O inevitável é inviável

Não se trata de um programa para a acção, mas sim de uma declaração de princípios. Isso faz toda a diferença e torna este manifesto particularmente importante.

Manifesto dos 74 nascidos depois de 74

Somos cidadãos e cidadãs nascidos depois do 25 de Abril de 1974. Crescemos com a consciência de que as conquistas democráticas e os mais básicos direitos de cidadania são filhos directos desse momento histórico. Soubemos resistir ao derrotismo cínico, mesmo quando os factos pareciam querer lutar contra nós: quando o então primeiro-ministro Cavaco Silva recusava uma pensão ao capitão de Abril, Salgueiro Maia, e a concedia a torturadores da PIDE/DGS; quando um governo decidia comemorar Abril como uma «evolução», colocando o «R» no caixote de lixo da História; quando víamos figuras políticas e militares tomar a revolução do 25 de Abril como um património seu. Soubemos permanecer alinhados com a sabedoria da esperança, porque sem ela a democracia não tem alma nem futuro.

O momento crítico que o país atravessa tem vindo a ser aproveitado para promover uma erosão preocupante da herança material e simbólica construída em torno do 25 de Abril. Não o afirmamos por saudosismo bacoco ou por populismo de circunstância. Se não é de agora o ataque a algumas conquistas que fizeram de nós um país mais justo, mais livre e menos desigual, a ofensiva que se prepara – com a cobertura do Fundo Monetário Internacional e a acção diligente do «grande centro» ideológico – pode significar um retrocesso sério, inédito e porventura irreversível. Entendemos, por isso, que é altura de erguermos a nossa voz. Amanhã pode ser tarde. ler mais deste artigo

    Atualidade, Democracia

    Achtung, camaradas!

    W. Merkel

    Wolfgang Merkel – não, que se saiba não é nada à outra senhora – não se trata de um sujeito qualquer. É cientista político, investigador emérito no Centro de Investigação em Ciências Sociais de Berlim, e noutros tempos foi conselheiro, calculem lá, dos senhores Blair, Schroeder e Zapatero. Um de cada vez, bem entendido. Está de passagem por Lisboa e ontem respondeu assim a duas das perguntas que o Público lhe fez.

    A Terceira Via parecia ser a resposta da social-democracia à globalização. O seu sucesso também acabou. Essa corrente ainda contém elementos para essa resposta do centro-esquerda à globalização?

    Enquanto metáfora, acabou. Quanto aos seus elementos constitutivos, há um legado negativo e outro positivo (…). Deixe-me citar primeiro dois ou três fracassos. Um dos maiores foi aquilo a que eu chamo o «Estado dos impostos». Eles não pensaram realmente que a social-democracia precisa de um Estado forte e que este tem de ser capaz de cobrar impostos a todas as classes da sociedade. E o que fizeram foi reduzir os impostos às empresas, às corporações, aos altos rendimentos, isso abriu as portas àquilo a que o grande economista Douglass North chama o «caminho da dependência». Passou a ser extremamente difícil voltar atrás, porque qualquer força política que o fizesse seria logo acusada pelos adversários de querer aumentar os impostos e isto faz perder eleições em quase todos os países europeus. O enfraquecimento do «Estado dos impostos» foi certamente um dos principais fracassos.

    O segundo foi terem sobrevalorizado os efeitos positivos da globalização, levando-os ao credo na desregulação financeira. Foi um erro. Não viram que o impacto da globalização, que se traduziu num aumento de bem-estar geral, deixou de fora o terço mais pobre das nossas sociedades, que se dividiram entre os ganhadores e os perdedores da globalização.

    O terceiro erro eu diria que foi terem deixado de fora o espaço da UE como espaço de acção política. Estes três erros acabaram por acelerar os problemas da social-democracia.

    As coisas boas?

    Não são tão fáceis de enunciar. Uma delas foi a importância que deu à sociedade civil, dizendo que o Estado não pode fazer tudo pelas pessoas. E, pelo menos em teoria, a ênfase que colocaram na educação, educação, educação.

      Apontamentos, Recortes

      Amanhã vai ser outro dia

      São quase três da manhã a 13º Celsius, o prédio está em silêncio e da minha varanda não se vê ninguém. Aqueço a sensação de que ninguém me lê, ninguém me escuta, posso escrever aquilo que me apetecer na direcção de Saturno. Faço então as contas à contradição na qual me vejo embrulhado. Num momento em que me sentia amaciar, tendendo, quanto mais não fosse por recomendação dos licenciados, para a moderação da vida burguesa, eis que a realidade não deixa. Neste país de democracia suspensa e futuro encostado à parede, estou condenado, como tantos outros mortais – sabe-se lá o que pode a imaginação fazer à pobre realidade –, a radicalizar-me de novo. Temo pelos perigos desta radicalidade nova, construída sem projecto de futuro, sem caminho à vista e voz audível na qual seja possível confiar. No horizonte dos que resistem não se encontram agora cidades maravilhosas, lideres inspiradores, miragens de futuros perfeitos e inevitáveis. Talvez reste apenas a possibilidade longínqua de um recomeço, de um estado de esperança capaz de partir outra vez do quilómetro zero a caminho de uma Nova Califórnia. Irá doer e demorará, sem dúvida, correr-se-ão os tais riscos, mas há-de partir porque o mundo não vai acabar aqui. E não será por serem agora três da manhã, por não se ouvir sequer o motor de um carro rasgando a chuva ou o latido distante de um rafeiro, que acredito menos nisso.

        Atualidade, Devaneios, Música, Olhares

        Câmara lenta

        My office

        Têm sido dias danados, estes últimos. Para a maioria dos portugueses em primeiro lugar. Mas também para o autor deste blogue. Ao estado de tristeza e indignação que partilha com tanta gente, juntou-se uma estirpe de gripe que se prolongou por semanas, associada a muito trabalho acumulado e a alguns reacertos forçados na ordem dos seus dias. Daí este blogue andar outra vez menos movimentado, arrastando-se num estado aparentemente letárgico. Saibam no entanto que é só aparência. Logo que possível, em breve espera-se, A Terceira Noite regressará à normalidade. E mais: prepara uma surpresa para os seus (e as suas) mais indefectíveis cúmplices. Se tudo correr bem e o FMI não nos tramar de vez, lá para Maio perceberão do que se trata. Keep in touch, portanto!

          Etc., Oficina

          A sombra

          a sombra

          Inteiramente de acordo com o texto do Daniel Oliveira sobre o péssimo gesto e o mau sinal que foi a recusa do PCP e do Bloco de Esquerda a apresentarem-se nas reuniões dos partidos políticos portugueses com a delegação do FMI. Não gasto tinta em argumentos, uma vez que a maior parte do que aqui poderia dizer já ficou dito pelo DO. Como a posição do PCP é coerente com aquilo que o PCP tem desde há muito tempo mantido, resta-me acrescentar, enquanto cidadão que desde a primeira hora considerou o Bloco uma peça imprescindível da democracia portuguesa – e nele tem esperançosa e persistentemente votado –, ter começado a temer que a situação crítica que vivemos tenha em alguns dos seus dirigentes retirado da hibernação os velhos fantasmas do maximalismo kamikaze. Ou isso ou então a Ruptura-FER tomou já o poder e ninguém avisou a malta.

            Apontamentos, Atualidade, Opinião

            Disfunções havanezas

            havanesa

            Vinte e cinco anos depois, lembra-o hoje o El País, chega a Cuba um plano de reformas económicas semelhante ao imposto em 1986 no Vietname para dar algum fôlego à iniciativa privada, tentando superar as dificuldades determinadas pelo paradigma ultracentralizado e burocrático imposto pelo governo comunista. Por essa altura, já Deng Xiao Ping tinha começado a aplicar esse «socialismo de mercado» que iria transformar a China na superpotência económica, agressiva e cheia de desigualdades sociais, que hoje conhecemos. A receita, principalmente em Pequim, sabe-se bem qual foi: conjugar o pior do «socialismo de «Estado» (a total supressão da liberdade de expressão e de organização, e a repressão brutal de qualquer forma de protesto) com o pior do capitalismo (a exploração desgovernada dos trabalhadores e o crescimento selvagem de uma iniciativa privada protegida pelo Estado, conjugados com a completa proibição da intervenção moderadora dos sindicatos).

            A diferença, em Cuba, não está assim no modelo, cujos resultados práticos no desenvolvimento dos outros dois «Estados-irmãos» são bem conhecidos. Está em tudo ir ser feito debaixo da orientação das mesmíssimas pessoas que agora apontam erros graves e deformações ao trabalho pelo qual durante mais de meio século foram responsáveis. Não é, pois, difícil presumir que tendo existido liberdade de crítica e pluralidade de opiniões muito mais cedo e com muito menos custos para os cubanos se teria chegado a idênticas conclusões. O que não significa, obviamente, que estas levem a alguma coisa de positivo, para além do que já produziram na China: um acentuar dramático das desigualdades, um crescente alheamento das responsabilidades sociais do Estado e uma sofisticação da repressão política. Cuba não precisa de continuar a afinar os velhos motores, mas sim de máquinas novas. Não precisa de uma operação de cosmética, de «corrigir disfunções», mas antes de uma vaga de liberdade e de mudança na qual todos os cubanos, sem quaisquer reservas, possam participar.

              Atualidade, Olhares, Opinião

              Cavalgada | Os livros que sublinhei, 2

              cavalaria vermelha

              Retomo a série de livros deixados para trás e que num destes finais de semana recuperei do silêncio. Volto aos sublinhados a lápis e dou de frente com um outro eu (ainda assim, lá muito no fundo e limpando bem a poeira, provavelmente o mesmo).

              Alexandre Serafimovitch, A Torrente de Ferro [Edições Maria da Fonte, 1977]

              Acreditava que, dada a data da edição portuguesa, já me teria chegado no refluxo da crença total num modelo finalista de evolução da humanidade e na dimensão redentora da Revolução de Outubro. Mas afinal parece que este romance-panfleto, publicado pela primeira vez em 1924 por A. Serafimovitch (1863-1946), um antigo cossaco reconvertido em jornalista e escritor que o regime soviético elevou aos limites da fama e das honras públicas, ainda tocava uma qualquer corda sensível.

              «Os homens transmitem uns aos outros, palavras, fragmentos de frases tomadas aos oradores, sem saber muito bem o que dizem, mas sentindo que, separados do mundo pelas estepes imensas, pelas montanhas intransponíveis, pelos bosques espessos e obscuros, realizaram, na parte modesta que lhes cabia, o mesmo que se executava na Rússia, aos olhos do mundo inteiro, sem qualquer ajuda. Realizaram-no eles, sozinhos. Não o compreendem bem. Sentem-no e não sabem exprimi-lo.

              Os oradores sucederam-se e falaram até sobrevir o azul do crepúsculo. Gradativamente, crescia em todos um sentimento de felicidade impossível de conter: o sentimento do vínculo novo que os unia com aquela imensidão tão conhecida e tão ignorada de todos, que se chama a Rússia dos Sovietes.»

                Memória, Olhares

                Fuga para a frente

                fuga para a frente

                Quando o horizonte se estreita e a vida se complica ao extremo, é fácil perdermos a paciência. Diante da crise social que se adensa e da ausência de perspectivas, a tentação de correr para a frente, vendo inimigos em todo o lado que não seja o nosso e esquecendo os princípios elementares da civilidade democrática, começa a fazer-se notar de forma preocupante. Vive-se uma realidade inaceitável, que tem os seus responsáveis e as suas vítimas, crescendo a tendência para que uns e outros se organizem em campos opostos. A velha luta de classes parece voltar a calçar as botas e a meter-se ao caminho, enquanto aumenta a distância entre os que entendem que o mal está no excesso de direitos e aqueles que lutam para evitar perdê-los.

                Entre alguns destes corre então, de novo, a presunção de que só uma deriva radical pode reverter o curso dos acontecimentos, pensando de novo em Revoluções redentoras a caminho de outros «amanhãs que cantam». Embora ninguém saiba como despertá-los e menos ainda o que fazer com eles. A noção legítima, necessária, de que outra política é necessária, de que outro mundo é imprescindível, é então devorada por devaneios colectivos que confundem mudança com salvação. Pelo meio, a vida verdadeira, a das pessoas que não sonham com estandartes a adejar ao vento mas sim com uma vida digna, pacífica e livre numa sociedade solidária, é ignorada em nome de um retorno à luta de opostos. Esquecendo uns quantos que, tal como a história do século XX se encheu de provar, nenhum regime perfeito pode ser construído sobre a penúria e a terra queimada.

                Aquilo que estamos a viver obriga-nos a repensar o futuro e os modelos, sem dúvida, mas também nos desafia a olhar a realidade e a procurar soluções. Por isso, na situação actual, recusar discutir com o poder questões das quais pode depender a sobrevivência das pessoas só porque se coloca à cabeça a impossibilidade de ouvir aquilo que o governo que irá negociar com o FMI tem para dizer – como fizeram hoje os dois partidos parlamentares à esquerda do PS – contribui para as deixar indefesas. Pode ser muito bom para multiplicar o descontentamento e capitalizar o devaneio de uma mudança que «tudo resolverá», mas é duvidoso que traga benefícios eleitorais e de certeza que não ajuda ninguém a sobreviver no meio da tormenta. É preciso ousadia, sim, e luta também, mas algum realismo pelo meio dará jeito. A fuga para a frente não serve para outra coisa que não seja para fornecer oxigénio, escasso oxigénio, a essas «teorias e conceitos» que, como escreveu certa vez Hannah Arendt, de pouco servem em tempos sombrios.

                  Atualidade, Olhares, Opinião

                  Música e R E V O L U Ç Ã O

                  volume

                  Uma amiga criou no Facebook um grupo aberto chamado (Banda Sonora para) Uma R E V O L U Ç Ã O – assim mesmo, com espaço, para deixar a palavra respirar melhor – e inscreveu-me como membro. Ao contrário de Julius «Groucho» Henry, o meu Marx favorito, não tenho problemas em que me inscrevam como sócio de um grupo que me queira como tal, e por isso deixei-me ficar. Ocorreu ao final da tarde deste domingo, e poucos minutos depois a respectiva página continha dezenas de clips de canções de alguma forma conotadas com formas de intervenção cívica mediadas pela música popular. Poucas horas passadas, eram já centenas, com uma aparente tendência para o crescimento exponencial. Misturam-se os estilos, as línguas, as intenções, os slogans, os recados poéticos, pedaços de agitprop chegados de diferentes tempos, tudo unido pela ideia-fixa de que «a cantiga é uma arma». Combinam-se também os participantes, pessoas muito diferentes, de distintas gerações, percursos discordantes ou mesmo divergentes, perfis que por vezes parecem afastá-las. Mas é por isso mesmo, por causa desta diversidade, aproximada apenas por esse enorme sombreiro maternal que se chama (ainda) Esquerda, que não deixa de impressionar a coincidência de sensibilidades, de gostos e de memórias. Mesmo sem se simpatizar com a unidade à força – pessoalmente prefiro a ideia de proximidade na acção, que aceita e valoriza a diferença – dá para perceber de que forma, afinal, tantas vezes zangados dentro do seu próprio casulo sectário, tantos/as partilharam e continuam a partilhar devaneios semelhantes, indignações contíguas, um património musical, talvez uma noção imaterial de R E V O L U Ç Ã O, a ele unida, construída colectivamente como uma necessidade.  Se isto leva a alguma coisa, isso não sei. É assim e tenho a impressão que ainda bem.

                    Atualidade, Música, Olhares

                    Vermelho ondulante

                    vermelho

                    Nas circunstâncias dramáticas que estamos a viver, torna-se necessária uma tentativa de concertação de estratégias que ponham em marcha a resistência à ditadura canibal dos mercados e à política de sonegação de uma vida decente para a esmagadora maioria dos cidadãos. Neste sentido, faz todo o sentido que o Bloco de Esquerda e o PCP se tenham reunido, e se venham até a encontrar mais vezes, para acertarem estratégias comuns. Em nome dos problemas reais, inadiáveis, que nos estão a cair aos pés e com os quais ambos os partidos se preocupam. Acordos pós-eleitorais podem, sem dúvida, ajudar a construir uma resistência mais forte e audível à piratagem que se aproxima das nossas costas, ajudando também, essa será sempre a esperança, a parte não malsã do PS a assumir uma atitude corajosa e anti-capitulacionista, empurrando o lixo aparelhístico para o vão de escada de onde jamais deveria ter saído. Nesta medida, parece-me exagerada a posição de votantes e até de militantes do Bloco a quem já ouvi dizer que preferem abster-se, ou mesmo votar PS, a darem qualquer aval a uma aliança com o PCP. Aquilo que tenho dito a estas pessoas é que não me parece que tal aliança seja crível, embora aproximações pontuais possam e devam acontecer. ler mais deste artigo

                      Olhares, Opinião

                      O fotógrafo

                      Nadar_autoportrait_tournant

                      Se tivesse permanecido entre nós, Félix Nadar (1820-1910) – o valente figurão, o fotógrafo de Baudelaire, de Courbet, de Delacroix, de Verne, de Dumas, de Bernhardt, de Clemenceau, de Doré, de Nerval, de Liszt, de Sand, de Gautier, de Thiers – completaria hoje a bonita idade de 191 anos. Sem ele a memória visual da cultura europeia de Oitocentos teria sido outra. Bem mais pobre e cega, sem dúvida.

                        Apontamentos, Memória, Olhares

                        O caso Weiwei

                        Ai Weiwei, o mestre-escultor das sementes de girassol em porcelana que é possível esmagar com os pés, o importante artista, filósofo e activista dos direitos humanos, foi preso este fim-de-semana em Pequim quando se preparava para viajar até Hong-Kong. Na mesma altura foram também detidos diversos colaboradores seus. Neste momento as autoridades da República Popular da China mantêm Weiwei incontactável.

                        Uma petição exigindo a sua libertação pode ser assinada aqui. Imagens de algumas das suas obras podem ser vistas neste slideshow.

                          Apontamentos, Artes, Atualidade, Democracia

                          A esquerda e a caça aos gambozinos

                          pára-arranca

                          Vivemos tempos difíceis para a esquerda. Na realidade eles jamais foram fáceis, uma vez que o seu trajecto aponta desde a origem para a construção de uma sociedade solidária e igualitária, e esta é, em qualquer tempo ou lugar, uma tarefa difícil, morosa e armadilhada. Se a este objectivo primordial juntarmos a defesa da liberdade e valorização da democracia, então o preenchimento das agendas da esquerda torna-se ainda mais complicado. Por isso tantos preferem pluralizar o conceito: «esquerdas» parece, de facto, mais realista do que «esquerda», uma vez que a diferença é a regra, muitas vezes o obstáculo, e só no plano dos fundamentos se admite um caminho partilhado. Em Portugal, esta separação das águas foi reforçada, na comparação com experiências geograficamente próximas, pelo facto de ser praticamente inexistente, no mínimo desde o final da Segunda Guerra Mundial e dos tempos do MUD, o simples vislumbre de um projecto comum. De um calendário capaz de congregar diferentes sectores em torno de objectivos partilhados, voltados para a edificação objectivável de um outro país.

                          Mas se a dificuldade de encontrar à esquerda um caminho de aproximação não é de hoje, ela tornou-se agora particularmente penosa e incapacitante. Para uma consciência de esquerda que coloca os interesses colectivos acima dos objectivos circunstanciais deste ou daquele agrupamento, é particularmente difícil olhar o modo como a direita se encontra isolada na defesa de um modelo de sociedade selvagem e injusto sem que isso a distancie do acesso ao poder pela via do voto popular. Pelo contrário, ela mantém-se até pronta a assumir a governação e só a «esquerda de retórica», que esquecida dos seus princípios fundadores lhe imita os passos, parece em condições de lhe fazer frente nas urnas. Por outras palavras e dando o nome aos bois: enquanto o PSD e o CDS se preparam para gerir os destinos da nação, o PS, ou a linha de conciliação com a direita e o capitalismo que hoje o domina, limita-se a confrontá-los prometendo a mesma coisa mas de uma forma mais branda, moderna e simpática. Uns e outros projectando os seus programas sobre esse cenário de proclamada inevitabilidade que tem a destruição da dimensão social do estado como ponto assente e indiscutível. ler mais deste artigo

                            Atualidade, Olhares, Opinião

                            Lie to Me

                            Lie to Me

                            Cada Primeiro de Abril parecia um dia único. E não só para as crianças. A expectativa era grande, maior até, provavelmente, do que a das vésperas do Natal. A jornada começava cedo, vasculhando nos títulos dos jornais, nos noticiários da rádio ou da televisão, na conversa do vizinho, a mentira pela qual tanto se aguardara. O embuste fazia parte do jogo e era mais saboroso se parecesse verosímil, ou pelo menos incerto, podendo ser mantido até à manhã seguinte sem que alguém tivesse a coragem de o desmentir. Mas será mesmo que…? A 2 lá vinha então o anúncio, também esperado, revelando a extensão da burla e confirmando, quase sempre com um certo pudor, que quem por ela se deixara envolver o não tinha feito por ignorância ou burrice, mas por cumplicidade ou distracção.

                            Assim foi durante bastante tempo, não se sabe até quando. É provável que tudo tenha começado a mudar algures nos anos oitenta. E na década seguinte já o Dia das Mentiras tinha deixado de ser aquilo que fora. Não por se perder a magia do engano, mas por este se haver vulgarizado, deixando de corresponder a um estado de excepção. A velocidade e a imprevisibilidade da mudança, a generalização do boato e da imprecisão, o uso jornalístico da possibilidade com um tratamento análogo àquele conferido ao facto, a criação da «inverdade», a manipulação dos acontecimentos pelas manchetes, banalizaram a boa e calorosa trapaça. Por isso o Primeiro de Abril não será mais o que foi: um dia diferente em que a mentira participava, a mentirola divertia, a mentirinha não aborrecia e o engano acendia a imaginação.

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                              Sete dias como «autor publicado»

                              Não acredito na absolutização da ideia mil vezes proclamada como grandiosa de «escrever para a gaveta». Mesmo o escritor não publicado – ou aquele que sabe ter escassas ou nulas hipóteses de vir a sê-lo – escreve sempre para outro alguém. Será, se para mais ninguém for, para a/o amante, para um amigo cúmplice ou para o leitor ideal que um dia cairá do céu. Em contrapartida, não têm conta os escritores condicionados pela censura ou pelo medo do julgamento público impiedoso que escreveram a maior parte da obra, se não toda ela, sem a perspectiva de que esta pudesse vir a ser editada. Em «Amar Dostoievski», um artigo de Susan Sontag integrado na compilação póstuma Ao Mesmo Tempo, evoca-se o caso peculiar de Leonid Tsípkin (1926-1982).

                              Este médico russo de origem judaica viu a família ser repetidamente atingida pela repressão estalinista, e a ele próprio debaixo de constante suspeita, tendo por isso resolvido escrever apenas para os mais chegados. Recusando-se até, com medo de problemas insolúveis com o KGB, a deixar que os seus originais circulassem clandestinamente. Da sua perseverança contida diz a dado passo Sontag: «Escrever sem esperança ou perspectiva de ser publicado – que reserva de fé na literatura isso não implica?». Acabaria no entanto por aceder a publicar no estrangeiro Verão em Baden-Baden, romance construído em volta de um episódio da vida de Fiódor Dostoievski. A 13 de Março de 1982, um semanário nova-iorquino começou a publicá-lo sob a forma de folhetim. A 15 de Março, uma segunda-feira, Tsípkin foi despedido do instituto médico moscovita onde trabalhara a maior parte da vida. A 20 de Março sentiu-se mal quando estava em casa a traduzir um artigo; deitou-se, chamou pela mulher e morreu. Mas durante sete dias foi «autor publicado».

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                                Apontamento malaguenho

                                Combatentes republicanos

                                Queridisimos intelectuales (del placer y el dolor) é um documentário que obviamente não vi, estreado ontem no Festival de Cinema de Málaga no qual certamente não estive. Dele retenho, por isso, apenas os ténues ecos, frases soltas, que chegam com as leituras em roda livre das três da madrugada. Eles contam que o filme cola intervenções avulsas, aparentemente incoerentes, de intelectuais espanhóis contemporâneos. Guardo duas. A primeira é de Carlos Moya, não o ex-tenista de sucesso mas o sociólogo emérito, que declara ter sido o haxixe, durante os anos sessenta, «a quinta coluna do Islão» no Ocidente. Fica a boutade, para reflexão eventual e memória futura da mesma. A segunda intervenção que retenho é a de Santiago Carrillo, e nela o velho resistente, o antigo secretário-geral do PCE, afirma que durante a Guerra Civil espanhola teve lugar «uma explosão de liberdade sexual».

                                Esta «liberdade sexual» nas diversas frentes de combate deve ser relativizada mas foi real. Ela serviu à propaganda do franquismo, aliás, para mostrar a «imoralidade» dos republicanos, apresentados por vezes como vivendo em permanência entre Sodoma e Gomorra. Veja-se, como exemplo, a descrição dos republicanos «bolcheviques e jacobinos» traçada no conhecido filme de propaganda L’assedio del’Alcazar, rodado em 1940 por Augusto Genina. Sem querer ser simplista, julgo no entanto poder dizer, em abono da frase de Carrillo, que uma moral sexual mais rígida, fundada na condenação de ligações múltiplas, descomprometidas e fora do casamento, foi sinal, apenas sentido a partir dos anos quarenta, de uma regressão do franquismo em relação a práticas anteriores, historicamente comprováveis, que admitiam realmente uma menor rigidez no campo da sexualidade. Algo de semelhante se passou aliás em Portugal, com o recuo imposto durante o salazarismo de uma vivência social, sob este aspecto razoavelmente aberta, que havia sido posta em prática em determinados ambientes durante a Primeira República.

                                Por outro lado, e esta é uma constante intemporal, a guerra intensa, e a guerra civil é uma guerra de elevadíssima intensidade, funciona sempre – como sabe quem alguma vez a viveu e os livros nos contam vezes infinitas – como um poderoso afrodisíaco. Debaixo da sua influência, os «factos da vida» acontecem então por si, mais naturalmente, por vezes violentamente, quase sempre com urgência. E nem entre os franquistas ela esteve ausente, como o comprovam diferentes testemunhos. Por isso a frase de Carrillo só pode admirar quem ande um tanto distraído ou esteja, com falta de tempo, à procura de um título para uma breve nota de reportagem. Provavelmente foi isto que aconteceu. Com êxito, pois foi ela que me chamou a atenção durante a leitura-relâmpago desta noite.

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