O tímido revela-se expansivo, o solitário sociável, o misógino conquistador: como em todos os processos de sedução, também aqui a metamorfose acontece. Na blogosfera fazem-se amigos e conhecem-se pessoas, flerta-se, namora-se, engata-se. Imaginam-se aproximações a homens belos e magníficos, a belíssimas e magníficas mulheres, todos eles aparentemente perfeitos, aparentemente próximos. Tão sensíveis e tão logo ali. Combinam-se encontros em pracetas ou em bares obscuros. Alguns falham, outros permanecem. E a vida de cada um segue o seu caminho. Ou não.
[De um conjunto de doze posts usados durante uma conversa sobre blogues que teve lugar na livraria Almedina-Estádio, Coimbra]
Só recentemente se começaram a reconhecer de um modo sistemático as formas da oposição ao salazarismo organizadas à margem da actividade do Partido Comunista ou dos seus aliados tácticos e companheiros de jornada. A capacidade de organização e a tenacidade combativa dos comunistas, associadas às consequências da demonização que deles fazia o regime anterior, contribuíram em larga medida para fazer passar à condição de figurantes as outras formas e os outros espaços de resistência. Sem questionar a importância decisiva do PCP no combate contra a ditadura, é preciso reconhecer que se encontra ainda por estudar, por exemplo, a definição de uma «oposição cultural» crescentemente alargada e diversificada ao longo dos últimos vinte anos do Estado Novo, capaz de definir vivências e imaginários alternativos traduzíveis numa desafectação crescente de parte importante da juventude universitária e urbana, dos sectores artísticos e intelectuais e de muitos elementos das profissões liberais e da classe média. Por sua vez, a dissidência individual, inevitavelmente menos notória, permanece em larga medida por reconhecer, se exceptuarmos referências pontuais surgidas neste ou naquele obituário, ou então em homenagens públicas mais ou menos tardias.
Os grupos organizados têm também permanecido quase na penumbra. A corrente socialista ainda não possui um estudo detalhado sobre a sua génese e desenvolvimento (um livro de Susana Martins constitui uma primeira tentativa). A esquerda radical só recentemente começou a ser objecto de estudo sistemático (principalmente com José Pacheco Pereira e Miguel Cardina), enquanto a actividade dos sectores católicos de oposição, apesar de recorrentemente mencionados e hoje publicamente «representados» na intensa acção cívica de muitos dos seus antigos activistas, continua por conhecer. Se exceptuarmos alguns textos de António Alçada Baptista e de João Bénard da Costa, a importância deste grupo tem sido recordada apenas em evocações episódicas, por vezes de pendor algo nostálgico, como aconteceu na comemoração dos quarenta anos da fundação da revista O Tempo e o Modo.
Um contributo novo e relevante para alterar este estado de coisas acaba, entretanto, de ser proporcionado por Joana Lopes, autora de Entre as brumas da memória. Os católicos portugueses e a ditadura, publicado pela Ambar. [continua em Passado/Presente]
De acordo com dados fornecidos pelo Infarmed, em 2006 os portugueses gastaram cerca 82 milhões de euros em sedativos, hipnóticos e ansiolíticos. Acontece porém que a depressão, por estes lados, parece ser um factor cultural e uma doença crónica. O mínimo que o Estado pode então fazer, em tais circunstâncias, será aumentar a sua comparticipação neste tipo de fármacos. Permaneceremos sedados, é verdade, mas com mais uns quantos euros no bolso.
A Assembleia Nacional Popular chinesa aprovou, após 14 anos de debates, uma lei que garante idêntica protecção à propriedade privada e à pública. Nada de surpreendente, tendo em conta que a primeira – para Proudhon e Marx, a essência da desigualdade social – passou a ser considerada, desde os tempos de Deng Xiaoping, um instrumento fundamental para o desenvolvimento e uma fonte legítima de enriquecimento individual. O problema é que a política externa da China também se adaptou a uma espécie de realpolitik, tendo desde há muito atirado os sempre obscuros «inalienáveis princípios internacionalistas» para umas quantas notas de rodapé nos livros de história. A dúvida que fica é apenas esta: o que resta então, no «Império do Meio», do socialismo e da utopia comunista? A repressão brutal do pluralismo político e da diversidade cultural em nome do proletariado e do Estado? O sistema penal feroz e inflexível «ao serviço do povo»? A inexistência de sindicatos e de uma comunicação social independente? As coreografias mecanizadas dos desfiles militares e dos espectáculos desportivos? As recepções cerimoniais às delegações dos «partidos irmãos»? Os stands na Festa do Avante? A igualitarização pelo silêncio?
Convivendo todos os dias com a elasticidade dos novos processos da comunicação, muitos dos utilizadores dos blogues desinibem-se e começam a escrever pelo prazer de falar, sem hesitações, por vezes de uma forma quase automática. Ultrapassam os processos morosos da reflexão e da escrita da era pré-Internet, que trocam por respostas rápidas, concebidas como um jogo, transformadas em jogo: a permuta de frases inesperadas, o alarde das pequenas descobertas, a provocação, o ruído repentista, as private jokes, instalam-se como um hábito, como uma linguagem.
[De um conjunto de doze posts usados durante uma conversa sobre blogues que teve lugar na livraria Almedina-Estádio, Coimbra]
C. fumava em público e orgulhava-se de não pagar licença de isqueiro. Para o provar, exibia durante cinco segundos um daqueles encendedores espanhóis, de cordão em fibra de algodão, que se guardavam ainda em brasa no bolso das calças. Creio que a chama se extinguia pela rarefacção do oxigénio. E, que me lembre, o único problema detectado consistia, principalmente para os outros, num intrigante cheiro a tecido queimado. Por mim, sempre preferi os fósforos. Até ao dia no qual fiz o upgrade para o meu primeiro isqueiro de usar e deitar fora.
Eu e C. seguimos caminhos muito diferentes. Encontrei-o há dias num almoço revivalista: próspero, continua fumador, mas serve-se agora de um caríssimo Bugatti. Por mim, fiel às origens e para me prevenir das consequências da actual fúria proibicionista, comprei hoje uma dúzia de vulgares acendedores em plástico. Se os novos fiscais dos isqueiros me apanharem, posso sempre inventar que sou fã dos Scorpions e que apenas me sirvo deles para acompanhar power ballads em concertos ao vivo.
Um livro de Steven Bach, Leni: The Life and Work of Leni Riefenstahl, pretende acabar de vez com a desculpabilização histórica da realizadora de O Triunfo da Vontade, falecida em 2003 aos 101 anos de idade. Para além da sua intensa ligação com o nazismo e com o próprio Hitler (bastante íntima mesmo, é o que consta), Riefenstahl terá sido muito mais – e para pior – do que a sua dimensão plástica nos fez acreditar. Nestes dias de humanização de gente sinistra à custa de muita maquilhagem e de bastantes falhas da memória, parece-me bem que alguém como Bach, um antigo vice-presidente da United Artists, afirme com todas as letras, e procure prová-lo, que Leni «era uma cabra». Pelo menos, para que se não continue a dizer que era apenas uma esteta levemente distraída.
Um post de Tiago Barbosa Ribeiro sobre a caracterização do «fascismo português», ao qual respondeu João Tunes alargando-se depois a discussão, fez regressar uma polémica que não é tão velha quanto a nossa democracia: é mais velha do que ela, pois vem do próprio pré-Abril. A oposição ao regime nunca se entendeu verdadeiramente a propósito da essência deste, e o labéu de fascismo passou a servir para designar uma ordem que foi «coisas diversas» entre 1926 e 1974. Neste sentido, e sem querer servir aqui de mero «conciliador» – serei suspeito, pois prezo os dois envolvidos – acredito sinceramente que ambos têm razão. Dito de outra forma: com TBR aceito que a experiência autoritária do salazarismo nunca teve a configuração heróica, popular, razoavelmente laica e essencialmente urbana do fascismo italiano (JT também não o negou); com JT reconheço a identificação de numerosos traços do regime, particularmente salientes a partir de 1933, que o aproximam das marcas comuns às diversas «quimeras fascistas», naquilo que de mais radical (e de sórdido, já agora) elas detiveram (TBR também não contestou esta ligação). Uma boa aproximação a esta «unidade na diversidade», capaz de temperar tipologias demasiado lineares, pode ser obtida na leitura de um livro recente mas que, por razões obscuras (mil páginas de texto cerrado também não ajudam a crítica…), tem permanecido na penumbra: Labirintos do Fascismo. Na Encruzilhada da Ordem e da Revolta, de João Bernardo (Afrontamento, 2003).
Em 1976, em O Fascismo Nunca Existiu, livro que gerou imediata polémica apenas porque um certo número de pessoas levou à letra a frase que lhe servia de título, Eduardo Lourenço esclareceu que o regime recém-derrubado poderia «entrar, como outros similares, nessa necrópole histórica etiquetada de fascismo». Julgo ser por aqui que, de alguma forma, se pode encontrar uma justa medida para começar a resolver, sem preconceitos, este aparentemente irresolúvel imbróglio. Para a memória histórica das gerações futuras, como para aqueles que viveram a resistência aos diversos regimes de «tipo fascista», o fascismo perderá a sua referência ancorada num determinado modelo – o italiano, talvez, mas porque não o alemão? (pois que coisa será afinal o nazismo?) – e designará aquela época longa, interminável, de noite e de nevoeiro, no qual as botas ferradas e os cânticos em louvor do Chefe e da Nação, tiveram como única resposta possível uma luta tenaz, constante, corajosa, pronunciada em diversas línguas, pela utopia da liberdade. Todos eles – e poderíamos começar a fazer as contas pelos milicianos e pelos brigadistas da Guerra Civil de Espanha – foram acima de tudo, e independentemente dos cartões partidários (ou da ausência deles), antifascistas. Em Portugal foram muitos, muitos milhares. Contra quê?
Acabava de ler o recém-publicado livro documental e autobiográfico de Joana Lopes sobre a experiência dos «católicos progressistas» durante os últimos quinze anos do Estado Novo (Entre as brumas da memória. Os católicos portugueses e a ditadura, da Ambar). O livro – falarei dele mais adiante – transpira optimismo, por vezes algum humor, tanto mais modelares quanto se sabe dos «tempos difíceis» aos quais se refere. No entanto, fecha com uma espécie de balanço, através do qual a autora nos dá a entender o quanto a falência de um conjunto de propostas que mobilizaram tantas pessoas, de tão diversas gerações, criara em milhares de consciências um sentimento de desilusão, de desesperança e, de certa maneira, de desistência.
Posso, por isso, dizer que me fez bem encontrar no DN as palavras do Padre Anselmo Borges, declarando ser a teologia a «teologia das religiões empenhadas na libertação» e que «o horizonte do diálogo inter-religioso é a libertação-salvação enquanto experiência radical de sentido frente ao sem sentido dos explorados, dos humilhados, das vítimas e da morte.» Relembrou-me Anselmo Borges que, afinal, permanecem entre alguns sectores católicos os horizontes da esperança e da identificação com as causas que aspiram a um mundo melhor e mais solidário. E que, se deles já não faz parte a maioria das pessoas que Joana Lemos recorda no seu livro, outras existem que mantêm algo dessa utopia humanizada que, contaminada pelo espírito da época, instigou tanto entusiasmo durante os anos 60 e 70. Permito-me acreditar que, muitas delas, terão tomado, quase com horror, conhecimento do recente texto de Bento XVI (Sacramentum Caritatis), no qual este renova a desafectação da Igreja em relação ao problema do celibato dos padres (uma velha luta dos sectores «progressistas»), acentua a exclusão dos divorciados da comunidade eclesial, sugere uma complexificação da liturgia e propõe o regresso em força do latim, ou ainda, pasme-se, do canto gregoriano.
Qualquer blogue pode ser um lugar de encontro. Recanto de café no qual um grupo de amigos, mais alguns convidados, mais uns quantos desconhecidos, se sentam (ou dele se retiram) sem pedir autorização. Juntos trocam ideias, contam algumas piadas, zangam-se um pouco, partilham as novidades, combinam almoços, idas a um concerto, ao futebol, a uma manifestação. Não jogam partidas de sueca, uma vez que o verdadeiro blogger não pode «perder tempo», pois vive em estado de permanente frenesim. Bebem, fumam, escutam, proclamam, sob/sobre os códigos de uma sociabilidade que simula uma outra.
[De um conjunto de doze posts usados durante uma conversa sobre blogues que teve lugar na livraria Almedina-Estádio, Coimbra.]
Contaram-me hoje um episódio triste e lindo, que desconhecia. Pedro Oom morreu em 26 de Abril de 1974, com a emoção de ver libertar os presos políticos da cadeia de Caxias.
Uma boa notícia o ressurgimento d’A Phala (1# 2007) que promete ser para manter. Formato novo, mais facilmente manipulável, num número que é em larga medida dedicado a Cesariny (incluindo fragmentos irrepetíveis de uma «autografia» e um original de Herberto Hélder). Mais um mesa-redonda e um conjunto de depoimentos notáveis sobre o tema jamais esgotável – e para sempre insolúvel – da tradução. E ainda dois textos, um de São Jerónimo e o outro de Benjamin, pronunciados a propósito do tema.
O Portal Zone informa-me. ÚLTIMA HORA: Irmã de Oliveira libertada. Calculei logo os horrores pelos quais havia passado uma idosa irmã do realizador, ou a matrona nortenha de bigode, accionista minoritária da Olivedesportos. Afinal tratava-se da mana de um avançado brasileiro do Milan. Não o conhecia, mas admito que a sua existência seja vital para um grande número dos clientes da Optimus.
É Março e um homem dormita, exausto, sentado ao volante de um Fiat 127. Pela janela do carro, um leitor de cassettes soletra para quem passa um velho fado da Maria da Fé.
Chamei alguém de caterpillar. Acontece que o alvejado, para além de ser de vez em quando uma pessoa um pouco agreste, é também um erudito. E explicou-me com toda a calma que aquilo que eu lhe queria chamar não resultava bem, como até aquele momento eu pensara, da sinédoque que em inglês aproxima a lagarta do tractor. Entre os aborígenes australianos – ou, pelo menos entre os que ainda confiam nos seus mitos mais ancestrais – caterpillars, disse, são aqueles que voluntariamente voam até aos céus para descobrirem o que existe para além da morte, regressando depois à Terra sob a forma de borboletas.
No princípio o blogger é um solitário. Escreve num registo antigo, vizinho dos velhos diários íntimos, mas destinado a ficar aberto sobre a mesa, a ser visto, a deixar-se devassar. Esta característica assegura a preservação daquele que permanece o tom dominante num grande número de blogues. Uma escrita confessional, pautada sempre pelos códigos do grupo, mais ou menos disseminado, mais ou menos irregular, visível ou invisível, ao qual o seu autor acredita dirigir-se. O blogger é, sob esta perspectiva, um eremita. Habita um ermo, mas com vista para a cidade e visto pela cidade.
[Este é o primeiro de uma dúzia de «postas» que utilizei, de forma aleatória, durante uma conversa pública sobre blogues que teve lugar na livraria Almedina-Estádio, Coimbra. Surgem aqui com algumas (pequenas e pontuais) alterações.]
Por razões que não sei explicar, um post que se encontrava mais abaixo, levianamente intitulado «That’s entertainment!», evaporou-se e levou sumiço. Com ele foram-se também os comentários de alguns leitores. Mistérios de um backup com o qual a WordPress me ameaçara horas antes. Por via das dúvidas, relembro que apontava ali para um texto de José Medeiros Ferreira sobre os motivos pelos quais este não assinou a declaração pública de alguns historiadores a propósito do concurso Grandes Portugueses. Ah, e declarava também a minha concordância com JMF.