Gares, comboios e o resto

A partir da década de 1830, com a abertura das primeiras linhas preferencialmente destinadas a passageiros, a Europa e as Américas descobriram no caminho de ferro uma dimensão da utopia. O novo meio de transporte permitia agora percorrer enormes distâncias a velocidades inauditas, construindo, para quem tinha a possibilidade de viajar, uma forma radicalmente nova de apreender o mundo, os mapas, as fronteiras, as paisagens, as relações humanas, os negócios, o conhecimento e até a memória. A literatura oitocentista testemunha mil vezes a participação do comboio e das suas linhas na aceleração dos enredos, na verbalização do fascínio romanesco por uma geografia renovada feita de chegadas, de partidas e de movimento.

Esta dependia em larga medida do traçado em rede, que dava azo a que as antigas jornadas lineares, normalmente por etapas, ganhassem agora novas configurações, mais complexas e ao dispor da vontade e da bolsa dos viajantes que se multiplicavam. Mas não servia apenas para os levar a conhecer mundos, uma vez que esses mundos podiam também desembarcar nas cidades. Eça fala-nos do alvoroço dos estudantes que peregrinavam semanalmente até à estação de Coimbra para verem chegar, e logo ali serem abertos, os caixotes contendo as últimas novidades literárias da admirada Paris. O Sud Express surge então como parte do que se acreditava poder vir a ser uma linha continental capaz de unir Lisboa a São Petersburgo. Foi a expansão dos nacionalismos, culminando com as duas guerras mundiais e a afirmação dos Estados autoritários assentes no controlo dos cidadãos, que tornou impossível, e por vezes pintado de negro carregado, o devaneio oitocentista. O medo e o desespero apoderaram-se então das gares e das carruagens, tantas vezes «rigorosamente vigiadas», como evocava o filme de Jirí Menzel.

O fim das ditaduras e o derrube do Muro poderiam ter deixado que a utopia ferroviária retomasse o seu caminho, mas entretanto o uso das estradas já se havia tornado determinante. A linha de comboio, no entanto, não deixou de continuar associada a um certo padrão de viagem, tendo ao longo de décadas ajudado milhões de jovens a descobrirem o seu continente e gerações de trabalhadores a ganharem as suas vidas. Habitando o nosso imaginário colectivo, ela está agora em condições de ajudar a resolver muitas das dificuldades de transporte que a crise económica está a impor à maioria dos cidadãos. O comboio tomado – excepto para quem continue a comprar os pacotes turísticos que simulam os míticos Expresso do Oriente ou o Transiberiano – já não como espaço previsível de «aventura e descoberta» mas como uma necessidade e um veículo para ir traçando sucessivas linhas da vida. Assim o considerem as autoridades públicas, antes que os carris abandonados fiquem cobertos de pedregulhos, ervas daninhas e ninhos de serpentes.

Fotografia: Marta Bevacqua, The Train

    Apontamentos, Atualidade, História, Olhares

    O troco da memória ofendida

    memória

    A partir de «Em Angola era o paraíso», um post da Isabela Figueiredo sobre o hate mail que lhe chega conectado com o Caderno de Memórias Coloniais, aterro num tema que se tem cruzado regularmente com o meu trabalho. Em grande parte por ser historiador e por nessa condição – ou na de crítico, ou na de cidadão opinante, que regularmente também exerço – me ocupar sobretudo de um tempo recente, próximo, ainda quente, testemunhado por muitas pessoas que, mais ou menos novas, permanecem vivas, confronto-as, e vejo-me confrontado porque eu mesmo fui parte do tempo que observo e do qual falo, com uma constatação que a todos perturba. É fácil identificá-la: quando alguém remexe no nosso passado, ou no passado que vivemos em colectivo, constrói dele uma descrição que jamais é a nossa. Enquanto passear pelo simples facto, pelo episódico, o problema não é grave, podendo até ajudar a recuperar fragmentos de memória perdida ou a corrigir certezas infundadas. No entanto, se passamos à fase de construção de uma narrativa razoavelmente complexa, coerente e documentada, tudo se torna muito difícil.

    A partir dessa altura começamos a abalar a bela encenação, cheia de verdade e fantasia, que essas pessoas construíram – ou nós mesmo construímos – do passado do qual todos participámos e no qual, quase invariavelmente, na nossa épica rememoração desempenhámos, enquanto actores ou figurantes, um papel se não heróico pelo menos positivo. Ver despedaçar o romance que construímos a partir da nossa própria experiência, da vivência do que convencionámos terem sido os nosso melhores anos – e ver que nos escaparam muitas coisas, que nem sempre aconteceram como as recordamos, e ver que certas vezes andámos enganados, que só percebemos uma parte, que tudo foi muito mais complexo e provavelmente menos idílico – não cai assim muito bem em toda a gente. Quem se dedica a remexer nas vidas dos que ainda respiram sabe muito bem que não se pode dizer a alguém que aquele instante particular, para essas pessoas tão forte e tão importante, pode afinal não ter acontecido bem assim como elas têm a «absoluta certeza» que aconteceu. Pode não ter valido aquilo que elas hoje pensam ou precisam pensar que valeu. Pode ter acontecido de diferentes maneiras. Ou melhor: lá dizer, pode dizer, mas sujeita-se a levar com o troco da memória ofendida.

      História, Memória, Olhares

      Viver depressa, muito depressa

      James Dean

      A propósito da morte prematura de Amy Winehouse, um despacho da Agência France-Press veio falar-nos de um certo «clube 27». O dos «grandes mitos musicais do século passado» que morreram com esta idade, quando supostamente tanto havia ainda a esperar das suas vidas e do seu trabalho criativo. O despacho lembra alguns, os mais conhecidos: Brian Jones, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Kurt Cobain. É fatal, numa situação destas, evocar a deixa do actor John Derek em Knock on Any Door (O Crime Não Compensa), realizado em 1949 por Nicholas Ray: «Live fast, die young and leave a good-looking corpse». Pouco tempo depois Ray dirigiria James Dean em Rebel Without a Cause (Fúria de Viver, de 1955), onde paira a permanente vertigem da morte prematura, aparentemente sem sentido, e da linha ténue que a separa da vida. Como se cumprisse um destino, Dean morreria pouco tempo depois, aos 24, ao volante do carro com o qual contava participar numa corrida em Salinas. Em qualquer caso, um elo parece unir o trajecto de um conjunto de pessoas que desapareceram naquela altura da vida em que todos ainda nos cremos imortais, circulando sem olhar para o lado no limite do possível e sobre o fio da navalha. A daquelas ou de tantas outras, mais ou menos anónimas, que todos os dias aparecem pelos piores motivos nas páginas dos jornais. Não valerá a pena proclamar princípios de moral comum a propósito das «vidas perdidas» e dos exageros – de álcool, droga, noitadas, sexo, velocidade – daqueles que pagaram por eles o mais alto dos preços. Talvez acreditassem que viver era apenas aquilo, que mais nada valia realmente a pena. Como também não me parece que devam ser transformados em modelo apenas por recusarem os valores da moderação ou da mediania. Podemos talvez conjecturar, com alguma crueza e mórbido egoísmo, sobre como seriam hoje Morrison ou Janis aos 68, o que restaria do seu legado acumulado ao fim de todos estes anos, e se para nós – não para os seus pais, os seus amigos, que sofreram a perda – não terá sido preferível que as coisas se tenham passado daquela triste maneira.

        Cinema, Música, Olhares

        A poesia não é para os cães

        poetry

        Para que serve a poesia hoje? é um pequeno livro de Jean-Claude Pinson, recém-editado pela Deriva, que nos ajuda a responder a uma pergunta completamente actual: «O que pode ainda a poesia, quando as suas ilusões líricas do passado recente (proporcionar uma vista desimpedida para o Absoluto, “mudar a vida”…) foram desacreditadas?» Com uma intensidade ampliada quando na ordem-do-dia se encontra a eliminação por decreto – e por organizado descrédito – do que se revela supérfluo, daquilo que não possui valor de uso nem serve para trocar por papel-moeda ou linha de crédito, não podendo aplicar-se a reduzir défices, a aferir «competências efectivas» ou a cumprir «objectivos estratégicos», importa olhá-la como território da clarividência e de resistência, não meramente onírico ou projectado para a evasão, que jamais deixou de ser mas deve reassumir.

        (…) o poeta – o poeta baudelairiano – confia-se à musa citadina em vez da académica, e coloca-se do lado do que é «fraco, arruinado, entristecido, órfão». Canta sem refilar os «cães calamitosos que erram, solitários, nas ruínas sinuosas das imensas cidades». E talvez seja por a poesia não hesitar em encarregar-se, acrescenta Baudelaire, da «honra dos cães sujos», que pode esperar contribuir para que permaneça aberta outra habitação do mundo, menos alienada. Pois a poesia não é, apesar de tudo, feita para os cães.

          Atualidade, Poesia

          Arqueologia

          Do número 8 da revista Almanaque, saído em Maio de 1960: «A rapariga portuguesa não é normalmente muito alta. A altura média anda por 1,55 m. O peso é de 52 kg. A cor dos olhos e dos cabelos é castanha. Mede de peito 86 cm e de ancas 90.»

            Apontamentos, Memória

            Ser, não-ser e parecer

            parecer

            A resolução do Conselho Académico da Universidade Católica sobre esse dress code mínimo pelo qual, em proveito da sua dignidade corporativa, são responsáveis professores e alunos, encerra contornos inquietantes. Ela visa banir dos espaços e instalações da instituição os «modos de trajes e formas de apresentação próprias de local de lazer e de desporto», sugerindo, como instrumento de controlo, que «todos os responsáveis pela salvaguarda do ambiente e da imagem da universidade nas suas instalações e no espaço do Campus universitário, devem chamar a atenção dos que se apresentarem de maneira imprópria». Ocorre aqui, desde logo, uma dimensão normativa que colide com a liberdade individual. Ela até pode ser aceitável em quartéis ou prisões, mas não em locais públicos frequentados por pessoas que podem entrar e sair dos espaços sob a alçada do código sem qualquer coacção. Não se percebe, além disso, a quem se aplica, dado que os cidadãos atingidos pela medida podem ser até convidados vindos de outras universidades, de outras culturas, ou simples cidadãos em viagem de férias mas interessados numa conferência ou numa exposição. Pode ainda afrontar identidades pessoais ou colectivas, ostracizadas por «impropriedade» daqueles que transportem no corpo os seus sinais «aviltantes».

            O que mais importa aqui não é, porém, o caso em si, mas sim a tendência que ele sinaliza. A insinuação da cultura antidisciplinar, nascida nos Estado Unidos na década de 1950, e que dominou o ocidente por mais de vinte anos, traduziu-se, entre outros aspectos, na apropriação de estilos de vida, modalidades de gosto, padrões de vestuário, códigos de comportamento, cambiantes gestuais, linguagens, definidos como uma espécie de prolongamento, no que à vida pessoal dizia respeito, das «estradas da libertação» então abertas. De Lisboa a Praga, ela perturbou particularmente os regimes fechados e autoritários, para os quais a emancipação e a diversidade do parecer – da cor da camisa ao corte das calças e do cabelo – constituíam uma marca de intolerável rebeldia. Para os insurrectos, por sua vez, ela era um sinal identitário, um modo de perturbação da ordem cultural, social e ética que visavam contestar. Não será, por isso, por um acaso que, nestes tempos nos quais passou a ser sinal de boa política a correcção da desordem utópica produzida e propagada durante os sixties, o resgate do fato-e-gravata se imponha como aspecto de um «regresso à ordem». Alguns pedagogos do Estado Novo falavam das universidades como lugares de formação de um «escol de mandantes». Este processo de diferenciação social passava então por uma normalização rigorosa da economia do parecer. Felizmente os tempos são outros e estes círculos já deixaram há muito de deter capacidade para imporem o seu modelo de regulação. Mas teimam em cumprir o papel de difusores de uma concepção de elite – do saber e de poder – destinada a demolir a ideia de liberdade e de igualdade que fundamenta a civilidade democrática.

              Atualidade, Olhares, Opinião

              A voz sem voz da solidão

              Solidão

              A condição do solitário traduz ausência de afectos, uma necessidade intelectual ou a escolha radical de um modo de vida. Ou então tudo isso a um só tempo. Ele é aquele que ninguém interpela, e que, à força de não ser nomeado, acaba por adquirir uma espécie de transparência. É assim, como assim foi há mil anos, no tempo em que o escape do mundo podia até transportar consigo um halo de respeito ou de santidade. A solidão moderna, todavia, abandonou os lugares de ascese ou de exílio, os eremitérios, as ilhas perdidas, as florestas mais obscuras, para se instalar no coração da experiência urbana, contaminando a vida daqueles que não tiveram, ou em algum momento perderam, a possibilidade de manterem uma teia física de relações, de objectivos e de interesses. Sem espaço para fazerem ecoar a sua voz, escutando ao mesmo tempo as dos outros, estão condenados ao silêncio, à irrelevância, à morte em vida. Podem até agarrar-se a um terminal, deambulando pelas redes sociais, subscrevendo mil causas, protestos ou clubes de fãs de qualquer-coisa aqui ou além, mas sem o hálito e o olhar dos seus semelhantes permanecem insulados num deserto próprio. Tão sós que até a sua sombra perdeu a fala.

              A propósito da saída de um número do Magazine Littéraire dedicado ao tema da solidão.

                Apontamentos, Olhares

                Memória dos tempos que hão-de vir

                T. Roszak

                Quem se interesse por perceber o percurso dos velhos sixties, superando a visão nostálgica ou aquela que se lhe opõe, tomando-os como um desperdiçado tempo de desordem e retrocesso, ouviu por certo falar de um livro chamado The Making of a Counter-Culture, subintitulado Reflections on the Technocratic Society and Its Youthful Opposition, e que foi publicado logo em 1969, ainda os sons de Woodstock ressoavam vagamente pelos ares. Nesta obra, como tantas outras mais citada do que lida, o professor californiano Theodore Roszak abordou a origem americana, rapidamente alargada aos ambientes urbanos das sociedades dos países capitalistas avançados, da contracultura como ferramenta da ruptura e da contestação cultural, e como instrumento de rejeição da tirania imposta pelo sistema educativo e pela autoridade familiar produzidos pelo triunfo histórico do capitalismo. ler mais deste artigo

                  História, Memória, Opinião

                  O que aconteceu a Patty Hearst

                  Patty Hearst

                  Do arquivo dos meus blogues-antes-deste. Escrito em Outubro de 2005.

                  Há cerca de três décadas, quando as correntes «de raiva e esperança» dos sessentas haviam suavizado já o furor, foram muitos os que desistiram dos planos para mudar o mundo a troco da aceitação silenciosa das regras conviviais do neoliberalismo. Só uns quantos obstinados procuravam ainda resistir-lhe. Portugal vivia na altura o transe da sua doméstica metamorfose, mas mais além, do lado de cá do Dniepre como da outra banda do Atlântico, cresciam ou radicalizavam-se os movimentos, autoproclamados como vanguardas, que se propunham inverter os ventos através da acção directa das minorias esclarecidas e activas. Mostrando-se como exemplo ou servindo de rastilho para o que acreditavam poder ser um retorno da acção redentora «das massas». Integravam a arquitectura de um terrorismo – à época selectivo, e quase benigno quando comparado com o que hoje conhecemos – que os governantes procuravam conter. E se não conquistavam grandes adesões, convocavam alguma simpatia da parte daqueles a quem o sistema imposto pelos vencedores da ressaca «sessentista» parecia realmente odioso. ler mais deste artigo

                    História, Memória, Olhares

                    Antes tarde que nunca

                    marreta

                    Antes tarde que nunca. E mais vale já que depois.

                    A comissária europeia para a Justiça, Viviane Reding, acaba de propor, em declarações ao jornal alemão Die Welt, o desmantelamento das três principais agências de rating norte-americanas, a Standard & Poor’s, a Moody’s e a Fitch. «A Europa não pode permitir que o euro seja destruído por três empresas privadas norte-americanas», disse esta comissária luxemburguesa, exigindo mais transparência e mais concorrência na avaliação de Estados pelas referidas agências. Resta saber se este tipo de declaração corresponde a uma intenção sincera, a um programa a traçar e a cumprir, ou se se limita a servir para pacificar os ânimos mais exaltados.

                      Apontamentos, Atualidade

                      Os dados estão lançados

                      BE

                      À hora a que termino estas linhas deve ter acabado já o encontro aberto do Fórum Manifesto destinado a debater o passado recente e o futuro do Bloco de Esquerda. Sou um daqueles seus votantes e/ou simpatizantes – com a presunção de aqui pertencer a uma maioria – que não fora a presença forte desta corrente muito dificilmente se teria conservado nessa qualidade por mais de uma década a fio. O reconhecimento desta proximidade acaba, aliás, de ser confirmado pelo documento que serviu de ponto de partida para o debate de hoje, uma vez que me revejo no essencial da sua análise da actuação recente, das debilidades, das forças e das necessidades imediatas do partido. Discordo de pouca coisa, anotando apenas a falta de uns quantos temas que me parecem decisivos, entendendo essa ausência como motivada pelo desejo de «unir em vez de dividir». Mas como sou daqueles que reconhece também a necessidade de, em alguns momentos, «dividir para unir», ou mesmo «para reinar», aqui fica, embora a destempo, o meu pequeno contributo. ler mais deste artigo

                        Atualidade, Olhares, Opinião

                        Euro-eunucos

                        Monsieur Barroso
                        imagem retirada daqui

                        Da crónica de Miguel Sousa Tavares no Expresso deste sábado («O voo dos abutres»):

                        «(…) Por sorte deles [os abutres americanos das agências de notação], encontraram em Bruxelas uma cambada de eunucos, uma colecção de políticos sem nenhuma visão política de futuro, aterrorizados pelas opiniões públicas locais e as suas conjunturas eleitorais, um clube de cobardes sem alma nem grandeza, que irão dar cabo da mais fascinante ideia política desde o pós-guerra, que é a da unidade europeia. Aquele triste ajuntamento de cromos fotográficos não percebeu ainda que está sob ataque concertado e ajoelha-se perante a ofensiva de três agências americanas que estiveram directamente envolvidas no eclodir da crise mundial, ao acompanharem o irresponsável senhor Greenspan, ex-presidente da Reserva Federal americana, e o idiota do ex-Presidente Bush na cobertura do mais inacreditável roubo alguma vez cometido na história da economia — que foi o roubo da economia americana por parte do seu sector financeiro, com consequências que sobraram para o mundo inteiro. Estes tipos que, com o seu aval, permitiram que os Madoffs e os Lehman Brothers roubassem as poupanças e a confiança dos que trabalharam uma vida inteira para terem a sua reforma e a sua casa; que, lá de longe, assinaram a falência de milhares de empresas do mundo inteiro e condenaram dezenas de milhões de trabalhadores ao desemprego, agora exigem que Bruxelas assine por baixo que uma nação com quase nove séculos de história, como Portugal, seja lixo, e uma nação, como a Grécia, que fundou a Europa e que fundou a democracia e a civilização mediterrânica, há dois mil anos, seja tratada ao nível de merceeiro.

                        Em 1945, logo depois do final da guerra, Winston Churchill, que mobilizou a Europa e o mundo livre contra o nazismo, foi à Grécia para mostrar que a Europa livre apoiava a Grécia que resistia a ser encerrada na Cortina de Ferro de Estaline. Quando desembarcou, combatia-se uma guerra civil nas ruas de Atenas e ele nem conseguiu sair do aeroporto, porque nem sequer havia um poder estabelecido para o receber. Mas esteve lá, em nome da Europa e em nome da liberdade. Hoje, um qualquer finlandês ou polaco decide em Bruxelas sobre o futuro da Grécia, numa lógica de castigo e humilhação, e Bruxelas assiste, sem reagir, a que umas agências americanas, sem rosto nem qualificação para tal, decidam em seu nome se a Grécia deve ser reduzida a pó e Portugal a lixo. Para que a economia do planeta fique entregue ao combate final entre os especuladores financeiros da América e os piratas do dumping social asiático. Eis o que o capitalismo fez com a sua vitória histórica sobre o socialismo de Estado! (…)»

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                          Uma menina exemplar

                          Na última crónica que enviou para o DN, pressentindo a morte já muito perto de si, Maria José Nogueira Pinto fez um balanço profundo da sua vida. De uma ponta a outra, nele consigo ver reflectido – eu que até nasci no mesmo ano que ela e me formei sensivelmente na mesma época e na mesma universidade – o avesso da minha própria vida, dos valores que fui adoptando, dos combates que resolvi travar, da ausência de fé que mantenho, das causas e da perspectiva do mundo que fiz e conservo minhas. E no entanto não consigo deixar de admirar o seu trajecto. Mas julgo que sei porquê. Porque o assumiu, com coerência e frontalidade, sem desvios e trejeitos ínvios adaptados às circunstâncias, na defesa de uma perspectiva do mundo, da vida, da pátria, da moral, da família, da fé, que fez seguir por onde lhe pareceu certo e não por onde seria mais conveniente e até mais fácil que seguisse. Porque aplicou o princípio, que agora mesmo lembrou, de acordo com o qual «uma vida boa não é uma boa vida». Pessoas assim são raras e, estejam lá elas em que família política estejam, sempre exemplares.

                            Apontamentos, Memória, Olhares

                            Doença crónica

                            leninismo

                            No debate sobre os caminhos mais próximos da «esquerda à esquerda» será bom reflectir sobre um aspecto, apenas aparentemente menor, que é mais fácil de abordar por quem fala do lado de fora de qualquer organização, sem compromissos com essa noção de unidade – ou de combate de tendências – que constrange sempre a liberdade crítica. O vício e a formação de historiador das ideias levam-me aqui a uma curta viagem até ao passado e a dois livros que cruzaram a história da esquerda, fundando um padrão de combate de ideias que me parece perverso e está na origem de parte considerável de alguns dos piores tiques e sintomas de doença crónica que atravessam a esquerda de matriz marxista. O primeiro foi a Crítica do Programa de Gotha, um dos mais importantes trabalhos de Marx, editado em 1891 mas escrito muito mais cedo, em 1875. O segundo foi A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky, publicado em 1918 por Lenine. Um e outro tiveram como alvo a crítica de «oportunismos», ou «desvios», em ambos os casos tomados como formas inaceitáveis de pactuar com o capitalismo. Um e outro tiveram também como objectivo a defesa de uma «tirania das maiorias» consumada no rosto, mais vago e benévolo em Marx, mais cru e objectivo em Lenine, da «ditadura do proletariado». O que importa aqui não é, porém, debater o conteúdo de cada uma das obras, mas sim observar os termos em que foram escritas. ler mais deste artigo

                              Atualidade, Memória, Olhares, Opinião

                              A música, o silêncio

                              silence

                              Benjamin, ele de novo, lembrou a distância, ou mesmo o conflito, que ocorre entre a obra de arte criada manualmente, envolta nessa aura que associou a um fulgor etéreo, imaterial, advindo da sua existência única, e aquela outra, vulgarizada, afastada da dimensão do sagrado porque sujeita a um processo de «reprodutibilidade técnica», de multiplicação mecânica, como aquela projectada, no seu tempo, principalmente pelo cinema e pela fotografia. O recuo da dimensão ritualizada da obra de arte, ou, se se preferir, a reconsideração do próprio conceito de aura, não possuíam contudo, para o filósofo, uma dimensão necessariamente negativa, como expressão de uma qualquer decadência, definindo antes a entrada num universo de tipo novo, mais preenchido e ruidoso, no qual se vai perdendo esse instante singular em que a obra de arte emerge do silêncio e apenas dialoga com o interlocutor privilegiado. Este jogo de oposições e proximidades entre o silêncio criador, acessível a uns quantos, e um ruído que aproxima a criação das pessoas comuns, põe-se de uma forma particularmente aguda no contexto actual de multiplicação da música gravada escutada em estado de solidão.
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                                Música, Olhares

                                Di cosa parliamo, quando parliamo di…

                                De novo ao encontro de apontamentos guardados. Este de Abril de 2004.

                                Arendt associava  a centelha da revolução ao momento no qual o fio do tempo «começa subitamente de novo», revelando «uma história inteiramente nova, uma história nunca antes conhecida ou contada.» Entendida desta maneira, ela chispa obrigatoriamente nos momentos luminosos, inesperados, irrepetíveis, da experiência colectiva. O mesmo se pode aplicar à vida individual: não é revolucionário quem simplesmente o deseje, ou defenda um programa capaz de proclamar com décadas de antecipação a necessidade histórica da mudança mais abrupta. Mas sim aquele que, num infinito jogo de risco, é capaz de inscrever na sua vida, principalmente na parte da vida que partilha com os outros, instantes ruidosos, insurrectos, de afirmação do inesperado e do ainda não contado. O que consegue, como um dia escreveu Adorno, «contemplar todas as coisas como se elas se apresentassem sempre sob uma perspectiva redentora». Sabendo aproveitar o vento da urgência.

                                  Apontamentos, Olhares

                                  República, Estado e Igreja revisitados

                                  Jesuíta
                                  Medição antropométrica da cabeça de um jesuíta.

                                  Se tivermos em conta os contributos aparecidos nos últimos dois anos em redor da passagem do seu centenário, a República Portuguesa saída do 5 de Outubro de 1910 é agora um dos períodos da vida nacional mais inquiridos pelos historiadores. Esta circunstância não invalida porém – é esse aliás o principal interesse de toda a História viva –, a possibilidade de ocorrerem interpretações inovadoras, por vezes a contracorrente, que sistematicamente alertam para os limites de leituras estereotipadas e condicionadas por respostas previamente escolhidas. Aquilo que de marcadamente inovador contém A Separação do Estado e da Igreja, de Luís Salgado de Matos, é pois a sua capacidade, apoiada numa investigação pormenorizadíssima e numa argumentação liberta de apriorismos, para ler com outras lentes aquilo que já foi repetidamente abordado e sobre o qual tudo pareceria estar dito e escrito.

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                                    História