Quando oiço um camionista francês a explicar aos jornalistas as razões da sua luta na língua de Elizabeth Alexandra Mary, ou quando vejo os espanhóis comemorarem a vitória no Euro-2008 com uma frase em inglês macarrónico gravada nas suas camisolas rojas («impossible is nothing»: leia-se impóssiblé ize nótin), apenas posso concluir que o futuro do mundo se encontra inapelavelmente naquele linguajar técnico que Rex Harrison ensinava com toda a paciência a Audrey Hepburn em My Fair Lady.
Este título não me foi sugerido pelo bolero clássico de Alberto Dominguez, que todos em algum momento trauteámos ou ouvimos ao sintonizar uma rádio regional. A palavra avalia aqui o próprio post, como sinónimo de insídia ou de infâmia, e isto sabemos bem o que é: a sugestão de algo do qual suspeitamos, que aparentemente adivinhamos, mas do qual falamos de um modo impressivo e sem qualquer espécie de prova.
De cada vez que entro numa livraria encontro mais e mais ficção em português, quase toda ela próxima do romance histórico ou contendo uma óbvia componente autobiográfica. Transbordam os escaparates-placard, as estantes já não chegam, rimas de volumes por debaixo das mesas, os empregados incapazes de memorizarem títulos que identificam, quanto muito, pelas capas coloridas. Independentemente da medida da originalidade ou dos atributos literários – que diferem bastante mas podemos situar numa faixa média-baixa, próxima dos gostos da nova camada de viciados em literatura de hipermercado – aquilo que mais surpreende não é o número assombroso dos títulos, mas sim o dos autores. Ainda que muitos deles o sejam de um livro só. Mais estranho ainda é que a maioria seja gente crescida, em regra com uma vida já razoavelmente larga, mas que antes daquele título não publicou o quer que seja, e seja em que género for, com um mínimo de relevo e de consistência. Pelo menos algo que não seja uma edição de autor para oferecer à madrinha e impingir aos amigos, e possa constar das bases de dados das bibliotecas. Uma dúvida que me parece legítima perante tal acesso de súbita criatividade em tanta gente ao mesmo tempo, é a seguinte: não estará a profissão de ghostwriter em fulgurante ascensão entre nós? Outra dúvida é: não terá aumentado o número de editoras que publica livros com um financiamento muito substancial da parte dos próprios autores?
Apenas perfídia. Peço desculpa, com licença e obrigado.
Pietro Ingrao permanece aos 93 anos, «um homem brilhante, idealista e romântico». Assume, em entrevista ao suplemento Babelia realizada a propósito da tradução espanhola do autobiográfico Volevo la Luna, que o comunismo falhou, «que o assalto ao Palácio de Inverno fracassou». Mas não se rende. Ao seu modo poético de ser comunista, de se não rebaixar à repetição e ao estereótipo, de evocar a memória rejeitando o azedume, de conservar em tempos difíceis o optimismo revolucionário, é possível admirá-lo. Mesmo quando dele nos afastamos.
«A música mais indesejada do mundo» (noutra tradução, «a mais supérflua»), foi escrita por Vitaly Komar e Alexander Melamid, artistas plásticos e performers russos, de origem judaica, que trabalharam em parceria entre 1965 e 2003. Através de efabulações centradas em apropriações da memória colectiva, construíram uma obra única cujo núcleo original se formou a partir de uma aproximação aparentemente impossível, ou contranatura, do dada ao realismo socialista. Uma experiência que, como seria de esperar, em 1973 lhes valeu a expulsão da secção juvenil da União dos Artistas Soviéticos na qual haviam acabado de entrar – acusados de «distorção da realidade soviética» -, e mesmo a destruição pública de algumas das suas obras. Encontra aqui uma descrição desta The Most Unwanted Music, expressamente concebida para, nos seus 25 minutos de duração, soar desagradavelmente ao maior número possível de ouvidos. Não se aceitam reclamações.
PS – Um leitor chamou a atenção para um erro que cometi por ter partido de informação incorrecta. De facto, a peça não foi escrita por Komar e Melamid, mas sim por Dave Soldier (música) e Nina Mankin (letra), a partir de uma ideia dos primeiros. Mais dados aqui. Obrigado pela correcção.
Banda sonora: Raz Ohara and The Odd Orchestra – Love For Mrs. Rhodes
[audio:http://aterceiranoite.files.wordpress.com/2008/06/10-love-for-mrs-rhodes.mp3]
São de facto impressionantes, para um país como Portugal no qual jamais existiram movimentos feministas organizados, consistentes e com uma efectiva capacidade de intervenção, o número de participações e a dimensão do Congresso Feminista que começa amanhã, dia 26, em Lisboa, e se prolonga até ao dia 28. Este será plural, com toda a certeza. E dissonante, provavelmente, porque felizmente não existe um feminismo hegemónico. Esperemos também que represente um ponto de viragem, ao qual o poder político – que nem sequer se faz representar e vergonhosamente se furtou a apoiar o evento – deveria estar atento.
PS em 29/6/2008 – Ontem o secretário de Estado Jorge Lacão esteve presente na sessão de encerramento do Congresso. Mas a sua intervenção não estava inicialmente prevista. Depois de vista a dimensão do acontecimento…
Este post não é sobre futebol, mas sim sobre ourivesaria (e alguma argentaria também). Duas Taças dos Campeões Europeus ganhas pelo Benfica, a primeira e a última das Taças de Portugal que o clube conquistou, a Taça Latina, dois troféus relativos a Campeonatos Nacionais, camisolas utilizadas por antigas glórias do clube e uma das botas de ouro do Eusébio estão há quase um mês retidos na alfândega do aeroporto de Luanda. Não é que seja legítimo desconfiar de alguém que more nas imediações do Futungo de Belas – uma ideia absurda, sem dúvida –, mas é compreensível a ansiedade dessa nação benfiquista que aguarda o retorno dos sacros objectos à sua Caaba.
Quando será que um certo feminismo, como uma determinada esquerda, aceitarão que a luta social não tem necessariamente de ser sempre sisuda, monástica, zangada e maniqueísta? E que vivemos num mundo muito mais desordenado – e polissémico, se quiserem utilizar o chavão – do que o era o mundo de há trinta ou quarenta anos atrás? E que sátira e ironia nem são a mesma coisa nem cumprem idêntica função? A consideração devida a pessoas com o passado de Maria Teresa Horta não pode ser desculpa para aceitarmos posições como aquela que aqui se refere (link recolhido deste post da Maria João), e que se voltam até contra a causa que pretendem defender. Além de que aceitar que algo possa ser imune ao riso é pactuar com a limitação das liberdades. E é dar um pouquito de razão aqueles que têm uma grande vontade de enviar rapidamente para o mais fundo dos infernos o caricaturista holandês que brincou com o turbante do Profeta. Lembram-se das últimas cenas de La Vita è Bella, de Begnini?
P.S. em 24/11/2008: Teresa Horta repete hoje, em carta do leitor no Público, o mesmo tipo de argumento. Está no seu direito de o fazer, evidentemente, mas é pena não ter percebido. Lembrar-se-á ainda da Mosca do Diário de Lisboa, nos inícios da década de 1970? Ou será que já na época lhe não achava graça?
Não sei se este post me irá custar caro, mas eu também tive um sonho e vou contá-lo. Nesse sonho Hugo Chávez voltava a fazer rondas como oficial de dia, o rei Abdullah abraçava o sufismo e José Eduardo dos Santos praticava jogging sem seguranças no Calçadão de Copacabana. OPEP era um nome de refrigerante com sabor a limão. Todos os carros circulavam movidos a hidrogénio e o petróleo apenas servia para fazer shots marados. As bombas da Galp tinham sido transformadas em sex-shops e os autocarros «movidos a vontade de vencer» eram vendidos aos turcos. Sonhei com tudo isto esta noite, quando adormeci depois de ter visto os anúncios dos novos automóveis ecológicos – ou a um passo de o serem – da Honda e da BMW.
Recomendado também nos Caminhos da Memória, é já absolutamente imprescindível, para quem se interesse pela história da fotografia e pela memória do século passado, o Archivo Rojo da Guerra Civil de Espanha, integrado agora no Portal de Archivos Españoles.
Normalmente não escrevo posts a dizerem apenas «subscrevo», «aplaudo», «nem mais», «isso mesmo», «força, força, companheira», «estou contigo» ou algo do género. Isso escrevo eu nos mails privados para os amigos, se for o caso. Mas como acho que existem pequenos detalhes na vida que são o mais importante de tudo – muito mais que os cartões de visita ou os currículos de cada um –, apetece-me chamar a atenção para este post da Maria João Pires (não é essa, não, é a outra).
Segundo Halbwachs, toda a recordação é uma construção, ou um processo de reconstrução imaginativa, por intermédio do qual integramos imagens específicas, necessariamente formuladas no presente, em contextos que identificamos como passado. Um passado que perdemos para sempre – se a máquina do tempo de H. G. Wells ou de Robert Zemeckis se mantiver no território da ficção, se o buraco de minhoca passar de uma hipótese – e ao qual apenas podemos voltar através de um esforço de recuperação que tem no presente, e sempre no presente, o seu ponto de partida. Quanto muito observamos esse passado à distância, de uma forma que tanto pode ser melancólica quanto excessiva, mas que dele retira apenas, enquanto memória, aquilo que queremos e da forma como o queremos. As imagens recordadas não são assim meras evocações de um «real» acontecido, mas antes representações desse «real» (sem hesitar, Pascale Piolino chama-lhes mesmo ficções). Por isso é a recordação menos um meio de acesso ao passado que um instrumento para explorar, a cada momento, os conflitos em volta do modo como deve ser evocado e transmitido o que aconteceu algures, de esta ou daquela forma, num lugar mais ou menos recôndito das nossas cronologias.
Nestas condições, sugere-nos María Inés Mudrovcic em Historia, narración y memoria, «os erros factuais são tão significativos como os esquecimentos ou as referências exactas». Ou, poderá acrescentar-se ainda, como as «recordações-ecrã», que para Freud nos protegem das verdadeiras recordações. Esta ideia configura um cenário de pesadelo para os historiadores que buscam aproximar-se apenas de um retrato tão «exacto» quanto possível, e sem som de retorno, do passado sobre o qual trabalham, mas pode produzir um efeito dinâmico sobre todos aqueles – principalmente os que se preocupam mais com a história do nosso tempo – que procuram hoje servir de mediadores entre o presente do qual participam e um passado ainda recente. Num «tempo curto», onde a recordação sobrevive na consciência viva de muitos dos seus actores e das suas testemunhas, essa dimensão de incerteza não imobiliza a compreensão do passado nem a transforma necessariamente numa selva impenetrável; ao invés, pode torná-la até mais completa, avivando a vigilância crítica e a ponderação dos critérios de prova e de verdade, sempre centrais em todos os processos de construção e de reconstrução da história. À pergunta «que fazer com tanto passado?», a única resposta só pode ser «aproximamo-nos dele e enfrentamo-lo de todas as formas possíveis», sabendo que jogamos sempre com a vantagem de actuarmos de uma forma móvel, buscando a melhor posição para intervirmos, sobre um objecto granítico – o acontecido – que possui uma grande força de atracção mas permanece imóvel.
Tal como reconhece desde há muito a neurologia, a memória é menos um simples mecanismo de registo do que um instrumento selectivo, que dentro de determinados limites muda constantemente de sentido. Só nos lembramos daquilo que queremos lembrar, ou que somos capazes de lembrar, e escolhendo o ângulo de observação que pretendemos. Investigações no campo da psicologia clínica e da psicopatologia cognitva (com Van Der Linden, por exemplo) mostram que temos tendência para lembrar-nos de uma forma muito mais viva de episódios que evocamos positivamente, ou que servem para construir uma imagem confortável de nós próprios.
É neste contexto que a memória colectiva funciona como um necessário complemento da memória individual, com a qual constantemente dialoga e que de alguma forma «corrige». De facto, ela não consiste apenas num conjunto de factos do passado socialmente reconhecidos, nem existe «por si», como defendem aqueles que nela buscam por vezes a «essência» de um povo ou de um destino, mas é antes, e acima de tudo – retomo Mudrovcic – «um código semântico que opera como contexto no processo de recuperação das recordações individuais». As recordações assumem-se então como «configurações de sentido» de eventos seleccionados a partir de «lugares da memória». Estes podem ser físicos (uma praça, uma prisão, um tribunal ou uma estátua), mas também imateriais (uma ideia, um sentimento, uma tradição, uma crença), e apenas adquirem sentido na forma como a cada momento são lidos e manipulados.
Porém, se a valorização de determinados «lugares» é transitória, nunca é unívoca ou se inscreve num trajecto linear. Muitas das vezes, por exemplo, a destruição dos velhos símbolos é posta em causa por sectores da sociedade, minoritários ou não, a quem um determinado passado suscita um efeito de sedução. Pode então acontecer que certos grupos – menos conformados com a ordem vigente, mais identificados com algumas causas – releiam a memória colectiva e a partir dela formulem uma vontade de recuperação dos monumentos destruídos, como tem acontecido na Europa de Leste ou, mais pontualmente, em países como Espanha ou Portugal (veja-se a polémica, entretanto aparentemente serenada, acerca do «museu de Salazar» e da estátua do ditador). São formas de pensamento nostálgico que suscitam esse tipo de retorno, e o seu espaço de afirmação e de combate é o da memória que o presente integra, mas inevitavelmente modifica e reescreve.
Por isso o combate pela memória é um espaço de permanente conflito entre leituras do passado. Por isso ele carece tanto de uma abordagem crítica que assuma não a vitória da «verdade histórica» – a qual jamais será una ou definitiva, como presumiam as grandes metanarrativas – mas um eterno confronto entre «verdades» que se digladiam. Só assim se tornará possível impedir que uma leitura do passado se sobreponha às outras, impondo a ditadura dos vencedores ou daqueles que controlam os saberes e os meios de comunicação de massas. Erguendo fronteiras e produzindo margens cada vez maiores de silenciados e de esquecidos.
Li algures que La Chinoise, de Godard, é «um belo hino à juventude». Provavelmente foi-o, na enunciação plástica de uma atitude de entrega e de convicção tão própria daqueles jovens m-l, filhos (eles achavam-se enteados) da burguesia, que pelos finais dos sixties trocava o conforto dos sofás paternos pelo frio das oficinas, noites de conversa à volta de uma frase de Mao e porrada da polícia. A retórica primitiva e o despojamento, a defesa de uma crueldade justiceira, a adoração das unhas negras e rachadas, eram coisas menores perante um combate que só os jovens, aqueles e não outros, perfeitos e imunes às dúvidas, saberiam travar. Parece feio, visto daqui. Mas era lindo e impreterível.
A partir de hoje estarei também, e em óptima companhia, nos Caminhos da Memória. Um blogue que procurará «dar voz a diferentes formas de lembrar, de evocar e de interpretar o passado, recorrendo a leituras contemporâneas da história e da memória». Ligação directa a partir daqui.
Para lá da retórica «de esquerda», que fica sempre bem no discurso voltado para uma parte significativa da opinião pública e do eleitorado que em Espanha ainda a valoriza – por aqui os socialistas há já muitos anos que quase prescindiram de tal coisa –, quando chega o momento de se confrontarem com a firmeza dos princípios e a preservação intransigente da memória os adeptos «psoeístas» do realismo político vacilam, refugiam-se na «legalidade» e contemporizam com os branqueadores de passados. Mas existe quem não vá na cantiga.
Apesar da tradição bem conhecida que foi capaz de construir ao longo dos 25 anos de vida como editora, a Taschen não deixa de surpreender pela crescente qualidade das suas produções, pela capacidade para oferecer a um público não especializado álbuns sempre inesperados, e pelo preço a que consegue colocá-los nas livrarias. Comprei hoje um magnífico The Polaroid Book saído já em 2008. Soube-me bem desembolsar apenas 8 euros por uma edição belíssima e quase luxuosa de 350 páginas, mas, sem exageros ou duplicidade, custou-me encontrar na última página a declaração Printed in China e procurar imaginar as longas horas de trabalho duro e mal pago, as mãos gretadas e as estantes provavelmente vazias, dos operários que a produziram. O prazer, acreditem, diminuiu um pouco. Porém, e como toda a gente, em breve esquecerei o detalhe e continuarei a ampliar a biblioteca com livros a baixo preço.