Manhãs de nevoeiro

Sebastiao

Em 1581, Filipe II (I de Portugal, como se ensinava em tempos na Primária), fez transladar para o Mosteiro dos Jerónimos um corpo que alegava ser o de D. Sebastião. O objectivo parece ter sido o de acabar com os rumores a propósito da sobrevivência do rei em Alcácer-Quibir e do seu eventual regresso na tentativa de resgatar o trono e a independência do reino. A incerteza, porém, manteve-se, alimentado esse «mito sebástico» que desde o início se fundou na crença do retorno messiânico de um salvífico «desejado». Em 1879, na História de Portugal, Oliveira Martins explicava-o assim: «A alma lusitana, ingénua na sua candidez – tombado agora por terra o edifício imperial (…) – rebentava em soluços, buscando no seio da natureza, onde se acolhia, uma salvação que não podia esperar mais das ideias, dos sistemas, dos heróis, nem dos reis em quem tinha confiado por dois séculos. A obra temerária dos homens caía por terra; e o povo, abandonado e perdido, abraçava-se à natureza, fazendo do lendário D. Sebastião um génio, um espírito, e da sua história um mito». Alguém, portanto, que transportava um anseio colectivo e vivia para aquém do seu desaparecimento físico.

Bastará uma consulta apressada de parte da imensa bibliografia que sobre o assunto se produziu ao longo dos últimos cento e vinte anos para se perceber que o sebastianismo não cresceu da dúvida sobre a identificação do corpo, mas de algo muito mais profundo que já as profecias do Bandarra (anteriores, aliás, à vida de Sebastião) enunciavam como a crença num herói providencial capaz de interpretar o colectivo destino dos portugueses. Sabe-se como o próprio Salazar não escapou a esta aproximação (tal como Sidónio Pais, Sá Carneiro, e até Cavaco, na sua versão hardcore dos anos 80). Parece, porém, que dois investigadores, um português e um espanhol, defendem agora a abertura do túmulo do rei e a realização de análises às ossadas ali depositadas, para «acabar de vez com o mito sebastiânico» (sic). Talvez valha a pena lembrar, a quem possa dar uma importância exagerada a este tipo de iniciativa, que o que importa aqui não é o corpo – muito provavelmente sem qualquer gene dos Áustrias, pois só o contrário seria surpreendente – mas sim a manhã de nevoeiro.

    História

    O homem da mala

    Se comparadas com os testemunhos individuais, sempre mediados por aquilo que são hoje as pessoas que os revelam, perturbam bastante – talvez mais até a quem por dentro as viveu – as imagens do Portugal do tempo do outro senhor que António Barreto e Joana Pontes nos têm oferecido. Assim aconteceu, durante o episódio da noite passada, com as hesitações daquele homem, de gasto fato completo e chapéu de pano, a velha mala reforçada com um cordel, que tremia ao ver-se na obrigação de atravessar a rua movimentada da cidade grande. Que começava a travessia mas parava, voltando atrás, limpando o suor com um lenço, olhando desesperado como que a pedir auxílio. Naquele início da década de 1960, vindo de longe, provavelmente de uma aldeia ignorada dos mapas do asfalto, o homem tinha medo de Lisboa: dos automóveis que não abrandavam para o deixarem passar, das pessoas que não o saudavam, da incerteza de poder comer a hora certa e de encontrar a morada do conterrâneo que trazia escrita num pequeno rectângulo de papel que não sabia ler.

      Apontamentos

      Os 300 contra Ahmadinejad

      Leonidas, rei de Esparta

      Sempre preferi os reflexivos e polidos cidadãos atenienses aos seus vizinhos espartanos, descritos como eternamente guerreiros e brutais, e não será agora que vou mudar de opinião. Mas também não será por isso que, como o faz um crítico do Expresso, aceito que qualifique de «protofascista» o filme 300, de Zack Snyder – construído, a partir da BD de Frank Miller e Lynn Varley, e (naturalmente) do relato de Heródoto – sobre o combate desigual travado no desfiladeiro das Termópilas pelo rei Leónidas, acompanhado dos seus três centos de corajosos combatentes espartanos, contra as tropas numericamente muito superiores de Xerxes. Deve dizer-se que o filme idealiza bastante o lugar de Esparta no seu combate «pela liberdade» contra os ímpetos despóticos do rei dos persas. Que incorpora personagens mágicos, violentos ou grotescos que parecem caricaturas do bestiário de J. R. R. Tolkien. Que os medo-persas são de forma caricatural apresentados como chacais um tanto estúpidos, ora medonhos, ora efeminados, e sempre amorais. Mas, para além disso, trata-se de uma obra inteiramente concebida como um jogo de computador – até a coreografia dos duelos e das batalhas acompanha muito de perto a sua mecânica feita de impulsos – que me parece apenas mais uma daquelas experiências de cinema romanesco, «de aventuras», a tender, como milhares de outras, para o extremar da separação política entre heróis e vilões. A não ser que se queira dar alguma razão à impugnação do filme pelos círculos próximos do presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad, que o fizeram proibir no seu país por considerá-lo parte da guerra psicológica lançada pelos EUA contra o regime que suportam. Quer-me parecer que é isto mesmo que este tipo de crítica nos pretende oferecer como observação essencial a ter em conta perante 300: com os «persas» não se deve brincar nesta altura dos acontecimentos mundiais.

        Cinema

        Pela cruz de Cristo

        Como é sabido, encontra-se na matriz do catolicismo popular a ignorância das subtilezas teológicas e a ausência de qualquer reflexão sobre os momentos e os símbolos fundadores da religião de Cristo, mas não deixa de se revelar espantosa a forma como diversas testemunhas, ouvidas em Benavente após o assassinato a tiro da funcionária de uma gasolineira local, justificaram o facto de não terem atribuído grande importância aos fortes estampidos que claramente ouviram. Todas elas declararam que, sendo Sexta-Feira Santa, consideraram «natural» o lançamento de alguns foguetes «para comemorar».

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          Blogues: (6) Praça pública

          Speaker's Corner

          Espaços de todas as dimensões procuram leitores, abrindo-se aos comentários, conversando entre si. Os debates decorrem livremente, condicionados apenas pelo grau de informação e de cultura dos autores, pelo estilo de cada um, pela sua capacidade para ouvir e para seduzir por intermédio da escrita e da imagem. Apesar da ausência de um suporte físico estável e localizado, a expressão de opiniões afirma-se de um modo plural e, muitas das vezes, com um grande número de pormenores dada a (quase) inexistência de limites formais aquilo de que se fala e à forma como se fala. Muitas das mais substantivas polémicas públicas têm passado por aqui. Ou confluem naquilo que por aqui acontece.

          [De um conjunto de doze posts usados durante uma conversa sobre blogues que teve lugar na livraria Almedina-Estádio, Coimbra]

            Cibercultura, Etc.

            Meio-morto

            Hip Hop is Dead

            Por vezes dramaticamente perdida entre as referências que lhe chegam do passado, uma parte da esquerda procura agarrar-se ao que lhe parece serem expressões contemporâneas da rebelião anticapitalista. Uma das estratégias, em curso desde há meia dúzia de anos, consiste em recuperar o hip-hop como expressão cultural de uma contestação de dimensão mundial protagonizada por jovens das periferias – os das grandes cidades, mas também os que habitam as áreas excluídas do planeta – ou por aqueles que com eles se identificam. E todavia, o próprio movimento, emergente a partir da década de 1970, foi gradualmente perdendo a sua força reivindicativa, tendo-se separado do mundo dos gangs e da delinquência de rua no qual nascera e onde ia buscar toda a sua primitiva força. Actualmente, como género musical, é apenas um vestígio revivalista, convenientemente domado e aproveitado para actividades de marketing pela indústria discográfica e pelo comércio das roupas e do calçado, quando não mesmo pelos partidos institucionais e alguns movimentos conservadores (como aquele que, entre nós, tem apoiado o «não» no referendo sobre o aborto). Representa um logro desenhá-lo agora como expressão globalizada de uma justa «revolta do oprimido», ou mesmo como emblema de geração. Sê-lo-á quase tanto quanto o velho rock’n’roll.

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              O concurso e a responsabilidade dos historiadores

              De acordo com os dados divulgados pela RTP, o total de votos «válidos recebidos» no concurso Grandes Portugueses foi de apenas 159.245. Destes, 41% foram para Salazar e 19,1% para Álvaro Cunhal, o segundo classificado. Porém, se contarmos os votos militantes – que poderiam ser exercidos, via SMS, pelo menos em triplicado ou quadruplicado –, os votantes efectivos não deverão ter excedido os cerca de 60.000. Desta forma, apenas umas 24.000 pessoas, no máximo, terão votado no antigo ditador. Como qualquer cidadão, independentemente da idade ou até da nacionalidade, poderia participar no escrutínio, o efectivo valor deste número será ainda mais residual. Aliás, o mesmo pode ser constatado de forma empírica: acredito que pouquíssimos conhecerão pessoalmente um verdadeiro salazarista. Assim, para quê tanto alarido com as repercussões do pobre espectáculo televisivo?

              Convirá recordar que o impacto político do programa foi ampliado, em primeiro lugar, pela própria RTP1, sempre interessada em tornar concorrencial o seu produto, e também por muitos jornalistas e analistas, em busca de tema para os seus artigos e crónicas, ou empenhados numa reflexão sobre o que não deixou de ser um fenómeno curioso da cultura de massas. Mas o concurso foi também exageradamente dramatizado por alguns historiadores, que se viram confrontados com algumas das hesitações e perplexidades que têm atravessado a sua área de interesses. Anoto, de uma forma obrigatoriamente sumária, três problemas com as quais o conhecimento histórico se tem debatido e que me parece terem convergido neste particular contexto.

              O primeiro deles prende-se com o abandono da narrativa literária, que durante séculos foi o suporte essencial da História. Iniciado pelos meados do século XVIII, este abandono seguiu a crença numa objectividade absoluta, numa «aproximação científica» ao passado, que foi acompanhada pela afirmação de um discurso cada vez mais «neutro» e descolorido. Este afastamento da narrativa acabou por cavar uma crescente clivagem entre a comunidade de historiadores profissionais e as sociedades envolventes. Neste contexto, a maioria dos cidadãos viu-se progressivamente excluída dos processos de compreensão da História, acentuando-se assim as possibilidades de apagamento ou de perversão do passado. A partir dos trabalhos de Hayden White, surgidos pelos meados da década de 1970, esta dimensão voltou a ser valorizada, mas ainda é olhada com alguma desconfiança por uma parte daqueles que do conhecimento do passado fazem a sua profissão.

              O segundo problema situa-se no domínio das formas de recuperação da memória no processo de construção da História. Particularmente em relação à história de períodos mais recentes, cujos actores em grande parte se encontram ainda felizmente vivos, torna-se imprescindível a utilização da microbiografia e do testemunho oral enquanto instrumento complementar de conhecimento, uma vez que este introduz informação e um «sopro de vida» que pode ajudar a tornar a história mais completa, mais rica e, de certa forma, dotada de uma superior capacidade dramática, a qual é imprescindível no processo de comunicação. De outra forma, as novas gerações terão grande dificuldade em perceber a dimensão dinâmica do tempo que imediatamente as precedeu, tornando-se presa fácil de todo o tipo de interpretações.

              O terceiro problema articula-se com a forma como a História e o historiador vivem, ou devem viver, a experiência da cidadania. Este não pode manter a veleidade de adoptar um discurso impoluto e «apolítico». Deve, naturalmente, pautar a sua actividade pelo rigor e por um esforço de imparcialidade, comparando diferentes informações e pontos de vista, mas não pode ter receio de questionar o passado a partir dos problemas que a experiência da cidadania coloca. Não levantar questões que podem ter uma incidência política conduz ao desaparecimento da capacidade crítica e à passividade perante as formas de reescrita e de branqueamento do vivido. A leitura «benévola» do salazarismo não pode ser desligada de uma abordagem que, de tão politicamente «distanciada», se tornou insípida.

              Estes aspectos, tornados particularmente urgentes nas condições desta nossa época de uma comunicabilidade instantânea (a «modernidade líquida» de Zygmunt Bauman), dizem particularmente respeito à comunidade dos historiadores, uma vez que são eles quem – ao lado de Mnemósina, a memória, na sua infinita luta contra Lethos, o rio do esquecimento – tem em primeiro lugar o dever de impedir que o passado seja apagado ou reescrito. Muito para além do concurso televisivo, existe quem o procure fazer, e nunca será demais a maior vigilância. Quanto a este último, daqui por três ou quatro de meses já ninguém dele se lembrará. A não ser, talvez, alguns estudantes universitários, aos quais um professor possa sugerir o episódio como tema de exercício académico.

                Atualidade, História

                O vício esplêndido

                Vicio esplêndido

                Escrito em Outubro de 2003 para a extinta revista Periférica

                Senti alguma simpatia por Vaclav Havel no dia em que o vi, numa fotografia a preto e branco tirada na Praga nocturna dos dias da Carta 77, durante um concerto dos Plastic People of the Universe. Nada ali fazia supor que Havel seria um dia o último presidente da Checoslováquia e o primeiro da República Checa. Naquela imagem não se notavam ainda os retoques cosméticos do homem de Estado: a camisa desapertada mostrava a pele muito clara, na mão direita segurava uma enorme caneca de cerveja, o suor escorria pela cara, um cigarro acesso mantinha-se entre os lábios, enquanto o escritor conversava com alguns companheiros de ocasião. O fumo de tabaco saturava o ambiente, sublinhando o carácter pouco convencional do momento, humanizando os rostos, afastando-os das máscaras gélidas da velha guarda no poder, que a essa mesma hora dormitava em casas repletas de retratos medalhados, tirados nos desfiles do 1º de Maio.

                Relembro essa imagem em plena fúria legislativa antitabagista, que começou a ser barbaramente imposta quando os maços de cigarros, as cigarrilhas e os charutos passaram a ostentar aquele selo horrível, acusador, proclamando a negro que «Fumar Mata». Trata-se de um óbvio caso de exagero e de abuso de confiança, mas é também a expressão de um falso moralismo escrutinador dos costumes, imposto pelas autoridades que, ao mesmo tempo, permitem o fabrico e comercialização de automóveis que atingem velocidades absurdas, ou, para não ir mais longe, fecham os olhos diante das enormes responsabilidades poluentes dos escapes e das indústrias químicas. [continua aqui]

                  Opinião

                  Existencialismo

                  Sinatra

                  Seguindo a informação fornecida pelo teólogo anglicano Keith Ward em God: A Guide For The Perplexed, a canção mais pedida nos cerimoniais dos crematórios britânicos é My Way. «Vivi à minha maneira», bradava ali o sábio existencialista (igualmente católico e mafioso) Francis Albert Sinatra. Não «à Sua», de Deus, como outrora se acreditava ser a única forma de viver. Mas «à deles», solitários e infiéis defuntos.

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                    Heróis do silêncio

                    Os heróis silenciosos são figuras particularmente admiráveis. Aqueles, aquelas, que longe das tribunas aprenderam a observar, a calar, a murmurar. Para agirem sem hesitação quando chegado o momento certo. E depois regressarem ao silêncio, provavelmente para sempre.

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                      Sinopse de fantasia

                      Sherlock

                      A educação das novas gerações não se faz apenas por intermédio da aquisição teórica de conhecimentos – nomes, episódios, proclamações – inscritos numa tradição de objectividade. Parte importante da construção das identidades pessoais e colectivas é também criada pela incorporação de arquétipos e valores obtidos através da integração da fantasia como legado, provenha ela dos mitos clássicos, dos textos sagrados ou da tradição literária. Esta foi definindo um corpo móvel de criaturas que deve ser protegido.

                      Parte desta preservação inclui muitos dos modelos individuais incorporados na infância e na adolescência por diversas gerações e que vivem actualmente um conjunto de rápidas e notáveis mudanças. Fernando Savater já em 1976 havia publicado A Infância Recuperada, um belo livro no qual procurou recuperar, através de um exercício de pesquisa autobiográfica, muitos autores então desprezados como «distracções juvenis» (Stevenson, Verne, Salgari, Conan Doyle, entre outros), por ele sublinhados como instrumentos fundadores de uma leitura prospectiva do mundo. Em 2004 voltou ao tema publicando Criaturas do Ar, agora editado em Portugal pela Ambar.

                      O livro inventaria um conjunto de personagens, que manual algum comporta, e que, tanto quanto muitas das figuras humanas dotadas de comprovada existência histórica, tendem a ausentar-se do nosso imaginário. Sob a forma de 31 monólogos, que coloca na boca dos heróis e dos vilãos que faz desfilar perante o leitor (incluindo no último a ficção dele próprio), o filósofo e escritor espanhol produz um roteiro por onde passam as (ainda?) ilustres figuras de Sherlock Holmes, Tarzan, Desdémona, Dulcineia, Drácula, Mr. Hyde, Pimpinela Escarlate, Sindbad, Peter Pan, Sam Spade, do Homem Invisível ou da Bela Adormecida. Na voz de cada uma delas, produz-se então uma narrativa que incorpora os seus principais traços e os aspectos decisivos das suas inventadas biografias, permitindo ao leitor reconhecer, ou encontrar, a essência de alguns dos mitos de origem literária que a cultura ocidental foi produzindo e cuja tradição se tem vindo a perder. No final, um apêndice («Quem é quem») descodifica o processo de construção de cada uma dessas personagens, ao mesmo tempo que indicia pistas de leitura para um entendimento mais completo da sua «vida e obra». O método não é novo, mas assume aqui um formato particularmente pedagógico: quem o desejar pode iniciar, quase aleatoriamente, um sem número de viagens, ou então regressar aquelas que deixou incompletas, algures em local escuso do seu passado pessoal.

                        Novidades

                        Blogues: (5) Espalhem a notícia

                        Jornal que voa

                        As novidades correm depressa. Circulam informações que os jornais ou as estações de televisão omitem ou ignoram. Esclarece-se aquilo que permanece obscuro. Divulgam-se acontecimentos, frases, projectos, descobertas. Ao mesmo tempo, os meios convencionais recorrem às notícias veiculadas pelos blogues, ao seu estilo, às suas preocupações, o que não deixa de ser um sintoma. O hipertexto, como ferramenta de bricolage, perfura então o espaço hiper, colocando a notícia numa linha infinita. Pela mesma via, porém, também o erro circula, dissimulado, sob a forma de fraude ou de boato. Mas tal como nasce, assim se dissolve, mediado pelas vozes que o questionam e depuram.

                        [De um conjunto de doze posts usados durante uma conversa sobre blogues que teve lugar na livraria Almedina-Estádio, Coimbra]

                          Cibercultura, Etc.

                          A útil paisagem

                          Snob, habituei-me desde cedo a desgostar de paisagens compostas e demasiado bonitinhas. Panoramas suíços de folheto turístico, tresandando, como os jardins barrocos, a uma natureza antinaturalista. Propaganda new age, wallpapers cintilantes, landscapes supostamente relaxantes nas paredes de restaurantes chineses ou salas-de-espera de dentistas dos subúrbios. Sempre algures entre a pieguice ultra-romântica e o kitsch pequeno-burguês. Até conhecer hoje, através do Público, aquilo que, se o pudesse fazer, a um cego apeteceria fotografar: «uma paisagem com o mar ao fundo, com o pôr-do-sol a reflectir na água».

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                            Chovendo no molhado

                            Aceito que não deva atribuir-se, às iniciativas do Partido Nacionalista Renovador, uma importância maior do que aquela que os seus militantes, nos seus melhores sonhos (se é que não têm apenas pesadelos), alguma vez puderam ter. Não se deve atiçar sobre os seus militantes uma matilha de cães raivosos ou mandar a polícia de choque de bastões levantados e gritos de intimidação, coisa que, obviamente, apenas ajudaria aquela gentinha a sair por instantes do gueto dentro do qual vai vegetando. Mas, tal como acontece com qualquer quadrilha de criminosos, a polícia e os tribunais devem agir sobre quem viola a lei. Neste caso, aquela que se encontra inscrita na democrática e tolerante Constituição da República Portuguesa. Tão só e nada mais.

                              Opinião

                              Um soco

                              Portugal, um retrato social, de António Barreto, com a realização de Joana Pontes, é um programa sobre as mudanças ocorridas na sociedade portuguesa ao longo dos últimos 40 anos, do qual a RTP1 transmitiu hoje o primeiro de sete episódios. Um soco no estômago dos esquecidos e dos ignorantes – os verdadeiros salazaristas, esses são duas dúzias e meia e já não contam muito – que se não recordam ou não sabem do que falam. Uma série que o mesmo «serviço público de televisão» poderia e deveria ter começado a passar, pelo menos, um par de semanas antes da lamentável petite finale dos Grandes Portugueses.

                                Opinião

                                Música de intervenção

                                Ry Cooder

                                Laura Veirs

                                Parte significativa da música popular dos EUA oferece-nos aproximações a universos incompatíveis com os valores individualistas e conservadores que parecem omnipresentes no quotidiano do cidadão americano comum. Raramente panfletárias, elas indiciam uma diversidade que parece sempre conter indícios de mudança. Dois álbuns magníficos, acabados de sair, permitem-nos observar, ouvindo, esse lado minoritário, habitualmente desconsiderado, ou suavizado, pelos grandes media. My Name is Buddy, de Ry Cooder, conta uma viagem de ida e volta, no tempo e no espaço, até às origens da contemporaneidade americana, aqui situadas nos anos da Grande Depressão: «the days of labor, big bosses, farm failures, strikes, company cops, sundown towns, hobos, and trains». Já Laura Viers, fala-nos, em Saltbreakers, das suas preocupações com o agravamento dos problemas ambientais e perante a cegueira política com a qual todos os dias vai deparando no seu «país inconsciente». Um par de caixas-de-óculos recomendáveis e música da boa.

                                  Música, Novidades