Blogues: (11) Tarzan e a selva

Selva de Pedra

A blogosfera pode também ser um território selvagem, não isento de logros e de perigos. Uma floresta que apenas ecoa a complexidade da vida que a antecede e permanecerá depois dela se eclipsar para sempre. Em breve, porém, os blogues desaparecerão e serão substituídos por um qualquer outro utensílio que já se encontra algures a ser preparado. Que passará necessariamente pela simplificação e pela massificação de novíssimas e surpreendentes tecnologias. Mas nesta selva ou naquela que vier – como acontecia com Tarzan no seu mundo problemático – serão ainda os humanos, e não bestas, andróides ou forças obscuras, a controlarem os acontecimentos.

[De um conjunto de doze posts usados durante uma conversa sobre blogues que teve lugar na livraria Almedina-Estádio, Coimbra]

    Cibercultura, Etc.

    Entre Marrocos e a Finlândia

    A discussão sobre o «fenómeno de Fátima» permanecerá para sempre inacabada. Parece que tudo já foi dito a propósito das circunstâncias nas quais emergiu, do significado teológico da sua mensagem, do comércio organizado à sua volta, da fé ou da superstição de quem ali ocorre em peregrinações salvíficas ou a pagamento de promessas. O padre Mário de Oliveira tem abordado o assunto com seriedade mas também alguns tiques de prosélito do contra. Fina d’Armada ou Moisés Espírito Santo, no passado, foram muito mais longe na especulação e no delírio «científico». E nesta altura parece difícil falar do assunto sem repetir argumentos e banalidades. Deixo, por isso, apenas dois apontamentos.

    Um de indignação, em relação à forma como a maioria das televisões e dos jornais têm tratado o «prodígio», referindo-se aos acontecimentos de 1917 como «aparições» que abordam como a um indiscutível facto histórico. A RTP1, em horário nobre e com o nosso dinheiro, passa mesmo The Miracle of Our Lady of Fatima (1952), de John Brahm, «baseado em factos reais» e que confunde os camponeses portugueses com balcânicos campesinos e os nossos galhardos republicanos com perigosos comunistas, arqui-inimigos bigodudos e ajuramentados da Santa Fé e das inocentes criancinhas.

    Um segundo apontamento sobre as pessoas que vi nas reportagens e que fui encontrando por estes dias ao ritmo da condução. Homens de boina xadrez, mulheres de lenço, muitos jovens também, às centenas, aos milhares, a comerem farnéis de broa e chouriço à beira das estradas nacionais (sim, que as auto-estradas, velozes e assépticas, não são para eles). Sentados à sombra de velhas camionetas, de destoante e assertoado colete reflector, parecem saídos do país dual, a preto e branco e marcado ainda por um catolicismo velho e tridentino, de há quarenta anos atrás. E nós que nos imaginávamos já a mais do que metade do caminho entre Marrocos e a Finlândia!

      Apontamentos, Olhares

      Da memória dos anos do fim

      Cracovia

      Os períodos de declínio oferecem-nos sempre um rastro de obsolescência. As sombras de quando já nada era como foi, ou se esperou que fosse, e nada é ainda aquilo em que talvez algum dia possa tornar-se. Fica-nos uma sombra de tristeza e de inércia, de teimosia inútil que alguns dos seus sobreviventes continuam a tomar como um resto de grandeza. Vestígios daquela vida-que-o-não-era de Kathrin Sass, a mãe de Alex que recuperava do coma em Good Bye Lenin!, o filme de Wolfgang Becker. Ao mesmo tempo, um sentimento de perda, como quando se reencontra, coberto de pó e das marcas do nosso próprio desleixo, o brinquedo da infância que afinal não havíamos esquecido.

      Assim podem percorrer-se, em Windows through the Curtain, as fotografias de David Hlynsky. Ruas sóbrias mas desoladas, a estética pobre das montras das lojas e dos armazéns do povo, as enfadonhas entradas dos nichos da burocracia ou de restaurantes que jamais recomendaríamos a um amigo em viagem, pessoas anónimas e que nos parecem errar por cidades como Moscovo, Sófia, Praga, Budapeste ou Cracóvia. Emergindo, longe dos desfiles nas praças centrais, de uma outra era, daqueles anos de fronteira que preencheram a leste a longa década de 1980. A do fim da utopia que já o não era.

        Apontamentos, História

        Bon vieux B.

        Boris Vian

        «Dizer idiotices, por estes dias em que toda a gente reflecte profundamente, é a única forma de provar que temos um pensamento livre e independente.» Para lembrar que anda pelas livrarias Boris Vian por Boris Vian, uma compilação de aforismos – este de 1951 –, alguns deles conhecidos, outros dispersos por manuscritos avulsos, daquela pessoa que se fazia passar por um tal de Vernon Sullivan. Seleccionados por Noel Arnaud, traduzidos por Sarah Adamopoulos e editados pela senhora dona Fenda, convém que se diga. A conservar sobre a mesa de trabalho, numa prateleira acessível da despensa ou no porta-luvas do carro.

          Devaneios, Recortes

          A grande traição

          Turca

          Fora das iniciativas que não possam fracturar o «domínio imperial», um sector significativo dessa velha esquerda que se presume remoçada esquece ou despreza muitas das causas que, afinal, poderiam integrar o lado mais nobre e essencial da sua própria tradição. Aquela que não sucumbiu aos crimes sem remissão do estalinismo e dos seus substitutos mortos-vivos. O combate pela liberdade de expressão e de pensamento, pela justiça social como valor indiscutível, pela efectiva aproximação entre povos e nações, a luta pela emancipação face à opressão e ao obscurantismo, tornam-se assim «bons» ou «maus» apenas na medida em que se revelem úteis no cerco à América ou possam servir para enfraquecer aqueles que a combatem. Tudo o mais é irrelevante e pode ser manipulado, como acontece quando se procura transformar seres agressivos e autoritários como Mahmoud Ahmadinejad ou Hugo Chávez em paladinos mundiais da justiça entre as nações.

          Um último exemplo desta atitude hipócrita é-nos oferecido pelo silêncio diante do actual avanço dos islamitas na Turquia, na sua tentativa para destruírem os fundamentos do estado laico que Kemal Ataturk fundou em 1923 e instalarem um poder teocrático, inevitavelmente repressivo e, claro, «anti-imperial». As enormes manifestações de cidadãos comuns com uma aparência educada e moderna, de mulheres que se batem para preservarem direitos que não querem perder debaixo do véu islâmico, o medo e a revolta que se instalam entre eles, aqui mesmo às portas da Europa, não parece colher grande simpatia, nem ímpetos solidários, nem palavras emocionadas, desse lado de uma esquerda esclerosada que, cada vez mais, tende a deixar para a nova direita os combates por essa «coisa relativa» que é liberdade individual e o direito à diferença. A alma intolerante e autoritária de muitos dos órfãos de Lenine, o legado da sua matricial obsessão com a dimensão estritamente táctica da iniciativa política, sobrepõem-se à capacidade de indignação diante da iniquidade e às velhas bandeiras da liberdade e do laicismo, pelas quais tantos dos seus, num passado agora longínquo, um dia se bateram. Acontece que «isso agora não interessa nada.»

            Opinião

            Ainda Talin

            Aquilo que posso responder ao texto de João Tunes, a propósito das conjecturas sobre os acontecimentos de Talin que deixei um pouco mais abaixo, é que concordo inteiramente com ele sem negar aquilo que afirmei. Mas admito que possa não ter sido suficientemente claro. Ou que tenha parecido demasiado ligeiro.

            Concordo com o facto de, se isolarmos o que se passou em Talin e aquilo que aconteceu em Santa Comba, depararemos com dois casos historicamente bastante distintos. Seria absurdo negá-lo. Por outro lado, também me parece irrecusável, no que se refere à essência dos dois momentos referidos, o facto de não existir, nem poder existir, «um corte entre a reprodução desejada e a recriação celebrada». Em um e outro dos casos, o passado não foi meramente inventado ou manipulado por quem desceu à rua. Ele existiu, deixou um rastro na memória, e, ademais, vive ainda na condição actual de parte significativa das gerações que dele receberam determinados legados.

            Aquilo que pretendi dizer foi que, para grande parte dos que não viveram aquele tempo, ele é em larga medida idealizado e, de alguma forma, reproduzido de acordo com fórmulas simplistas, as quais não integram toda a informação e reagem a estímulos dos media, sobrevalorizando aquilo que parece momentaneamente «útil» em termos políticos. No caso estoniano, os descendentes dos russos são convidados a subvalorizar o horror estalinista, ao qual muitos dos seus antepassados de modo algum permaneceram imunes, em detrimento de um revanchismo nacionalista que a imagem da resistência antinazi ajuda a definir e a legitimar no plano simbólico. No caso português, aqueles que nem os filmes a preto e branco sobre o Estado Novo viram, descem à rua, na sua rejeição da democracia, utilizando o rosto do ditador basicamente para concitar vontades e expectativas que são de agora.

            Sobram os mais velhos, que possuem leituras mais complexas e transportam vivências de um passado que não podem esquecer. Mas não são estes quem, ressalvando certos casos que roçam a patologia e o mais profundo ressabiamento, vem para a praça gritar «vivas ao António». Em Talin, pelas imagens que me chegaram, também não são os octogenários que combateram Hitler a vir para a rua atirar pedras às novas autoridades democráticas, embora muitos dos antigos combatentes se possam também sentir indignados pela remoção simbólica de uma parte das suas vidas.

            Não me parece que aquilo que defendo tenda a desvalorizar o impacto presente da memória do estalinismo ou do fascismo. Apenas tem em consideração a forma como as imagens do passado são decifradas na actualidade. As lunetas através das quais uma grande parte das pessoas que têm hoje menos de 30 ou 35 anos o observam. E, nestas «coisas da rua», agora são elas que contam.

              Apontamentos, História

              Blogues: (10) Mangas de escape

              Escape

              Uma placa giratória erguida como ponto de partida para um algures visível e invisível. Podemos escrever sobre livros e filmes, discos ou concertos. Revisitar debates ou exposições. Falar de caminhadas ao ar livre, de idas à praia, de encontros casuais, de jantares de fim-de-semana. Conhecer causas, manifestos, preocupações privadas ou que atravessam ruas e praças. Ouvir e contar segredos. Em todos esses momentos, vínculos que se criam e definem uma segunda «vida real», situada algures do lado de lá do painel de comandos utilizado pelo blogger. A cliques de distância, nos monitores que permanecem iluminados dia e noite, mais vozes, outros ouvidos, caminhos a percorrer aos quais não seria possível chegar por um outro processo. Linhas de descoberta, certas vezes de aventura. Lugares etéreos de crença e descrença. Mangas de escape.

              [De um conjunto de doze posts usados durante uma conversa sobre blogues que teve lugar na livraria Almedina-Estádio, Coimbra]

                Cibercultura, Etc.

                E agora Talin

                Tallinn

                Muitos dos participantes dos movimentos colectivos que vêm para a rua em nome do passado estão menos empenhados em compreendê-lo do que em manipulá-lo. Ainda que de tal possam não ter perfeita consciência. Parece-me razoavelmente claro que algumas das tomadas de posição mais radicais à volta da retirada do monumento ao soldado do Exército Vermelho em Talin, na Estónia (ou da construção do museu do Estado Novo no Vimieiro, a dois quilómetros de Santa Comba Dão), nada têm a ver, para a maioria dos que se manifestam, com um conhecimento efectivo do que significou a ocupação soviética (ou, no segundo dos casos, o salazarismo), ou sequer com uma memória vivida da sua experiência. Se exceptuarmos uns quantos sobreviventes, já quase sem voz activa, para a maioria dos manifestantes o passado (aquele passado) interessará, acima de tudo, para alimentar a sua imaginação e as causas do presente que resolveram tomar como suas. Ou então porque se encontra em condições de agregar diversas formas de descontentamento. Não para expressar, como por vezes tem sido insinuado, um desejo objectivo de meter o presente em marcha-à-ré na máquina do tempo.

                Adenda: ler a continuação deste texto mais acima ou aqui.

                  Apontamentos, História

                  Vª Exª Mr. John Bull

                  Ze Povinho

                  O que mais me impressiona no caso da miúda inglesa que desapareceu no Algarve – para além, naturalmente, da situação em si – é a subserviência com a qual, fazendo notícia sobre a notícia, os canais de televisão portugueses se preocupam tanto com aquilo que se diz nas pantalhas ou nos jornais do Reino Unido (com o «insuspeito» The Sun citado à cabeça), falando, até à exaustão, dos reflexos do episódio nas ruas de Londres ou de Birmingham. Trata-se de mais um caso de servilismo bacoco, associando a excitação de «sermos falados» lá fora ao receio de sermos confundidos com um povo de raptores e de tarados sexuais. Não há paciência que resista!

                    Apontamentos, Atualidade

                    Poesia sobre o asfalto

                    «Limita a tua velocidade, não a tua música.» Frases como esta, mostrada num outdoor publicitário da Mega FM que me surpreendeu hoje enquanto conduzia, deveriam merecer um prémio de beneficência pública oferecido pelo Ministério da Qualidade de Vida. Se este ainda existisse, naturalmente.

                      Etc.

                      Rankings

                      Fátima arrasa S. Bento da Porta Aberta, Sameiro e Almortão. De acordo com uma jornalista da SIC, numa peça do telejornal cujo tema era exclusivamente esse, o complexo da Cova da Iria encontra-se «em primeiro lugar no ranking dos santuários portugueses» no que respeita à afluência de peregrinos. Em contrapartida, no mês passado Maria Sharapova perdeu o lugar no ranking do ténis feminino para Justine Henin (embora eu talvez prefira Elena Dementieva, que se encontra em décimo mas possui um belíssimo nome).

                        Devaneios

                        Auxiliar de memória

                        Por teu livre pensamento

                        Editado pela Assírio & Alvim, Por Teu Livre Pensamento é um livro que evoca os rostos e as memórias de prisão de 25 ex-presos políticos portugueses e que acompanha a exposição patente no Centro Português de Fotografia, no Porto, até ao próximo dia 24 de Junho. As fotografias a preto e branco, imagens recentes sobrepostas aquelas que a PIDE originalmente tirou, são de João Pina. Os textos, da autoria de Rui Daniel Galiza, são essencialmente curtos relatos dos trajectos prisionais dos fotografados, construídos a partir de conversas que se pressente terem sido mais longas e densas.

                        Todos os fotobiografados são resistentes, oriundos de diversos quadrantes, embora maioritariamente do PCP, como seria de esperar e é justo que assim seja. Homens e mulheres de rostos endurecidos por anos de luta e de trabalho político, marcados pela prisão, pela tortura, por vidas em fuga que lhes foram gravando algumas das rugas que se lhes podem agora notar. Todos, sem excepção, a merecerem a admiração dos que chegaram depois e deles herdaram o sacrifício da liberdade. Os trajectos mais extraordinários são, porém, o de Emídio Guerreiro (que jamais foi comunista e cuja vida, para utilizar um lugar-comum, dava de facto um filme) e o de Edmundo Pedro (que declara ter sido afastado do partido contra sua vontade). Ambos contêm uma dimensão de imprevisibilidade, por vezes de capacidade para integrar a aventura, que nos permite adivinhar vidas particularmente únicas e complexas. Edmundo Pedro começou, aliás, a publicar entretanto a sua própria autobiografia, a qual prolonga as Memórias do seu pai, Gabriel Pedro, deixadas num documento único que o PCP, contra o desejo expresso do autor, terá sonegado ao conhecimento público.

                        No conjunto, o volume funciona como um precioso auxiliar da memória, destacando o rosto e a experiência daquelas pessoas, apenas 25 entre muitos milhares possíveis, de modo a que elas jamais possam ser olhadas como um simples sample do imaginário contemporâneo.

                        Originalmente em Passado/Presente

                          Etc., História, Novidades

                          Sermos solidários

                          1º de Maio

                          Na generalidade dos países industrializados, fora de algumas organizações sindicais e dos militantes e simpatizantes dos partidos e movimentos tardo-marxistas, já poucos descem à rua no 1º de Maio para gritarem palavras de ordem. Longe das áreas nas quais as contradições sociais ainda inspiram, compreensivelmente, a consagração simbólica da luta de classes, por aqui trata-se apenas, para a imensa maioria, de mais um feriado. Dia de passeio que outrora foi pelo campo e hoje segue a passo pelos grandes centros comerciais, tempo para dormir uma sesta sem ninguém que incomode, às vezes para namorar um pouco, para acertar umas almoçaradas, para um jogo de futebol entre amigos. Quando se liga a televisão, podem ver-se os horríveis cortejos militares de Pequim ou de Pyongyang, a sombra de Fidel na Praça havanesa da Revolução, os velhos moscovitas saudosos do império que cantam a Internacional ao lado de uns quantos adolescentes de comportamento duvidoso. Um pouco mais de intensidade, talvez, em Beirute, Caracas ou Manila.

                          Por aqui, desfiles de rua com os mesmo sindicalistas (ou os seus clones) que há mais de 30 anos, inamovíveis nos seus lugares protegidos, gritam as mesmas palavras de ordem («U-ni-da-de-Sin-di-cal!», «Go-ver-no-Pará-rua!») que já ninguém sabe muito bem que coisa significam ou para que servem. Poucos são os trabalhadores sem enquadramento e quase não vejo jovens desempregados, imigrantes, contratados a prazo, tarefeiros, diplomados sem expectativa de emprego, ecologistas, gays, lésbicas, prostitutas, deficientes, mulheres em defesa dos seus direitos, membros de ONGs: largas centenas de milhar de pessoas, em breve muitas mais, situadas completamente fora do aparelho produtivo, e que o velho sindicalismo não sabe (ou não quer? ou não pode?) mobilizar. Não pagam quotas, não militam, não votam, não desfraldam bandeiras vermelhas, mas esperam por algo mais do que a compreensão da sociedade em que vivem. Ninguém lhe poderá dizer que «depois da revolução» os seus amanhãs cantarão. Mas também não está no seu horizonte que um dia, quando estivermos todos longe «da cauda da Europa» e a viver riquíssimos num país «de excelência», as oportunidades lhes sejam concedidas.

                            Apontamentos, Opinião