Author Archives: Rui Bebiano

Folclore-68

Apontamentos do Maio – 12

Garanto que se tivesse metade da idade que tenho, não tivesse lido os livros que li e apenas passasse os olhos pelo inenarrável programa revisteiro sobre o «Maio de 68» que Júlio Isidro (com um casaco à Bob Geldorf) está a apresentar na RTP-1, ficava com uma tal aversão ao dito «Maio» que nem pintado o poderia ver. Grandes canções destruídas, frases desconexas e descontextualizdas, situações dramáticas transformadas em palhaçadas, invenções, remixes, tudo envolvido num pronto-a-servir para encher chouriços e entreter labregos. Mais a referência, sacramental e oca, a «uma juventude idealista, mas muito ingénua» (Isidro dixit). Pelo meio, algumas pessoas prezáveis são convidadas a dizer uma ou outra frase que se perde completamente no meio de todo aquele chiqueiro kitsch. Divertimento pelo divertimento, antes um congresso do PSD.

    Apontamentos, História

    E o lenço a dizer adeus

    Um grupo de naturais almoça neste 13 de Maio com um colega que fala um português correctíssimo, mais fluente que o deles embora com o acentuado sotaque gutural de alguém que veio de Leste. A pergunta deste, quando surgem no ecrã da televisão os lenços brancos agitados pelo povo crente durante a cerimónia do «adeus à Virgem»: «Mas eles estão a despedir que treinador de futebol?» A aculturação é sempre um processo rico e fecundo, de resultados imprevisíveis.

      Apontamentos, Etc.

      As jotas e a política

      A propósito da conversa dos responsáveis das jotas com Cavaco sobre a relação distante e bastante difícil entre os jovens e a política, João Tunes coloca aqui o dedo na ferida e faz força sobre esta. Já agora uma pergunta: será que «no seu tempo» o jovem Aníbal António se interessava pela política? Se sim, folgo muito, pois não fazia a menor ideia de que tal pudesse ter ocorrido.

        Apontamentos, Atualidade

        Irina

        Aos 98 anos, morreu hoje a polaca Irina Sendler, «a Schindler desconhecida» que salvou 2.500 crianças judias do Gueto de Varsóvia de uma morte certa e ajudou a minorar o sofrimento de muitos dos perseguidos. Pessoas como Irina merecem ser lembradas, particularmente num tempo no qual se começa a considerar desnecessário referir o horror do Holocausto e a palavra «judeu» volta a funcionar, até em círculos que habitam confortavelmente as praças das sociedades democráticas, como estigma inapelável.

          Atualidade, Memória

          Francês sem mestre

          Apontamentos do Maio – 11

          Algumas frases de parede menos conhecidas. Daquelas que me tocam um pouco a espinal medula.

          L’Anarchie c’est je (Nanterre)
          Colle-Toi contre la vitre croupis parmi les insectes (Nanterre)
          Soyons Cruels (Rue des Écoles)
          Staliniens Vos Fils Sont Avec Nous (Place Denfert-Rochereau)
          Explorons le Hasard (Boulevard Saint-Michel)
          À bas le crapaud de Nazereth! (La Sorbonne)
          Comment penser librement a l’ombre d’une Chapelle? (La Sorbonne)
          Le Sacré voilà l’ennemi (Nanterre)
          Ayez des Idées (Faculté de Droit du Panthéon)
          Cache Toi, Object (La Sorbonne)
          Faites l’Amour et Recommencez (Rue Jacob)
          Vite! (Collège de France)
          Camarades Vous Enculez les Mouches (Nanterre)
          C’est pas fini! (Boulevard Saint-Michel)

          Fonte: Mai 68 a l’usage des moins de 20 ans (Babel, 1998)

            História, Memória

            Partilhar razões

            Apontamentos do Maio – 10

            Parece-me um tanto estúpido, para não dizer completamente idiota, procurar dividir o mundo entre aqueles que andam por aí a falar do Maio de 68 como instante fundador de uma nova era e aqueles que não querem saber dele para nada porque ele para nada lhes serviu. Entre os fatigados e repetitivos soixante-huitiards e as suas enérgicas e desmemoriadas crias. Entre os que se esgotam na prostração nostálgica e aqueles que apenas acreditam no poder de um novo que precisa assassinar para ser novo. Pelo meio, os outros: os que fazem de conta que foi tudo um mal-entendido, os que pensam que não passou de uma monumental bebedeira seguida de ressaca, os que só vêem a coisa pelo lado arenoso da arqueologia. Creio que, à excepção dos indiferentes, todos têm razão. Acontece que uma pequena frase fundadora e quarentona, escrita a negro numa parede de Nanterre, falava já disto: «Tout ce qui est discutable est a discuter».

              História, Memória, Opinião

              Pedir o impossível

              Apontamentos do Maio – 9

              O TBR chamou-me a atenção para um artigo de Slavoj Zizek aparecido no El País de ontem («Mayo del 68 visto con ojos de hoy»). Sublinho o parágrafo final: «Lo que mejor condensa el auténtico legado del 68 es la fórmula Soyons realistes, demandons l’impossible! (“Seamos realistas, pidamos lo imposible”). La verdadera utopía es la creencia de que el sistema mundial actual puede reproducirse de forma indefinida; la única forma de ser verdaderamente realistas es prever lo que, en las coordenadas de este sistema, no tiene más remedio que parecer imposible.»

                Apontamentos, Atualidade, Memória

                Da mesma laia

                Não distingo o psicopata Josef Fritzl dos generais que sequestram o povo birmanês e ainda lhe dão a ajuda humanitária que chegou de fora, a pedido de governos preocupados com a dimensão da recente catástrofe, em caixas previamente estampadas com as suas próprias fuças. Sorte a deles não terem constado do «eixo do mal».

                  Atualidade

                  Gestão por Objectivos

                  «Lancemos mãos à obra, na plena consciência de que o plano despertará a grande força criadora que reside em cada alemão, fazendo-a florescer.» (Walter Ulbricht)

                  Não surpreende a notícia, amplificada pelo Expresso: o inspector-geral da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica enviou às direcções regionais do organismo que dirige um documento no qual se previam, apenas para este ano, 410 detenções, 25.420 processos por infracção, 1.230 suspensões de actividade, 1.640 processos-crime e 12.000 contra-ordenações. A prática é sobejamente conhecida desde o tempo dos absurdos planos quinquenais estalinistas e das quotas maníacas de fuzilados, deslocados, detidos e enviados para «campos de reeducação» que, ao longo de décadas, o poder soviético e os seus plagiários foram materializando. O problema é que a «gestão por objectivos» imposta de forma mecânica por governos cegamente tecnocráticos e orçamentários, aplicada agora, como se sabe, a um número crescente de organismos dependentes do Estado (incluindo-se nestes as instituições públicas de ensino, de investigação e de saúde), tende assustadoramente a aproximar-se dela. Mas não faltará quem diga que não, que não senhora, que isto apenas serve para promover a eficácia e a justiça social.

                    Apontamentos, Atualidade

                    Desrazão de bancada

                    Podemos sempre fazer um esforço para recuar até aquele instante, localizado algures no nosso passado remoto, no qual decidimos ser aquele, e não outro, o clube de futebol do qual vamos gostar para toda a vida. Em certos casos, aquele com o qual nos envolvemos em momentos de euforia ou de depressão. Os motivos mais simples e mais comuns são os que condicionam a maioria dos adeptos: «é-se» do clube A ou B porque os nossos pais também o são, porque é esse o clube que mais adeptos tem na nossa terra ou no nosso bairro, porque – o pior dos motivos – é aquele o clube «que ganha sempre». Mas podemos sempre escolhê-lo porque gostamos da cor berrante ou discreta das camisolas, porque o associamos a um certo grupo social, porque é o clube da namorada que se deseja ou simplesmente porque é aquele que melhor se opõe aquele outro que simplesmente detestamos.

                    Porém, em cada tempo e circunstância as referências que nos fazem preferir uma camisola – ou a paixão por um emblema – serão sempre diferentes. Leio na crónica de hoje de Vasco Pulido Valente que, na sua infância, o Benfica estava «ligado à esquerda» (e por isso teria o miúdo Vasco simpatizado com ele), enquanto o Sporting era identificado com o regime. Populares, autenticamente populares, pelo menos na capital do país, seriam clubes como o Oriental, o Atlético ou o Belenenses. «Do Porto não se falava», e tal se aplicava, na época, mesmo a muitos dos habitantes da cidade do Porto. Para mim, as referências foram já completamente outras. Na viragem para a década de 1960, o Benfica era o clube «de toda a gente», do qual o regime se servia para mostrar um rosto benévolo do Império e para divulgar a imagem de uma já inexistente grandeza. O Belenenses era o clube do Tomás e do Tenreiro, enquanto o Atlético já mal se via, o Oriental tinha descido à Segunda Divisão e a Académica era apenas a simpática equipa «dos estudantes». O Sporting parecia-me, então, ser o clube de uma parte mais autónoma e razoavelmente esclarecida, embora um tanto snobe, da população. Apenas uma circunstância permanecia intacta: do Porto continuava a quase não se falar e tal se aplicava, na época, mesmo a muitos dos habitantes da cidade do Porto.

                    Claro que estes retratos possuem uma base estritamente empírica, capaz de produzir hoje resultados completamente diferentes. A verdade é que nenhuma ideia-feita pode contrariar o impulso irresistível para se gostar da cor mágica das camisolas ou para se simpatizar com o nome de um clube de futebol. Afinal, verdade lapalissiana, existe sempre qualquer coisa nos afectos que não se explica, e que pode induzir estados de alma e atitudes genuinamente irracionais. Por isso compreendo as lágrimas do Manuel do Laço quando soube que o seu Boavista iria descer de divisão por causa do apito final do «Apito Dourado». Se tivesse agora quatro ou cinco anos de idade, com o amor que tenho geralmente pelos fracos e pelos humilhados, talvez me tornasse um adepto incondicional do time do maillot xadrez. Nesta fase da vida, permaneço fiel à minha escolha irracional.

                      Apontamentos, Etc.

                      Selo de garantia

                      Posso garantir aos potenciais interessados que Miss Johansson canta bastante melhor do que Marilyn Monroe antes de falecer ou do que Carla Bruni antes de mudar de estado civil. Não tenho a certeza de que isto funcione como um elogio.

                        Olhares

                        Dia-a-dia high-tech

                        A compra de um Vaio TZ ultra-portátil e a adesão ao serviço Kanguru irão, inevitavelmente, provocar algumas mudanças neste blogue. Mais textos diurnos – o que antes era raro – e sobretudo mais posts curtos, instantâneos e voláteis como o café que toma o vizinho da mesa do lado.

                          Oficina

                          L’Humanité: uma visita guiada

                          Apontamentos do Maio – 8

                          «Certos grupúsculos (anarquistas, maoistas, trotsquistas, compostos em regra de filhos da grande burguesia e dirigidos pelo anarquista alemão Cohn-Bendit) tomaram as carências governamentais como pretexto para se dedicarem a agitações que procuram impedir o funcionamento normal da Universidade.» (L’Humanité, órgão oficial do Partido Comunista Francês, em Maio de 1968)

                          Segui a sugestão feita há semanas atrás no blogue O Tempo das Cerejas e encomendei o número especial do L’Humanité sobre o Maio de 68. Previa então um exercício de reescrita da recusa, e depois de uma gradual acomodação à sequência dos acontecimentos, que os comunistas franceses adoptaram durante o movimento. A previsão não falhou. Percorrendo as 132 páginas, que transportam uma extensa série de artigos, testemunhos e imagens, pode dizer-se que o número materializa uma leitura «a contracorrente» em relação às interpretações do Maio hoje dominantes, despojando-o em larga medida da sua carga libertária, sinal da irrupção de um anti-autoritarismo militante, e retirando-lhe também as características de instante de viragem.

                          Desde logo, a dimensão da revolta estudantil propriamente dita, essencial para sinalizar o movimento e garantir a sua originalidade, sai claramente diminuída, embora possamos dizer que se trata de uma opção editorial (discutível mas legítima). Nota-se depois que a presença tão paralela quanto coincidente da «insubordinação operária» é sobrevalorizada (o que é sublinhado ainda no DVD que acompanha a revista). Omite-se, em absoluto, uma referência consistente à crítica dos sectores radicais ao «reformismo» do PCF. Exalta-se de um modo desproporcionado o papel do Partido e dos estudantes comunistas. Insiste-se no carácter «anarquista» de Cohn-Bendit e de outros activistas não enquadráveis pelas organizações da esquerda tradicional. Em pouco ou nada se revela uma clara percepção desse tempo de brusca mudança na irrupção dos novos movimentos sociais e na transformação das sensibilidades colectivas, que o Maio de 68 condensou.

                          Os redactores do L’Humanité não perceberam o que se passou, continuam sem perceber aquilo que estava então a mudar, e insistem basicamente nos mesmos erros.

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                            O remorso da pop-star e o JA

                            Sir Bob Geldof é um tipo bastante irritante e que vale menos do que julga. Não fora a participação num programa sobre a fome na Etiópia que a BBC passou em 1984, e o seu pequeno sucesso como músico e actor tê-lo-ia confinado a actuar o resto da vida em bares esconsos das imediações de Quarteira ou de Shepard’s Bush. A partir da canção de caridade «Do They Know It’s Christmas?», para a qual conseguiu na altura o apoio de pessoas como Bono, The Edge, Boy George e Paul McCartney, e do mega-concerto Live Aid, de 1985, Geldof transformou-se numa figura reconhecida em toda a parte, perambulando como porta-voz de um certo remorso da pop-star, tão preocupada com os males do mundo, os famintos e os pobrezinhos quanto por levar uma vida protegida e sumptuária. Pelo meio, Bob lá foi conseguindo dinheiro, alguma influência, eventualmente um certo êxito numa tarefa que não terá deixado de ser importante para as pessoas carenciadas que dela podem ter beneficiado. Desculpando, de certa forma, o facto de ser um tipo arrogante e assumidamente conservador, de usar fatos às riscas, de dar-se a conhecer por dizer a primeira coisa que lhe vem à cabeça, e de ser apaparicado por quem ainda se deixa deslumbrar por qualquer rosto de projecção planetária.

                            Dito isto, convém reconhecer que está por provar que, tal como Geldof disse agora em Lisboa num jantar para banqueiros, diplomatas, políticos, académicos e jornalistas, Angola seja essencialmente «um país gerido por criminosos». Aceitemos que possa andar lá por perto. Ou que não, que não ande. Que possa até ser natural que os responsáveis angolanos se indignem, considerando as palavras do irlandês «um exercício puramente gratuito». Mas o que já não se pode aceitar é que o oficioso Jornal de Angola critique agora o Banco Espírito Santo pelo simples facto de ter convidado o músico, e trate este último como um criminoso e um vulgar beberrão, invocando a possibilidade de se tomarem «medidas legais apropriadas» contra ele. Deveriam saber que em democracia toda a gente tem o direito de dizer disparates. Ainda que estes possam conter algum fundo de verdade. Angola tem pela frente um longo caminho a percorrer, até remeter à irrelevância atitudes persecutórias como esta.

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                              Uma casa portuguesa com certeza

                              Manuel António Pina escreve hoje assim no JN: « Os partidos de direita preocupam-se muito com a insegurança nas ruas, mas é dentro de casa e da família que se praticam diariamente em Portugal os crimes mais cobardes, sobre as mulheres, sobre as crianças, sobre os idosos, sobre, em geral, os mais fracos e vulneráveis». Nem mais. E mais.

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