Presságio

Conversa numa manhã de Dezembro, entre cachecoles, quispos e bonés de xadrez. «Estás melhor, pá?» «Quase fino. Ao menos morro de boa saúde.» A piada domingueira, antiga, resulta sempre. Já que não podemos fintar a morte, fazemos pouco dela.

    Etc.

    Ao sorriso, camarada!

    Ségolène
    Do encontro do Partido Socialista Europeu, no Porto, ficará um recanto da nossa memória visual. Uma tribuna na qual se destacava um tom de vermelho entremeado de fatos completos. Os participantes que se aproximavam em francês na segunda pessoa do singular. Uma vaga lembrança, presa na fala, da velha canção de Ferrat («C’est un joli nom Camarade / C’est un joli nom tu sais»). Ségolène Royale simpática, coqueta, coberta de flores, de mais flores e de muitos beijinhos. Da substância não me recordo muito bem: afinal já passaram dois dias.

      Apontamentos

      Da sabedoria 2

      Mencius

      Meng Zhu, latinizado como Mencius, c.372-c.289 a.n.e. (Livro dos Livros)

      «Todo o homem possui um coração que reage ao intolerável. Suponham que algumas pessoas vêem uma criança prestes a afogar-se num poço: elas terão todas uma reacção de medo e de empatia que não será motivada apenas pelo desejo de se manterem de boas relações com os pais dessa criança, pela vontade de adquirirem uma boa reputação junto dos seus vizinhos e amigos ou pelo incómodo que lhes possam causar os gritos que ela solta.

      Parece pois que, sem um coração que se compadeça dos outros, não se é humano; da mesma forma, sem um coração capaz de determinar a vergonha de uma má acção, não se é humano; sem um coração marcado pela humildade e pelo respeito, não se é humano; sem um coração que distinga o verdadeiro do falso, não se é humano.

      Um coração que se compadece é o germe do sentido do humano; um coração que reconhece a vergonha é o germe do sentido do justo; um coração capaz da humildade e do respeito é o germe do sentido do religioso; um coração que distingue o verdadeiro do falso é o germen do discernimento. O homem possui nele estes quatro germes, da mesma forma que possui os seus quatro membros.

      Porém, possuir estes quatro germes e dizer-se incapaz de os desenvolver é fazer mal a si mesmo. E todo aquele que seja capaz de os desenvolver ao máximo será como o fogo que abrasa ou como a fonte que jorra. Seja ele capaz de os desenvolver e poderá ver-lhe confiados os destinos do mundo; mas se for incapaz, nem mesmo os nomes do seu pai e da sua mãe poderá honrar.»

        Recortes

        Little Groucho

        Depois de ver na NBC a entrevista de Jay Leno ao Borat (na pele de Borat) mais convencido fiquei de que o último «fenómeno de bilheteira» do cinema americano procura vender aos amnésicos uma cópia barata de Groucho Marx (sem o charuto, naturalmente). Embora para muita gente que nunca foi apresentada a Mr. Marx possa de facto parecer uma novidade, sente-se na boca o sabor de uma refeição requentada.

          Etc.

          Passados ausentes

          Não é nada saudável viver uma realidade que do passado apenas recolhe as referências mais assépticas e manipuláveis. Aquelas capazes de ilustrarem consensuais mitos fundadores, ou então de servirem de mote para actividades que qualquer autarquia gosta de apoiar para relevar o património, assim relevando também a sua própria existência. Ou ainda, como acontece tantas vezes, para incentivar o espírito de paróquia. A importante intervenção do movimento cívico «Não Apaguem a Memória!» contraria esta tendência, chamando a atenção para um lastro de combate e de resistência que marcou o nosso passado recente e sem o qual, muito provavelmente, não conheceríamos há mais de trinta anos esta democracia incompleta mas benévola. Um passado que uma geração mais recente de políticos dos mais diversos escalões, e outros mediadores de opinião consciente ou inconscientemente «desmemoriados», tem feito por esquecer. Como se nada lhe devesse. Não parece saudável, porém, reduzir essa luta pela preservação da memória aos espaços, aos eventos ou às pessoas que lhe foram definindo as matrizes dominantes, deixando de lado aqueles, malditos ou minoritários, que à esquerda ou à direita têm permanecido omissos dentro das diversas «histórias oficiais». O que José Pacheco Pereira (de novo) relembrou hoje no Público.

            História

            Da sabedoria 1

            Buda
            O número de Novembro-Dezembro do Le Monde des Religions integra um dossier sobre a construção de uma «espiritualidade laica» que emergiu, a partir da década de 1970, da decadência das ideologias de matriz política ou religiosa. Dele consta uma lista comentada e cronologicamente disposta de «dez textos fundamentais da sabedoria», acompanhada de fragmentos dos mesmos que me arrisco a traduzir. Capturando algumas pequenas pistas para um trajecto que poderá revelar-se luminoso. Ainda que longe do divino.

            Buda, séc. VI a.n.e. (Cûla Mâlunkiya Sutta)

            «Supõe tu, Mâlunkyaputta, que um homem tenha sido ferido por uma flecha fortemente envenenada. Os seus amigos e parentes chamam um cirurgião. E o homem diz: “Não deixarei que me retirem esta flecha sem primeiro saber quem me feriu: qual é a sua casta; qual é o seu nome, qual a sua família; se é grande, pequeno ou de média estatura; de que aldeia, vila ou cidade veio ele; não deixarei que me retirem esta flecha antes de saber com que espécie de arco me alvejaram; antes de saber que espécie corda foi usada nesse arco; antes de saber que pluma enfeitou a flecha; antes de saber de que material foi talhada a sua ponta.”

            Mâlunkyaputta, este homem homem morreu sem saber aquelas coisas. Da mesma forma, se algum de nós disser “não seguirei uma vida virtuosa, na direcção do Bem-aventurado, sem que possua respostas a perguntas sobre se o universo é ou não eterno, etc.”, ele morrerá e esses problemas serão deixados sem resposta.

            Qualquer que seja a opinião que possamos deter a respeito de tais questões, existem o nascimento, a velhice, a decrepitude, a morte, a infelicidade, as lamentações, a dor, a aflição, pelo que eu afirmo que deveremos ser capazes, nesta vida, de nem tudo pretender saber.»

              Recortes

              Inacção

              O lugar-comum sugere a repetição, o movimento que se ausenta. «A ideia de se instalar nos lugares, lugares tranquilos», escreveu uma vez Olivier Rolin. Vales sombrios de longo cativeiro e de torpor. Distantes de outros vales, de margens nunca vistas, de hábitos ignorados, de horizontes que permanecerão por descobrir.

                Devaneios

                Amigos da Floribella

                Já passaram alguns dias desde que saiu, mas aponto ainda para a crónica de José Pacheco Pereira editada no Público de 30 de Novembro (e acessível aqui em versão revista). Falava ela dos «Sentimentos Misturados» que lhe parecia poder partilhar com Jorge Silva Melo. Sobre as franjas juvenis, urbanas e insatisfeitas que se movimentavam nos nossos anos 60 e das quais possui uma perspectiva que contrasta abertamente com o habitual discurso auto-celebratório dos seus sobreviventes: «Havia muita paranóia, mas, descontada toda a obsessão pela perseguição, sobrava um grão imenso de realidade violenta, bafienta, claustrofóbica, mesquinha e provinciana, que contaminava tudo».

                Por sobre esse cenário pairava, inabalável, a crença na capacidade salvífica do povo. Crença que hoje, sem dúvida, a ambos deixará cépticos: «os filhos dos deserdados das cheias, os filhos dos operários do Barreiro, os filhos das criadas de servir, os filhos dos emigrantes de Champigny, os filhos da “canalha” anarco-sindicalista e faquista de Alcântara mandam no consumo e o mundo que eles querem é muito diferente». E, de novo, o desencanto: «Queríamos que “eles” tivessem voz e agora que a têm não gostamos de os ouvir (…) Queríamos que eles desejassem Shakespeare e eles querem a Floribella, os Morangos e o Paulo Coelho. E depois? Ou ficamos revoltados ou pedagogos tristes e ineficazes, ou uma mistura das duas coisas». A diferença, fica implícito, está na pertença a uma esquerda incapaz de o reconhecer. Ou que, quando o faz, tende a desculpabilizá-los dizendo que a culpa não é deles. Nem dela.

                  Recortes

                  Kramer vs. Bin Laden

                  Cosmo Kramer
                  Não terão sido as tiradas de Michael Richards numa sessão de stand-up comedy na Laugh Factory, no mínimo «politicamente incorrectas», a condicionarem a mudança. A decisão já estaria tomada. Mas existe algo de intrigante no facto de a TV-Cabo se preparar para, no pacote de canais que entra em vigor no próximo Janeiro, trocar a SIC-Comédia – que até ocupava a décima posição nas audiências – pela Al-Jazeera. Não acredito que seja a previsão de audiências a justificar a medida. E ficamos, literalmente, com menos razões para rir.

                    Apontamentos

                    A luz da noite

                    Quase deixámos de usar a expressão «triste como a noite», confinada à métrica das chulas e dos fados vadios que resistem. Longe das aldeias despovoadas, fora das vielas onde já só dormem mendigos, bêbedos e drogados, a noite deixou de ser apenas silêncio, breu, território de caça para imitadores de Bela Lugosi e de Christopher Lee. Como um tempo para a melancolia e para a depressão. É o dia que agora nos atemoriza e entristece.

                      Devaneios

                      Marx/B

                      Marx_B
                      Na tentativa de parodiar a inadaptação de parte da esquerda britânica às mudanças do mundo pós-queda do Muro, Anthony Giddens falou de um certo «marxismo tendência Groucho». A frase pegou rapidamente. Foi citada, adaptada e abusada. Reparei, há dias, que já estão a chegar à universidade muitas pessoas incapazes de entenderem o alcance daquela gasta boutade do ex-director da London School of Economics. Bem sei que a maioria também não ouviu falar do primitivo Sócrates. Para não falar de Xenofonte, claro. O que não é propriamente muito animador. Mas reconheçamos que é grave, para a compreensão do mundo actual, jamais ter apreciado a inconfundível técnica de fumar charutos desenvolvida e divulgada pelo, julgo eu, segundo Marx mais conhecido de todos os tempos.

                        Etc.

                        Era a guerra / É a guerra

                        Paris - La guerre

                        «Vous parlez tout le temps de guerres. Il ne pouvait pas être question de guerres. Ces gens étaient des hors-la-loi. On ne fait pas la guerre à des hors-la-loi. On les extermine. Des hors-la-loi! Mon garçon, c’était une grande époque. Oh! c’était du beau travail, une merveille de l’organisation et d’audace dans l’exécution.»

                        Em De l’origine du XXIe siècle (2000), um filme de 17 minutos de Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville, contendo imagens de arquivo da 2ª Guerra Mundial e atrocidades nazis, entrecruzadas com extractos de Maurice Chevalier em Gigi, de Jerry Lewis em The Nutty Professor, e de À bout de souffle, do próprio Godard (ECM Cinema).

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                          Fé (ou: o passado nunca existiu)

                          Da entrevista concedida ao jornal Público por Blanco Cabrera, dirigente do Partido dos Comunistas do México que participa, em Lisboa, no Encontro Internacional que junta 63 Partidos «Comunistas e Operários»:

                          «Na Coreia do Norte há fome. Não acha que há um grande distanciamento entre a clique política e o povo?
                          Conhecemos a experiência da sociedade não capitalista na Coreia do Norte. Sabemos que é um caminho que conta com a aceitação do povo.
                          Como é que sabe que conta com a aceitação do povo? A Coreia do Norte é um país opaco e repressivo…
                          Recebemos a informação que nos é dada pelos companheiros do partido coreano e houve uma ocasião em que uma delegação do nosso Partido visitou a República. Efectivamente, é pouco o que se sabe, mas nós confiamos.»

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                            Heróis com mácula

                            Loren
                            Poderão Simone de Beauvoir, Alexandre Solzhenitsyn, Sofia Loren, Mary Quant, Rainer Werner Fassbinder, a princesa Diana, Juan Carlos de Borbón, Franz Beckenbauer ou a Madre Teresa de Calcutá integrar, ao mesmo tempo, o admirável panteão dos heróis mundiais do pós-2ª Grande Guerra? Para a revista Time, que acaba de publicar o extenso dossier «60 Years of Heroes», podem, sem dúvida alguma. Claro que nenhum deles detém a heroicidade paradigmática de figuras como Aquiles, Alcibíades, El Cid, Francis Drake ou Giuseppe Garibaldi, mas a estes já o tempo e a lenda transformaram há muito em semideuses de visita aos parentes terrenos. E a Time possui, do conceito de herói, uma concepção bastante democrática.

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                              Anónimos & Companhia

                              A forma, áspera e directa como é seu timbre, utilizada por Miguel Sousa Tavares para se referir ao universo dos blogues, é recorrente. Sousa Tavares – que há não muitos anos se declarou, na revista Grande Reportagem da qual era director, contra o uso dos computadores – está no seu direito de recusar, ou mesmo de desprezar, uma qualquer forma de comunicação. Esta ou outra. Todos nós conhecemos pessoas que também não gostam de ler jornais, ou que, confrontadas com o voice mail, adiam assuntos urgentes porque «se recusam a falar para máquinas», não sendo por causa disso que lhes deveremos desejar mal algum. Mas já me parece absurdo que, em crónica publicada no Expresso, o jornalista ataque os blogues, todos os blogues, para apontar o dedo ao mau jornalismo – aquele acrítico em relação às fontes, correndo atrás do boato mais abjecto – ignorando ao mesmo tempo que eles definem um dos meios de comunicação nas quais actualmente se escreve melhor português (e o pior também, naturalmente), se afirma um discurso mais livre, e onde se tem revelado, ou treinado na escrita, um grande número de pessoas, muitas delas jornalistas ou colaboradores habituais dos jornais.

                              Miguel Sousa Tavares tem entretanto razão na indignação que mostra por ter sido alvo, em blogue anónimo, de uma acusação de plágio. Acusação que, ainda que pudesse (ou possa) ser fundamentada, perde toda a credibilidade por ter sido feita de cara encoberta. O uso do anonimato – não do pseudónimo que, se consistente, pode até ser algo de substancialmente positivo – é um fenómeno antigo. Como o são os autores das cartas por debaixo da porta, dos bilhetes compostos com letras recortadas, dos graffitti em casas de banho públicas ou dos telefonemas com a voz distorcida. Eles podem sempre dizer aquilo que entenderem e na forma que lhes apetecer: ofender, caluniar, ameaçar, inventar, pôr na boca de A o que A jamais disse, dizer que «C disse a B que A». E sem possibilidade de contraditório, uma vez que pessoa alguma, com vergonha na cara e no seu perfeito juízo, aceita participar num jogo viciado com oponentes invisíveis.

                              Eis, pois, um assunto sobre o qual vale a pena reflectir e que merecerá, crescentemente, algumas precauções e iniciativas – incluindo no que se refere à actividade dos fornecedores de serviços em linha – no campo da segurança dos dados e da responsabilização de quem comunica. Como ando nisto há para aí uma dúzia de anos, participei em dezenas de projectos online destinados a defender a liberdade de expressão, escrevo habitualmente também em blogues e continuo a assinar tudo aquilo que escrevo com o meu verdadeiro nome, creio que posso dizê-lo sem que me confundam com um partidário da censura.

                              Leia-se também aquilo que sobre o mesmo assunto escreveu o Rui Ângelo Araújo [31.10.2006]

                                Cibercultura, Etc.