Author Archives: Rui Bebiano

A grande evasão

Entre 2000 e 2007 fugiram das cadeias portuguesas 502 reclusos. Nada de grave, parece, uma vez que de acordo com a Direcção-Geral dos Serviços Prisionais existe uma «taxa de recaptura» (sic) de 90,6 por cento. Calculo que as verbas e as energias despendidas na referida recaptura, e na demanda dos outros 9,4 por cento dos evadidos, devam ser um tanto superiores àquelas que seriam gastas na melhoria das piores prisões e no reforço da sua segurança. Mas perdia-se por certo uma boa oportunidade para efectuar no terreno treino de corrida e exercícios de fogo real.

    Atualidade

    Outro episódio

    De acordo com a edição electrónica do Expresso «um grupo de dança, que devia representar os 56 grupos étnicos da China, era afinal composto apenas por crianças da etnia Han.» Este é já o terceiro «momento» reconhecido como forjado na abertura dos Jogos Olímpicos. «Suponho que eles [as autoridades] pensaram que os miúdos eram mais naturais e simpáticos», notou Yuan Zhifeng, o director delegado do Grupo Artístico Infantil Galaxy, que actuou na cerimónia.

      Apontamentos, Atualidade

      Nomadismo de bolso

      Escrevia Kipling, citado por Bruce Chatwin, que «se virmos bem as coisas, não existem senão duas espécies de homens, aqueles que ficam em casa e os outros.» A invenção do turismo de massas e das férias pagas, seguida da revolução dos transportes e das comunicações, atenuou essa separação entre os que partem e os que preferem a imobilidade ou não conseguem afastá-la do seu horizonte. A partir da década de 1960, com o progresso das condições de vida de parte expressiva da população dos países industrializados, e com o aparecimento de um mercado de destinos turísticos, grupos cada vez mais numerosos de pessoas passaram a deslocar-se periodicamente para longe do seu lugar de residência, procurando outros cenários para uma vida que desejavam inabitual.

      Já não se tratava apenas de soldados, de pregadores, de homens de negócios, ou de estudantes, saltimbancos e trabalhadores sazonais, que circulavam por força da sua ocupação. De repente, hotéis de preço médio e pensões de província deixaram de ser maioritariamente procurados por caixeiros-viajantes, professores deslocados ou pares ilícitos. Os parques de campismo e os albergues de juventude multiplicaram-se, proliferaram motéis e aparthotéis, as estações de caminho de ferro e as bombas de gasolina ganharam uma nova animação. Por toda a parte um novo viandante em busca de emoções ou em luta contra o tédio, que segue os guias e os desdobráveis e parece encontrar no seu trajecto uma forma de repouso ou de esquecimento das rotinas.

      Gradualmente, a viagem como estado de permanente partida e como afirmação de uma recusa, da qual falava Rimbaud, foi-se perdendo, substituída por circuitos nos quais todos sabem já aquilo que os espera e que irão fazer, sempre em condições de conforto e de segurança. E até a escalada dos Himalaias ou o mergulho de profundidade no Índico se tornaram programáveis e susceptíveis de serem executados sem grande esforço, quase ao colo dos guias, até ao local no qual a melhor fotogenia e o efeito de maravilhamento se juntam na perfeição de um cenário previsível de turismo de «aventura».

      Os próprios povos nómadas estão em vias de perder o seu lugar, uma vez que lhes estão a ser retiradas as rotas e os lugares tradicionais de repouso e de subsistência, ocupados pelas novas vias de partida e de chegada que rodeiam as cidades, por serviços de apoio aos habitantes sedentários que se deslocam de um lado para o outro, por empreendimentos turísticos que nunca bastam para as hordas de entediados cidadãos em busca de alguma coisa que não aquela que conhecem da vida de todos os dias. Mesmo a escrita daqueles que nos foram revelando a viagem como experiência estética e sensorial, capaz ao mesmo tempo de lhes permitir tresmalharem-se das suas circunstâncias, como a de V.S. Naipaul, de Paul Theroux ou do próprio Chatwin – ou ainda, recuando no tempo, a de Nerval, Flaubert, Isabelle Eberhardt e Blaise Cendrars, entre tantos outros -, foi gradualmente transformada num exercício de arqueologia, ou no mapear de mundos inconcebíveis para os novos viajantes providos de iPhone3G, sapatilhas Nike Air e jipes topo de gama, imunes a répteis, a insectos e a temperaturas extremas.

      Por aqui, poucos se interessam já pela rudeza dos cenários que eles nos desenharam, bem diferentes daqueles que mostram os folhetos das agências, os roteiros que acompanham as revistas, os livros e os documentários dessa nova espécie de jornalistas «radicais», bem vestidos e de pele tratada, pagos para construírem sucessivos cenários de desejo. Ideais para aqueles que, contrariando Kipling, vão de viagem com a casa às costas ou integram no seu quotidiano uma evocação branda e domesticada, sem fulgor ou estranheza, dos lugares e dos rostos que chegam de outras latitudes. Cada vez existe menos espaço para um nomadismo que não seja de bolso e é provável que nada possamos fazer para o evitar. E também nada nos garante que o fim desse mundo seja um mal: provavelmente será mais aborrecido, mas talvez seja também menos desigual.

        Atualidade, Olhares

        Odobenus rosmarus

        Eu cá não tenho inveja alguma de Michael «billion dollar baby» Phelps. O que pode parecer uma atitude um pouco estúpida, pois deveria cobiçar-lhe a juventude, a ausência de dores nas cruzes, o número de flexões que consegue fazer, a destreza na água, as medalhas, a fama e o dinheiro. Mas aquela cabeça marcada pelo prognatismo, as pernas assim curtas e sapudas, a propulsão de animal aquático, os músculos de Exterminador, o grito vitorioso à odobenídeo (odobenus rosmarus) de morsa satisfeita, remetem-no para uma espécie diferente, vinda do Waterworld e apenas semi-humana, à qual não desejo pertencer. Talvez seja essa, aliás, a causa profunda da admiração por Phelps manifestada por George W. Bush. Deve ser isso.

        P.S. – Este post partiu da leitura de um artigo sobre o carácter anómalo de algumas das características físicas de Phelps e a sua relação com a capacidade atlética fora do comum do nadador (mais dados aqui). E pretendeu ironizar um pouco em volta do processo mediático de construção do novo mito. Mas admito que a referência a uma determinada patologia possa ser interpretada de forma diferente. Peço desculpa aos leitores que eventualmente se sintam incomodados. Mas mantenho o texto por este incluir já alguns comentários, por entretanto ter sido citado e sobretudo por saber que muitos outros o não entenderam dessa forma.

          Atualidade, Devaneios

          Biblioteconomia

          António Sousa Homem, um portuense de 87 anos que vive actualmente em Moledo, no Minho, é heterónimo de um conhecido escritor e crítico português. O Dr. Homem lançou em Junho Os Males da Existência, o seu segundo livro, que se apresenta aos leitores como um conjunto de «crónicas de um reaccionário minhoto». Talvez por culpa do subtítulo, fui encontrá-lo numa loja da FNAC na secção de política. Bem perto de um volume de J. C. Espada.

            Olhares

            O sorriso dos espoliados

            O jornal Público não é a folha informativa de um sindicato. Nem um boletim partidário. Por isso apresenta a informação, e em muitos casos também a opinião, de uma forma que se pretende aberta a diferentes sensibilidades e interesses sociais. Mas ainda assim foi uma escolha infeliz a fotografia que preenche metade da primeira página da edição de hoje. Nesta, um grupo de trabalhadoras da Têxtil do Mindelo, todas elas com um sorriso aberto, mostra à câmara do fotógrafo os cheques referentes às indemnizações por despedimento que lhes eram devidas há 14 anos. Tanto tempo depois, que outra coisa poderiam fazer senão sorrir? A vida continuou e, afinal, tristezas não pagam dívidas.

            Mas a notícia no interior do diário mostra um cenário bem diferente. Aqui as imagens são outras: um autocarro ocupado com pessoas em silêncio e em traje de domingo, mulheres de negro com um aspecto resignado, muita tristeza e muito cansaço. Pessoas a quem a vida tirou muito, outras descendentes daquelas que entretanto faleceram ou já se não podem deslocar, muitas ainda num total que foi de 417, e que agora vieram receber uns trocos. Sem juros, como seria de esperar. Com «rateamento de verbas», como se contava que fosse. «Era 200 contos. Agora tenho um papel que diz 307,69 euros». O Sr. Abel já tem destino a dar ao seu dinheiro: arranjará o telhado, dará «uma pintadela», comprará um esquentador. Nunca saberemos se quando olhar para eles se lembrará dos anos que passou na Têxtil do Mindelo. Que foi de um senhor que tem agora, diz alguém, «uma quinta muito grande».

            É verdade que a caixa que acompanha a fotografia da capa começa por referir que «a alegria dos rostos esconde a demora da justiça portuguesa». Mas para maioria das pessoas, que compra o 24 Horas ou nem sequer se interessa pelas notícias, e que passa na rua mesmo ao lado dos exemplares do Público espalhados na banca dos jornais, a mensagem errada ficou dada. O jornalismo, pelo menos o de referência, tem também uma função cívica. Ou, pelo menos, deveria tê-la.

            Citações e informações retiradas da notícia do Público

              Olhares, Opinião

              A troca do «patinho feio»

              Ainda em relação à manipulação política dos Jogos pelo governo chinês, são um tanto chocantes as sucessivas revelações sobre o embuste tecnológico praticado na cerimónia de abertura. A cosmética visual seria legítima no campo da encenação do espectáculo televisivo, naturalmente, mas já o não foi procurar enganar o mundo inteiro, omitindo a informação e fornecendo depois desculpas esfarrapadas. Verdadeiramente indesculpável foi, porém, a ocultação de Yang Peiyi, a menina cantora «patinho feio», e a sua troca pelo «anjo sorridente» Lin Miaoke, apenas porque a primeira não tinha um aspecto conveniente e a organização sentiu que deveria «projectar a imagem certa e pensar no que era melhor para a nação». Da forma como tudo foi feito não se tratou apenas de dobragem – que se pratica em toda a parte –, mas de fraude e de rejeição de alguém, «por acaso» uma criança. A verdade é que pouco adiantará o sentimento de repugnância que este gesto tem merecido, pois, como bem explicou à BBC o dissidente Xiao Qiang, as autoridades chinesas «nem sequer têm noção da falta de ética que isto demonstra». A manipulação e a duplicidade estão-lhes na massa do sangue.

                Apontamentos, Atualidade

                O «barulho das luzes»

                De férias e por isso com um horário menos pendular, não vi a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim. Mas chegam-me de todo o lado notícias e impressões sobre a dimensão magnífica e aparatosa do acontecimento. Acredito que sim, que assim foi. O governo chinês investiu muito neste momento e detém, como todos sabemos, condições e instrumentos para fazer um trabalho bem feito, varrendo as queixas sobre vozes silenciadas, populações deslocadas, trabalho semi-escravo e direitos humanos espezinhados. Obviamente questões menores diante da «grandeza» do momento, da «capacidade de afirmação» da maquinaria chinesa, da concentração imposta dos meios existentes e da conjugação de interesses de dimensão planetária que suporta o evento.

                Salvaguardando a diferença imposta pelas tecnologias hoje disponíveis, recordo-me bem, apesar da sombra deixada pelo boicote de 65 países, do espanto do mundo diante da gigantesca coreografia que em 1980 abriu os Jogos de Moscovo. E, via YouTube, já assisti também a cerimónias de enorme «grandeza» e «capacidade de afirmação» em estádios da Coreia do Norte. Em todas essas «grandiosas» manifestações, e apesar da diferença formal que as separa, sempre a mão de uma organização sem falhas, orientada para a consumação da vontade una e a exibição interna e externa dos Estados «dos trabalhadores». Uma capacidade que os Estados democráticos jamais conseguiram igualar, uma vez que não dispõem, felizmente, das mesmas condições para treinarem e para imporem o unânime e o irrefutável.

                No Público, Inês de Medeiros esqueceu por momentos estes problemas e concentrou-se na disposição cinematográfica concebida em Pequim por Zhang Yimou, o talentoso realizador que trocou as incertezas da ex-condição de rebelde por um cartão de militante do PCC e pela confiança das autoridades. Já Ruben de Carvalho exultou com a forma como, através do espectáculo de projecção global posto em marcha, a China «procurou transmitir valores de inteligência, do valor do saber, da comunicação e do entendimento entre os homens». Fazendo questão de frisar, com indisfarçável satisfação, que «falharam completamente as “previsões” que, por um lado, anunciavam uma liturgia totalitária e, por outro, uma expressão de agressivo nacionalismo». Chama-se a isto ampliar o «barulho das luzes».

                  Atualidade, Opinião

                  Sem blogues

                  Não sei quantas pessoas lerão por dia os blogues portugueses de opinião e ideias, mas aceitando que uma boa parte delas segue diariamente sete ou oito, o seu número ascenderá, sem dúvida, a muitos milhares. Dez mil? Vinte mil? Mais ainda? Julgo que ainda ninguém conseguiu fazer tal contabilidade, nem sequer no âmbito daquele padrão de inquérito sociológico que depois permitirá diversas extrapolações. Mas serão muitas pessoas, muitas mesmo, sempre bem mais do que aquelas que lêem alguns jornais de âmbito nacional. Na comparação com estes é ainda necessário ter em conta que aqueles que acompanham certos blogues os lêem na quase totalidade, enquanto os leitores de jornais se centram neste ou naquele texto.

                  Parece-me pois deslocada uma frase de Miguel Sousa Tavares, usada na crónica que saiu hoje no Expresso, segundo a qual «sinal dos tempos e do país em que nos estamos a tornar, a morte de Alexander Soljenitsine não ocupou mais do que um curto obituário, preenchido com banalidades, mesmo nos jornais ditos “de referência”». Se passasse uma vista de olhos pela blogosfera, o conhecido colunista e escritor de sucesso teria percebido como a vida e a obra de Soljenitsine nela foram destacados e até debatidos. A vaga de alusões, de leituras e de informações que emerge dos blogues, independentemente da sua dimensão e valia, é, aliás, indicador de uma atenção por temas de interesse mais ou menos público que passa por um universo de comunicação que Sousa Tavares, com toda a legitimidade e talvez algumas boas razões, insiste deliberadamente em ignorar. Problema seu, naturalmente.

                    Apontamentos, Atualidade, Opinião

                    Quarto de hotel

                    Tenho um problema com os quartos de hotel. Aliás, creio que muitas pessoas que conheço têm o mesmo problema com os quartos de hotel. Quase todos eles contêm um aparelho de televisão, toalhões confortáveis e armários generosos. Muitos possuem cortinas automáticas, ar condicionado e, por vezes, um minibar com desenxabidas garrafinhas de ginger ale e de vermute. As camas são impessoais mas agradam-me quase sempre pela sensação de teleportação que oferecem. O problema apenas se revela quando queremos ler e escrever: para além de luzes insuficientes e mal orientadas, geralmente não têm secretárias ou mesas que permitam uma relação decorosa entre o corpo e o computador, ou entre os nossos olhos e as páginas de um livro. Alguns ainda possuem, numa daquelas peças longilíneas de mobiliário de madeira escura que se encostam a uma parede, papel e envelopes timbrados para escrevermos cartas, e até, como me aconteceu há dias numa cidade do norte, folhas de papel mata-borrão. Embora hoje já ninguém escreva em quartos de hotel cartas em papel timbrado – excluindo talvez alguns suicidas – e, à excepção de certos dirigentes do CDS, ninguém se sirva já em viagem de canetas de tinta permanente. Agora mesas e candeeiros decentes, para ler e escrever, disso quase não se vê. É quando estou dentro de um desses quartos, como acontece neste preciso momento, que me apercebo do quanto anda a intervenção da ASAE desviada daquelas que deveriam ser as verdadeiras prioridades.

                      Apontamentos, Devaneios

                      Troca de passados

                      Na sanha um tanto doentia, que persegue repetidamente, de procurar reescrever o seu passado e o passado do universo que habitou – do qual parece possuir, aliás, uma visão truncada e muito parcial -, Zita Seabra afirmou ao Público, a propósito de Soljenitsine, que «a esquerda não o lia». Não é verdade. Existia uma parte da esquerda que o via apenas como mais um contra-revolucionário, e outra que o fez participar da revisão dos seus modelos e da reescrita das suas utopias. Esta é a verdade.

                        Apontamentos, Memória

                        Na morte de Soljenitsine

                        Bem sei que cada um de nós se olha a si próprio de uma forma diferente daquela que os outros usam para vê-lo, mas «tenho para mim», como se diz na Beira profunda, que foram obras como os romances Um Dia na Vida de Ivan Denisovich (1962) e O Pavilhão dos Cancerosos (1968), ou ainda os grossos volumes-libelo do Arquipélago Gulag (1973-78), que independentemente do seu valor literário me fizeram evoluir politicamente e me transformaram numa pessoa talvez um pouco melhor. Por isso as tenho conservado na biblioteca à distância de um olhar. E também por isso sou incapaz de receber a notícia da morte de Alexander Soljenitsine sem a sentir de alguma forma como uma perda. Pessoal e colectiva.

                        P.S.: Uma adenda ao excelente post do Luís Januário sobre Soljenitsine: o Arquipélago de Gulag (com este título) foi publicado em Portugal, em dois grossos volumes editados pela Bertrand. No ano, pouco propício para o efeito, de 1975 (o 2º tomo em 1977). Na altura foram apontados, obviamente, como mais uma «manobra da CIA». Tenho-os aqui, mas foram adquiridos mais tarde, quando já tinha percebido que afinal não fora a CIA a inventar todo o mal do mundo. E muito menos a criar a «Administração Geral dos Campos».

                        P.S. (2): Veja-se também a posição de Carlos Brito, que levanta aspectos para mim até agora desconhecidos e que não podem ser omitidos. Embora me pareça que devam ser avaliados considerando as circunstâncias da vida de Soljenitsine e a intensa manipulação das suas palavras e acções que ocorreram em meados da década de 1970.

                          Atualidade, História

                          Adeus, Príncipe Valente

                          O meu á-bê-cê foi o Diário de Notícias, mas lá em casa lia-se também A Bola, o Mundo Desportivo, a Vida Rural, e o portuense O Primeiro de Janeiro, que era o jornal favorito do meu avô e ao domingo incluía um divertido suplemento pelo qual eu esperava sempre com alguma impaciência. A memória que dele guardo é a de um caderno que trazia consigo preciosidades para um rapaz de província, como histórias policiais, charadas, quebra-cabeças, anedotas, curiosidades, e a imprescindível banda desenhada, onde sobressaíam Os Filhos do Capitão Grant, série concebida a partir da obra de Júlio Verne, e, mais para as raparigas que procuravam um universo de teenagers que Portugal ainda não conhecia, O Coração de Julieta. Mas o melhor de tudo eram os quadradinhos a cores de O Príncipe Valente, de Harold R. Foster, surgidos no jornal em 1959 (embora lançados em 1948 nas páginas d’O Mosquito), e que foram, provavelmente, os responsáveis primordiais pelo meu gosto pela história, ali revelada sedutora na dimensão mítica e romanesca de uma Idade Média de papel.

                          Publicado desde 1868 como jornal da burguesia liberal que se opunha ao lançamento do imposto sobre o consumo e havia participado no movimento da Janeirinha, quando o conheci o PJ era já um tanto conservador nos conteúdos e no grafismo, mas permanecia ainda muito popular. «O Janeiro» evidenciou porém, nos últimos anos, uma decadência visível, com alterações gráficas e de conteúdo que visaram provavelmente assegurar-lhe a sobrevivência mas que o foram descaracterizando e o afastaram do seu público original. A actual administração acaba de suspender a sua publicação, despedindo 32 jornalistas e prometendo «uma nova imagem» que não se sabe com quem vai ser construída (embora se saiba que os método utilizados não pressagiam nada de bom). Apenas podemos ficar certos de que jamais regressará o diário de referência que manteve durante gerações um público atento e fiel. Como aquele que vibrou semanalmente com as aventuras únicas do Príncipe Valente.

                          Adenda a 04.Ago.2008: De acordo com o Expresso online, o novo O Primeiro de Janeiro está a ser redigido pelos jornalistas de O Norte Desportivo, caderno desportivo que integrava o centenário jornal portuense.» Rui Alas, o novo director do Janeiro e antigo director do Norte Desportivo, esclareceu que «apenas soube que iria ser responsável pelo novo projecto no passado sábado e que a equipa tomou domingo conhecimento disso».

                            Atualidade, Memória

                            O silêncio

                            Pior que um silêncio imposto é o apagamento das circunstâncias da sua imposição. Os silenciados cumprem então uma dupla pena: aquela à qual foram socialmente sujeitos e a que os impele para um irrevogável esquecimento. Vidas singulares que foram diminuídas, quebradas, interrompidas, e, no final, reduzidas a coisa nenhuma. Formas de emudecimento que adquiriram contornos singularmente dramáticos quando os totalitarismos as transformaram em simples factores instrumentais da sua monstruosa autoridade.

                            Por isso se torna indispensável, nas sociedades democráticas, a organização de um esforço destinado, tanto quanto a dar voz àqueles que não têm voz, a fazer ouvir os ecos dos silenciados. Esse esforço não pode devolver-lhes a parcela de existência que para sempre lhes foi roubada, mas pode, pelo menos em alguns casos, lançar um pouco de luz sobre o frágil rasto da sua exemplar vontade de escolherem o próprio caminho ou de pensarem a contracorrente. Ao mesmo tempo, pode projectar para as gerações mais recentes, que por vezes os desconhecem, a existência ou a forma de determinados casos de apagamento. Para que elas possam conhecer por si próprias de que maneira e em nome de que princípios se tornou possível, e continua a ser possível, esmagar aquilo que de mais intrinsecamente humano possuímos: a capacidade para fruir uma liberdade sem adjectivos e para construir um destino que podemos a qualquer instante fazer reverter.

                            Debaixo das experiências totalitárias, este pesado circunstancialismo tornou-se mais presente do que nunca, pois foi imposto em todos os recantos e não apenas na sua dimensão meramente policial e penal. Porque pôde ir até ao mais fundo das consciências. Porque em alguns momentos feriu até a capacidade para pensar o mundo de uma forma autónoma. Por isso, poucos foram aqueles que perseguidos, vilipendiados e reduzidos ao silêncio puderem enfrentá-lo com uma obra capaz de ultrapassar as circunstâncias e de lhes sobreviver. Poucos, muito poucos, foram os homens e as mulheres que, em tempos sombrios, puderam alimentar uma luz que emanasse, como escreveu Hannah Arendt, «da chama incerta, vacilante, e muitas vezes ténue». Luz que esses poucos foram capazes de «alimentar em quase todas as circunstâncias e projectar em todo o tempo que lhes foi dado viver neste mundo». A maioria, porém, jamais o conseguiu, reduzida ao silêncio – ainda que sob a capa protectora das melhores utopias –, pela brutal repressão, pela censura sem tréguas, pela prisão prolongada, pelo trabalho extenuante, pelo ruído seco do tiro na nuca.

                            A partir de Setembro seguirei aqui o rasto de algumas dessas vidas. Tentando mapear dolorosamente a linha frágil e irregular que através delas foi separando a esperança do horror. E este do esquecimento.

                              História, Memória, Olhares