anos estudados por MC que foram chegando os ecos do Maio de 68, traduzíveis em influências bastante mais amplas do que aquelas materializadas apenas no comprometimento político ou no revigoramento da reivindicação estudantil. Se é verdade que os acontecimentos de França ecoaram rapidamente no ambiente universitário de Coimbra – como ecoaram por quase todo o mundo – foi apenas nos anos seguintes que o sentido mais profundo do movimento, traduzido num recuo da esquerda ortodoxa, na visibilidade da extrema-esquerda e na construção de uma nova abordagem da política, da cultura, da moral e dos estilos de vida entre os sectores estudantis universitários, chegou a Portugal, e particularmente a Coimbra. E é esta mudança que MC mostra de uma forma aliciante.

A Tradição da Contestação evoca ainda uma imagem estereotípica da cidade de Coimbra, onde a palavra «tradição» se continua a cruzar com algumas referências recolhidas de um passado mais ou menos remoto, mas remete também para os ecos de uma vida estudantil até há bem pouco tempo ainda essencialmente masculina e boémia, feita de hierarquias, de praxes académicas e de formas inócuas de uma autoproclamada «irreverência», que nunca chega a sê-lo quando não assume uma dimensão participativa. Este livro mostra-nos que, afinal, existe também uma outra tradição possuidora de lastro histórico, provindo pelo menos da época das lutas liberais mas acentuado nos anos 50 e 60 do século XX, que é a da intervenção activa. Revela-nos uma outra Coimbra, mais plural, emancipada da imagem do lente inquisidor e do estudante truculento, mergulhada numa tradição de cidadania que integra o património identitário da própria cidade.

O livro de Miguel Cardina funciona pois como uma lição que os actores e os agentes da Coimbra de hoje não devem deixar de conhecer. E mostra a todos os leitores que, na história do movimento estudantil, como na história de qualquer movimento social, os episódios sonantes, por mais visíveis e mediáticos que se mostrem, representam apenas a ponta do iceberg.

Entrevista a Miguel Cardina aqui e aqui.

    Coimbra, História, Memória

    Dupla personalidade

    Não há muito mais para dizer sobre a posição frouxa do Sr. Silva durante a visita à Madeira. Onde, de sorriso nos lábios, contemporizou com o colérico soba local na desqualificação agressiva desse «bando de loucos» que tem a suprema ousadia de se opor à sua administração populista e prepotente. O Presidente Cavaco, aquele cavalheiro discreto, de atitude aparentemente equidistante, carnes secas e pose indulgente, que nos habituámos a ver à distância nos últimos tempos, voltou a recordar-nos o homem sisudo, inflexível, sem dúvidas ou enganos, que foi o primeiro chefe de governo da III República totalmente liberto da «mácula» de ter resistido ao regime que Abril fechou. O conformismo cultivado durante a juventude deixa sempre marcas para o resto da vida.

      Apontamentos, Atualidade

      Reprise (2)

      [YouTube=http://www.youtube.com/watch?v=F5fsqYctXgM]

      Perfazem-se hoje 54 anos sobre a data da gravação num estúdio de Nova Iorque, por Bill Halley & His Comets, de Rock Around the Clock, o primeiro tema de rock’n’roll a chegar ao topo das vendas de discos nos Estados Unidos. No ano seguinte (1955), a canção já não saía das cabeças e dos pés de milhões de teenagers de ambos os lados do Atlântico. E a paisagem social mudava com eles.

        História, Memória

        Trotsky plays banjo

        De vez em quando tento compreender a tendência, cada vez mais acentuada no Bloco de Esquerda, para desvirtuar as suas origens, a identidade sociológica da sua matriz, a dose de esperança que devolveu nos finais da década passada a muitas pessoas que a haviam perdido algures nos baços anos 80 ou que estavam a despertar para a prática política. Lembro-me então das razões que inventariei para depois me afastar: a redução do essencial da iniciativa à actividade eleitoral ou parlamentar, a passagem para segundo plano de causas e áreas de intervenção que não estimulam consensos, a absurda auto-imagem de «partido de confiança» (e a consequente moderação da «rua» como território de combate), a reduzida carga política de um discurso que se pretende mostrar «aceitável» (por quem, jamais percebi), a intolerância latente de um proto-marxismo de museu que mantém a sua força, o estrabismo de certas posições no domínio da política internacional. Lembro-me também das razões que em 1999 me levaram a aderir ao projecto. E releio um texto que escrevi em Janeiro de 2000, ao qual chamei «Todas as cores de uma esperança». Está ali tudo o que na altura me empolgava, como empolgava muitas outras pessoas, e que hoje se esvaeceu quase por completo.

        Foi nessa esperança extraviada, e nesse imaginado partido de convicções, de denúncia, de pressão, de resistência e de justiça, no qual uma vez acreditei, que voltei a pensar quando li a afirmação, produzida por Rui Tavares (que retomou, faça-se a justiça a Daniel Oliveira, a posição por este defendida há já largos meses), de que «um partido da resistência não chega», e que «para o BE ter mais votos, tem de começar por querer ser mais». O que deixa no ar duas evidências. A primeira, se tal for assumido como orientação estratégica do Bloco, é que ocorrerá uma ruptura definitiva com as causas que não somem votos, implicando uma autêntica refundação do partido. A segunda é que está algures a ser construída a fantasia impossível de um «Bloco de poder». Como presumo que uma estratégia bolchevique de assalto ao Palácio de S. Bento esteja fora de questão, e tal «ser mais» só pode significar o negociar de um ou dois artigos neste ou naquele diploma ou o suplicar de duas subsecretarias de Estado num eventual governo de coligação, ocorre-me perguntar: com quem e em que bases programáticas será possível, neste momento, desenhar tal coligação? Ou será que…

          Atualidade, Opinião

          Previsão para Maio

          «Maio é, habitualmente, um mês de aguaceiros esparsos, mas a instabilidade que agora reina no clima trará chuvas torrenciais de uma violência inaudita. Verá o seu carro ser arrastado por uma enxurrada, mas isso deixá-lo-á primeiro indiferente e, depois, aliviado.»

          De O Que Está Escrito Nas Estrelas [Anos I & II], o «horóscopo de assombroso rigor científico» no qual o autor de BD José Carlos Fernandes transformou o seu último álbum (embora trabalho antigo), composto por 24 inquietantes histórias ilustradas. Por precaução, não o deverá perder (Ed. Tinta da China).

            Devaneios

            Originalidade regional

            A proposta de criminalização da toxicodependência na Madeira parece passar por ser mais uma originalidade regional ou uma daquelas brincadeiras de mau gosto de A. J. Jardim. Mas ela não pode tolerar um encolher de ombros idêntico àquele que tem caído sobre outras acções passadas e presentes do seu governo relacionadas com a saúde pública, como o retardamento em anos do uso obrigatório do cinto de segurança, a tentativa de camuflar alguns surtos epidémicos, a grave demora na entrada em vigor da lei sobre a interrupção voluntária da gravidez, ou a inexistência de um plano sistemático de combate ao alcoolismo na zona do país onde a sua incidência mais se faz sentir (e a campanha até poderia começar pela festança anual do Chão da Lagoa). Para além da favorecer os traficantes, a ser aplicada, justamente numa das regiões onde o flagelo da dependência da droga atinge das mais elevadas taxas de incidência, a medida configurará mesmo o crime de genocídio.

              Apontamentos

              Gota de água

              Generación Y, o blogue havanês já aqui referenciado há meses atrás, é uma das publicações que acaba de receber o Prémio de Jornalismo Ortega y Gasset, atribuído por um júri nomeado pelo diário El País. O extraordinário, para além da capacidade de sobrevivência de um espaço de liberdade onde ela é geralmente cerceada – não sem que Yoani Sánchez, a sua autora, tenha deixado de ser submetida a intimidações -, é a sua forma luminosa e plena de esperança de lidar com um quotidiano desgastante e sem horizonte visível. E tão notável quanto o tom e a regularidade do trabalho desta valente blogger cubana é o calor combativo, e quase sempre sereno apesar de plural, partilhado pela maior parte das muitas pessoas que escrevem nas suas caixas de comentários. Um ponto a favor da causa da liberdade e da democracia em Cuba.

              Notável, no contexto, esta forma de Yoani se identificar publicamente.

                Apontamentos, Atualidade

                Hu Jia

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                Após ser acusado de incitar à «subversão do poder de Estado e do regime socialista», três anos e meio de prisão para Hu Jia, o activista chinês de causas relacionadas com a defesa do ambiente, a liberdade religiosa e os direitos das pessoas com HIV ou SIDA. Tudo matérias de somenos importância no país dos dois sistemas, da exploração dos trabalhadores, da censura, da pena de morte e dos Jogos Olímpicos «apolíticos».

                  Atualidade

                  Inquietante, (vírgula)

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                  Afinal, os novos colegas da blogosfera ainda estão só a ocupar os seus lugares e irão por certo melhorar as suas prestações. Mas o nível do «português comercial» da generalidade dos posts já publicados pelos mais ou menos jovens vinte e seis deputados e duas deputadas que abriram o blogue Câmara de Comuns é um tanto inquietante. Será uma boa ajuda o uso dos correctores da ortografia e da sintaxe, pois estes costumam apanhar os erros, acertar vírgulas, moderar a dimensão dos parágrafos, captar a ausência de sujeito, ensinar os tempos verbais, conformar as concordâncias, rematar problemas avulsos. O dicionário de sinónimos também permitirá alargar um pouco a riqueza vocabular. As malformações do estilo, essas já serão mais difíceis de resolver. É preciso não esquecer que parte do melhor português escrito produzido no rectângulo passa pelos blogues, e por isso não convém baixar o nível dando um mau exemplo. Sobretudo vindo de quem vem.

                    Apontamentos, Atualidade

                    Grita Liberdade

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                    Os Repórteres Sem Fronteiras estão a organizar uma campanha destinada a mobilizar atletas, jornalistas, membros dos Comités Olímpicos e membros do público presentes nos Jogos no sentido destes usarem, durante a estadia em Pequim, um autocolante com a palavra «Liberdade» escrita em caracteres chineses.

                    Entretanto a televisão local transmitiu em directo a chegada da chama olímpica, mas atrasou as imagens em alguns minutos para prevenir eventuais distúrbios. Ao mesmo tempo, todos os voluntários e jornalistas foram submetidos a revistas por parte das autoridades. Pela amostra, os agentes dos serviços de segurança chineses vão chegar ao final de Agosto completamente stressados.

                      Apontamentos, Atualidade

                      Lisboa, Luanda e volta

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                      Publicado originalmente em Os Livros Ardem Mal

                      Após muitos anos de emudecimento e de pudor impostos pela excessiva proximidade dos acontecimentos e do seu perceptível efeito traumático, multiplicam-se agora em Portugal as publicações que aludem ao passado recente de Angola. Estudos históricos, ensaios sobre a realidade pré-independência, livros de memórias, álbuns fotográficos, romances, reportagens, tomam e retomam, quase sempre sob uma perspectiva europeia, temas durante muito tempo silenciados ou reduzidos ao rumor. A paz podre implodida em 1961, a guerra colonial e as suas circunstâncias, o confronto fratricida de Maio de 1977, os mais recentes anos da guerra civil e da inacabada construção da democracia, são os temas-tempos escolhidos. Mas tem sido ignorada a fase particularmente crítica e conturbada, povoada de intensos dramas humanos, que correspondeu ao período que vai do 25 de Abril à proclamação da independência em Novembro de 1975. Esta ausência acaba de ser parcialmente superada com a publicação, pela Presença, de O Último Ano em Luanda, o mais recente romance de Tiago Rebelo.

                      Trata-se de uma obra manifestamente realista e assumidamente autobiográfica, integrada na recente voga do romance histórico destinado a um público sedento de narrativas empolgantes – como é sabido, coisa raríssima na literatura portuguesa contemporânea – e escrita sem grandes complexidades estilísticas. De facto, apesar de na sua página da Internet o autor se auto-representar como «um dos romancistas mais importantes das letras portuguesas», trata-se essencialmente de um caso de competente literatura de entretenimento, destinada, não duvido, a ocupar um dos «lugares cimeiros das principais tabelas de vendas nacionais» e a suscitar alvoroço e comoções entre o grande número de portugueses que viveram aqueles longos meses de brasa ou que deles colheram os ecos. Coisa que não constitui defeito, ou serve de atestado de menoridade, diga-se. Não é esse, porém, o aspecto que esta nota de leitura pretende destacar.

                      Tiago Rebelo propôs-se, como afirma em «nota de autor», «reconstituir essa época confusa e decisiva para o futuro de milhares de portugueses e de milhões de angolanos» (p.470), o que sendo tarefa bem difícil para um historiador, não o é menos para um romancista. Procurou fazê-lo combinando relatos de episódios historicamente verdadeiros e a enumeração de determinados locais de referência localizados em Lisboa ou Luanda, para o que se documentou muito bem. O uso do jargão militar ou do calão urbano lisboeta e luandense conferem também verosimilhança aos fragmentos de vida do universo de Nuno e de Regina, os protagonistas do romance, que muitos portugueses vivos, também eles proprietários de pares de óculos Ray-Ban e camisetas Lacoste, reconhecerão como tendo sido o seu. Ao mesmo tempo, descrições simples e abreviadas, sempre ritmadas e que funcionam como patamares entre diálogos curtos e sincopados – povoados, aliás, dos sempre inevitáveis anacronismos -, asseguram uma leitura rápida, que não requer excessivo esforço de concentração, tal como num romance americano hard-boiled para ler numa viagem de comboio de regresso a casa num fim-de-semana chuvoso.

                      «Atravessaram o Largo Serpa Pinto e foram caminhando devagar pela Pereira Forjaz abaixo, até à Mutamba, onde no trânsito do final da manhã engrossava sob uma atmosfera pesada. O sol impiedoso reflectia-se no passeio e o brilho intenso feria os olhos. Uma pessoa sentia-se asfixiar com o calor insuportável e o cheiro a combustível queimado. (…) Homens engravatados, a destilarem o calor nos seus casacos formais, de pasta na mão, furavam a massa humana no passeio, apressados para os seus compromissos profissionais.» (pp.163-4)

                      Aqui e ali, um fumo de outra África, raro mas convenientemente distribuído, modula a paisagem:

                      «Uma quitandeira com um cesto de fruta à cabeça levava um filho às costas, seguro por um pano étnico enrolado no corpo, a abanar a cabeça adormecida ao ritmo dos passos da mãe.» (p.164)

                      Este romance é, pois, competente na sua ambição ao mesmo tempo evocatória e nostálgica, recorrendo a personagens pouco complexos, condicionados por amores, ódios, rancores e fidelidades extremos, como que pré-formatado para o guião de uma minissérie televisiva de sucesso imediato. Mas nem por isso – e sobretudo porque retrata apenas o lado que conta para o seu autor, incapaz de dialogar com a paisagem humana que escapa ao batedor europeu em África – deixa de soar a um ajuste de contas. Que sugere cumplicidades com o padrão de leitor, desgostoso ainda pelo fim do Império, ao qual se destina prioritariamente este O Último Ano em Luanda.

                      A fechar, uma precisão histórica que importa, uma vez que Tiago Rebelo insiste numa afirmação, destacada no texto da contracapa, que alimenta um mito circulante entre muitos dos portugueses regressados em 1975 ao rectângulo europeu. Segundo este mito, os três movimentos de libertação «estavam derrotados» quando ocorreu em Portugal a queda de Marcello Caetano. Não sei de onde é possível inferir tal «informação» para que ela possa ser recorrentemente utilizada como verdade indesmentível. Todos sabemos, todavia, onde se pretende chegar através da repetição da fábula. Ainda que ela aqui ocorra mediada por uma estratégia narrativa que se maquilha de ficção.

                        Memória

                        Desamparados do Maio

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                        Sai na próxima semana, nas suíças Éditions de l’Aube, Forget 68, o mais recente livro de Daniel Cohn-Bendit (ou antes, contendo uma entrevista a DC-B). Levantou-se de imediato um clamor sobre a «traição» do homem ao qual terá faltado «apenas a fibra moral e social para viver a sua vida, coerente com as suas ideias». Para os desamparados do Maio de 68, que do movimento não vislumbram os efeitos culturais no longo prazo que o «judeu alemão» actualmente enfatiza, mas sim a sua dimensão simbólica de momento maior da fase terminal das ortodoxias marxistas, é insuportável imaginá-lo sob outro retrato que não seja aquele que preenche o seu próprio imaginário, construído sobre um episódio exaltante agora com quarenta anos de idade.

                        Mas Cohn-Bendit é o primeiro a avisar, num dos passos do livro que o Nouvel Observateur acaba de divulgar, que o título Forget 68 «não quer dizer que esse passado esteja morto, mas que ele foi soterrado sobre quarenta toneladas de calçadas [pavés, disse Daniel] que, depois dele, transformaram e mudaram o mundo». Porém, «culturalmente ganhámos», pois considera, a meu ver justamente, muitas das práticas que as democracias naturalizaram – como sejam aquelas associadas à democracia participativa, aos progressos no papel social das mulheres, à valorização dos direitos das minorias, à dissolução do rigor das antigas hierarquias, ou à liberdade de ensino e à sua democratização -, como tendo resultado, em larga medida, da vitória de um «espírito de 68» que ultrapassou as datadas circunstâncias do seu nascimento. Elas estão inscritas nos hábitos das sociedades democráticas e delas participam hoje praticamente todas as correntes de opinião, retirando-se apenas deste panorama os ultraminoritários grupos da extrema-direita.

                        Só que essa vitória partilhada conduziu inevitavelmente a uma outra realidade, a um outro tempo, no qual as contradições e as causas já não são aquelas que, há quarenta anos atrás, mobilizaram pessoas como Daniel Cohn-Bendit e muitos milhares de jovens «socialistas libertários» como ele foi. Da mudança das causas e da real dimensão da «traição» do «infame» Dany – como gosta que o continuem a tratar – fala entretanto o discurso que este acaba de proferir na sessão do Parlamento Europeu sobre a atitude da UE em relação aos Jogos Olímpicos de Pequim e à questão do Tibete. O discurso pode ser visto e ouvido aqui, sob o título «Il faut foutre le bordel pendant les Jeux Olympiques à Pékin».

                        Como os 40 anos sobre o Maio de 68 estão aí, regressarei inevitavelmente ao tema. Entretanto já encomendei Forget 68.

                          Atualidade, História

                          Velhos tempos

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                          Outros tempos aqueles, quando os call-centers não existiam e jamais alguém nos oferecia, através de chamadas insistentes e não solicitadas, telefones grátis a troco de assinaturas de um contrato não-sei-o-quê cheio de vantagens perante as ofertas, vindas da concorrência, de outros telefones grátis a troco de assinaturas de um contrato não-sei-o-quê cheio de vantagens. Clique aqui (e depois outra vez) para apreciar, em todo o seu esplendor, a notícia que a imagem acima invoca.

                          Comemorando a 100ª chamada proveniente de um «número privado» registada, em apenas cinco dias, no meu telefone fixo. Imagem da revista Gente, no. 23, 16 de Abril de 1974

                            Etc.

                            Nem todos os nossos poetas são os nossos poetas

                            Cheguei ao caso através de um post de Francisco José Viegas. Nele se chama a atenção para uma opinião de José Eduardo Agualusa, expressa durante uma entrevista concedida ao jornal Angolense, segundo a qual Agostinho Neto, António Cardoso ou António Jacinto poderiam ser «eventualmente muito boas pessoas,(…) mas eram fracos poetas». Claro que, sobretudo por causa do primeiro, caíram o Carmo e a Trindade para os lados de Luanda, ao ponto de começarem de imediato a correr declarações tendentes, uma vez mais, a desqualificar Agualusa no plano intelectual, político e até pessoal, acusando-o, por exemplo, de ter ido «longe demais ao atacar grandes figuras emblemáticas da literatura nacional».

                            Sem ser crítico literário, conheço o suficiente da obra dos três autores angolanos para, neste caso, concordar genericamente e em consciência com Agualusa. O que não invalida que admita que, para muitas pessoas para as quais a grande poesia deva «conter mensagem», ou então «exprimir sentimentos» sob «belas palavras», eles mereçam todos os epítetos que lhes possam conferir a aura dos «grandes poetas». Posso dizer a mesma coisa da poesia de Miguel Torga, Eugénio de Andrade ou Manuel Alegre, que não considero grandes poetas embora deva respeitar quem ache que o são ou quem tenha gosto em lê-los. Como reconheço a honestidade e o esforço que todos eles foram, eventualmente, depositando no seu próprio labor poético. Aquilo que não é tolerável é que a obra de alguém – poeta, crítico, amola-tesouras ou qualquer outra coisa – esteja isenta de exame e origine formas de coacção sobre a opinião ou a iniciativa de quem a possa contestar. Pelo que se pode ver, na ainda débil democracia angolana, onde se mantém um regime «firme e determinado, mas não totalitário» (palavras de um editorial do sempre oficioso e oficiante Jornal de Angola), permanece com voz activa quem pense que deva estar. Concordo com FJV quando este lembra que «convém estar atento, para que não pensem que ninguém ouve».

                              Opinião

                              O caso do holandês rastejante

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                              Que fique claro que considero detestável – e particularmente perigoso – Fitna, o filme anti-islâmico de Geert Wilders, aquele deputado da extrema-direita holandesa que saiu agora da semi-obscuridade para os títulos dos media. Detestável pelo seu conteúdo racista e intolerante, que não se contradiz quando estigmatiza o racismo e a intolerância dos outros, uma vez que toma partido por um dos lados do conflito de culturas e de explicações do mundo para o qual existem apenas os inequivocamente bons (nós, sem dúvida) e os inexoravelmente maus (os outros, pois quem mais haveria de ser?). Mas o filme é perigoso também, pois serve essencialmente para excitar os ânimos dos extremistas – situados de um lado e do outro do combate sem tréguas que eles desejam – podendo servir de rastilho para uma vaga de violência e xenofobia difícil de conter e capaz de trazer ainda mais ódio, sofrimento e desejo de vingança.

                              Todavia, algumas das reacções de repúdio que tenho lido por aí parecem-me algo filisteias e inapropriadas, pois tendem, uma vez mais, a desvalorizar objectivamente um elemento presente no documentário – e nele alarvemente generalizado – que é o poder crescente dos grupos islamitas sobre sectores cada vez mais amplos do mundo islâmico. Mergulhados há séculos na insciência, na miséria e na submissão – que Enzensberger considera ter sido agravada quando da recusa da revolução cultural determinada, na Europa, pela invenção da tipografia -, afastados de um debate aberto sobre o mundo contemporâneo, a sua diversidade e as suas oportunidades, dependentes de tecnologias que são forçados a comprar ao ocidente, eles têm sido presa fácil dos tiranos e dos exaltados, para os quais a missão apenas estará concluída quando a sua concepção paranóica e medieval do mundo vingar sobre o planeta.

                              É certo que o radicalismo islâmico não pode ser identificado com o Islão no seu todo, e que é dirigido por minorias que apenas se representam a si mesmas. Mas é já um fenómeno de massas, e em crescimento – basta olhar para a dimensão das manifestações de rua que assumem as suas palavras de ordem – em relação ao qual é preciso definir uma intervenção que não deve apoiar-se na errada noção de que os seus responsáveis são uma ínfima minoria e que existe uma opinião moderada que acabará por isolá-los. Uma intervenção que passa pela defesa intransigente dos valores de tolerância, liberdade e laicidade que o mundo de matriz iluminista – hoje crescentemente miscigenada com diferentes influências, é certo e é bom – deve preservar e partilhar, no diálogo com o outro, enquanto conquistas que lhe permitiram um dia começar a superar o estado de barbárie. E que as populações brutalizadas pelos regimes tirânicos que vigoram na generalidade dos países islâmicos têm o direito de reconhecer como opção. Diminuir a importância desta tarefa por causa duma guerra estúpida como aquela que Bush levou ao Iraque, devido a algumas iniciativas criminosas dos falcões israelitas, ou em função de acções deploráveis e arriscadas como esta do deputado holandês, é que pode tornar-se perigoso. Ao contrário do que parece pensar gente como Wilders ou os desculpabilizadores passivos do Outro, o mundo não é, nem pode ser, a preto e branco. E menos ainda com o preto de um lado e o branco do outro.

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