O que é preciso tem muita força
Claro que apoio.
Claro que apoio.
Em grande parte da Europa, mas com uma incidência prática em Portugal que pode reconhecer-se com grande facilidade, a crise atual contém em si um forte dramatismo instigado por dois fatores que são muito mais complementares, ou contíguos, do que antagónicos.
De um lado a desregulação total do capitalismo e a incapacidade dos seus próprios gestores para encontrarem uma solução que reponha a atividade produtiva a funcionar e o mercado a rodar normalmente sobre os eixos, estabilizando o sistema. Apenas a direita mais extrema, com a sua roupagem populista e propostas miríficas de salvação eminente, parece capaz de controlar a sua própria intervenção, não perdendo terreno e ganhando até, aqui e além, alguns adeptos. Os partidos e movimentos do arco do centro, dos liberais mais clássicos aos social-democratas da ninhada de Giddens e Blair, circulam perdidos, envolvidos numa ação meramente gestionária que há muito se esqueceu da política maiúscula. Embora façam passar a navegação à vista que praticam por uma afirmação de convicções.
Do outro lado uma esquerda hesitante ou autoproclamada «consequente», que desde há várias décadas, enredada nos velhos mitos de uma Revolução salvífica que cairá do céu ou resultará da iniciativa de profissionais, se esqueceu de elaborar um modelo alternativo e mobilizador de sociedade e de militância cívica, de direção da coisa pública, de equilíbrio do Estado social, recuando para um combate essencialmente defensivo e reivindicativo. Útil em alguns momentos para debelar as injustiças mais brutais ou a rapina mais flagrante, mas incapaz de ajudar a obter uma resposta quando, como agora acontece, se torna necessário ascender a um estado politicamente mais evoluído e oferecer aos cidadãos algum entusiasmo para a conquista de uma outra via e de uma outra vida.
Em síntese: a direita gestionária não é capaz de manter o capitalismo a funcionar e de saber para onde vai, a esquerda outrora revolucionária não é capaz de tecer horizontes plausíveis e de mobilizar a maioria da sociedade para os alcançar. Entre uns e outros, os reformistas, que andaram décadas a dar uma no cravo e a outra na ferradura, perderam o norte e tentam reinventar a originalidade que perderam. O pior do drama que estamos a viver é que, neste cenário, não parece existir um desígnio coletivo capaz de projetar no horizonte um final feliz. Só a superação do sectarismo e a construção de confluências, capaz de rasgar alamedas, poderá salvar-nos.
Parece o esboço de um sketch perdido dos Monty Python. Mas não é. Ao folhear um recém-traduzido livro de Peter Sloterdijk, deparei com uma estranha referência bibliográfica. Em 1915 foi publicado na Alemanha um manual para manetas (esqueçamos a contradição nos termos), que foi preciso reeditar no prazo de um mês, dado o aumento da procura determinado pelo crescimento exponencial dos mutilados de guerra. Na segunda edição da obra, constatava o seu autor, Eberhard Von Künzberg, com um mal disfarçado alvoroço, que a afluência de novos manetas chegados da frente viera dar «um novo impulso aos antigos manetas». «Como é favorável a situação do mutilado de guerra! Graças à sua pensão está para sempre ao abrigo da necessidade.» Digamos, passe o caráter sinistro da comparação, que se pode antever no atual aumento do número de pobres e no alijar das responsabilidades do Estado o imparável incremento, a médio prazo, das instituições de caridade capazes de assegurarem um prato de sopa certo e seguro. Há um ano, o paralelismo pareceria um absurdo ou uma brincadeira de mau gosto. Agora ficamos a pensar se não corresponde a uma premonição.
Italo Calvino disse uma vez de Groucho Marx que o seu sucesso se deveu ao facto de, «enquanto consumado viveur e conquistador irresistível», se apresentar sempre com os atributos exteriores do prestígio, da autoridade e do saber viver. Fatores que terão ajudado a manter a relação de cumplicidade com um público que lhe permaneceu sempre fiel. Como acontece com todos os cómicos que através de performances burlescas partilham com quem os observa um sentimento de conivência para com a sua forma oportunista e habilidosa, individualista e sem grandes preocupações morais, de representar a vida. É o que se passa com atores como Fernandel, António Silva, Louis de Funès, Jerry Lewis, Mel Brooks e Rowan Atkinson. Com eles, a ironia é remetida para um limiar estreito e incerto, muitas vezes invisível. Talvez por isso tenha preferido sempre um outro género de humor. O dos clowns pobres, grandes solitários, histriões de roupa amarrotada e paixões impossíveis, de semblante triste e porta-moedas vazio, que não riem ou quase não riem, como Buster Keaton ou Chaplin, Totó ou Jacques Tati, Cantinflas ou Woody Allen. A essência da comicidade – tão intensa que pode levar às lágrimas – não se encontra aqui no espalhafato ou no gag inusitado, mas nas virtualidades subversoras de um modo sóbrio e desastrado, desolado e quixotesco, de usar o humor como meio de sobrevivência e estilo de vida. Os Monty Python não entram nestas contas pois o nonsense pertence a outro planeta.
versão 2.0 – original de 2006
Um dia antes de morrer, já semi-inconsciente, Rimbaud ditou à irmã Isabelle uma carta urgente, destinada a uma certa companhia de navegação: «Estou inteiramente paralisado e por isso desejo embarcar de imediato. Tenham por bem informar-me da hora a que poderei entrar a bordo.» A volúpia da partida, da viagem sem fim, ao dispor de todos os perigos. Para sempre.
Cittabella é, em Viaggio in Drimonia, o livro de Lia Wainstein editado em 1965 pela Feltrinelli, «a cidade dos buracos». Nela, todos os habitantes deambulam incessantemente, dando a sensação, a quem os possa observar a partir do exterior, de procurarem alguma coisa – um parente ou um amigo, um embrulho, uma carruagem, um animal de estimação – entretanto engolidos pelo chão. Ao mesmo tempo, medem cuidadosamente os passos, com o objectivo de evitarem a própria queda, que ainda assim consideram inevitável.
Deveria estar contente. Ou pelo menos agradecido às circunstâncias. Afinal lá caiu Berlusconi. Como se estatelou Papandreou. E antes deles tombaram Sócrates, Cowen ou Brown. Quanto a Zapatero, seguirá em breve para uma vida calma de conferencista. Não os comparo, embora com nenhum deles tenha simpatizado. Em particular com o abjeto Cavaliere, naturalmente. Mas é assustador olhar a vaga de políticos trocados por «reputados técnicos» ou por revanchistas que apenas pretendem reconduzir o Estado ao papel de polícia mau. De governantes eleitos com programas e com um contrato social, substituídos por administradores da coisa pública com formação de manga-de-alpaca e espírito de moralista. De humanos pecadores por asséticas santidades. Neste sentido, a queda do pequeno Napoleão italiano, e a forma como caiu, são até um mau sinal. Mais um. Pois não foram o povo e a democracia que o derrotaram. Foi a ditadura, invisível e pesada, do dinheiro e da finança.
Na conhecida obra de Diderot, o fatalista Jacques insiste em que tudo aquilo que de bom e de mau nos acontece se encontra escrito algures «lá no alto». As teorias deterministas partilham desta certeza ao tomarem o ser humano como peça de um mecanismo que é incapaz de controlar. Trata-se de uma forma mais elaborada dessa mesma ideia de destino que com menor dose de especulação os ultrarromânticos reconheciam como dona da vida, «marcando a hora» dos acontecimentos decisivos: um encontro único, um momento de sorte (que assim não seria fruto do acaso), o instante preciso da traição, da doença e da morte. Sabemos que esta é a forma mais fácil de encontrar uma explicação para aquilo que parece inexplicável, de encontrar uma certeza, uma âncora, na corrente do incerto. De certa maneira, é esse também o fundamento das religiões da aceitação e do suplício. Nas circunstâncias em que vivemos, parece pois inevitável um retorno em força deste princípio: perante uma realidade que todos os dias volteia e revolteia, e já ninguém se atreve a prever ou a tentar explicar, será quase natural um regresso das conceções fatalistas da vida. Bom para os fadistas, portanto, mas mau para aqueles que procuram contrariar a desgraça. A quem compete então inverter o que aparenta ser irreversível. Bater-se para mudar o destino. Aceitando, com o cantor Godinho, que «antes o poço da morte que tal sorte».
– Eh! qu’aimes-tu donc, extraordinaire étranger?
– J’aime les nuages… les nuages qui passent… là-bas… là-bas… les merveilleux nuages!
Charles Baudelaire – De Le Spleen de Paris (1860)
Vivemos escravos do olhar. O que não é mau, pois o olhar é um mestre esquivo, que muda muitas vezes de rosto, dá ordens inesperadas, e por isso admite um quinhão de independência a quem escraviza. Permite-nos ver e rever as mesmas coisas de maneira diversa, passando por elas como passamos pelas cidades invisíveis do Calvino italiano, sempre abertas a trajetórias novas, a roteiros que projetamos e percorremos à nossa própria custa, sem nos preocuparmos em demasia com os mapas, as polícias, os muros, os sinais de trânsito. Rei dos sentidos, como insistiam os poetas barrocos, o olhar é o último reduto da resistência e da liberdade.
A esta hora, nesta noite, há 22 anos.
Talvez por vergonha ou esquecimento, já quase ninguém fala do tema, mas numa destas noites ele deu corpo a um horrível pesadelo noturno que me fez acordar sobressaltado, com suores frios e os piores presságios. Nele o referendo de 8 de novembro de 1998 tinha afinal aprovado o plano de regionalização do país que ia multiplicar os cargos, as prebendas, as parcerias público-privadas, os processos do Tribunal de Contas, as Madeiras e os Audi pretos. E agora tínhamos um défice das contas públicas vinte vezes pior e quarenta vezes mais difícil de resolver do que o da Grécia. Quando percebi de que lado estava a realidade senti um imenso alívio. Por instantes achei até que tinha despertado na Noruega.
No centro da turbulência tendemos a concentrar-nos na nossa própria segurança e a esquecermos os outros. Faço o giro dos jornais, fico atento às notícias, e vejo como alguns assuntos desapareceram. Esquecidos porque as prioridades estão noutro lado, para aquém e para além das velhas fronteiras. Naquilo que decide ou não decide Merkl, no que resolve ou retarda Coelho, no que Papandreou supõe ser o dia de amanhã, naquilo que Barroso diz para não dizer. Algumas reportagens lançam alarmes sobre a fuga dos cérebros de putativos génios, seduzidos por uma bolsa de pós-doutoramento no Dakota do Norte ou pelo negócio da venda de imóveis na Nova Gales do Sul. Ao lado, imperturbável, o circo do futebol continua a preencher as primeiras páginas: com ele não há crise que meta medo e o único mercado capaz de preocupar as consciências é aquele que permitirá em janeiro o reforço dos plantéis. Mas a imigração, que ainda há uma dúzia de meses aparecia com algum destaque nos títulos, parece agora esquecida.
É verdade que já estava longe de ser o centro da atenção do país, até porque nunca foi assunto que preocupasse em demasia os sindicatos, os partidos e a conferência episcopal. Só que agora desapareceu de vez: ucranianos, moldavas e romenos, brasileiras e cabo-verdianos, apenas ressurgem quando se fala de um crime de sangue, de um assalto por esticão, ou, ocasionalmente, de «atividades de sucesso» no domínio do desporto, da restauração e das práticas mágicas. No entanto, ainda que um bom número tenha regressado aos seus países de origem ou partido para outros destinos, a maioria continua por cá. Sofrendo connosco a recessão, os salários amputados, os impostos que disparam, a insegurança e o receio do futuro. Só que não se ouvem, silenciosamente ocupados a sobreviver, como sempre fizeram e continuarão a fazer. Quanto a nós, de tão absorvidos com o deve e o haver da vida a prazo que agora levamos, tendemos a esquecê-los. E nem damos parte do seu desaparecimento. Um mau sintoma do estado de degradação da solidariedade e de desinteresse pelo coletivo, de um dramático sauve qui peut, ao qual chegámos.
«Seria difícil imaginar um realizador americano ou inglês a fazer um filme como Ma Nuit Chez Maud (1969), de Éric Rohmer, em que Jean-Louis Trintignant agoniza durante quase duas horas sobre se deve ou não dormir com Françoise Fabian, invocando, nestas duas horas, tudo, desde a aposta de Pascal sobre a existência de Deus à dialética da revolução leninista. Aqui, como em tantos filmes da altura, é a indecisão, e não a ação, que faz avançar o enredo. Um realizador italiano teria acrescentado sexo. Um realizador alemão teria acrescentado política. Para o francês, bastavam as ideias.» (Tony Judt, O Chalet da Memória)
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Uma frase curta com a qual nos têm martelado os ouvidos, como afirmação supostamente mordaz para justificar tudo aquilo que de mau nos está a acontecer, declara que «é preciso acabar com o regabofe». A frase é incómoda e perigosa porque tem sempre um sentido unívoco. Com ela se pretende indicar que ao longo das últimas décadas as pessoas comuns tiveram direitos a mais, uma qualidade de vida que não se justificava, educação e saúde exageradamente acessíveis, transportes ao preço da uva mijona, férias preocupantemente longas, uma estabilidade no trabalho que só lhes fez mal à inteligência e aos músculos. Que passaram demasiado tempo a passear, a comer refeições completas, a tomar banhos de mar, a ler romances, a namorar, a programar futuros melhores para si e para os seus filhos. Porém, aquilo que pretende significar quem se serve da expressão não é que tais práticas fossem intrinsecamente más, indubitavelmente escusadas e fonte incontornável do pecado. É que não foram as pessoas certas a fruí-las. Que o regabofe não deveria ter sido para quem queria, mas apenas para quem podia. Não para todos, mas só para alguns. Não para quem trabalhou mas para quem, no andar de cima, geriu o trabalho dos outros e, supostamente, dessa forma foi «criando riqueza» para gastar consigo próprio. Num merecido e eterno regabofe.