O texto que escrevi ontem sobre o desaparecimento de João Martins Pereira não era uma evocação nem pretendia servir de obituário. Correspondeu apenas a uma reacção a quente perante a notícia da morte de uma pessoa que não conheci pessoalmente mas me habituei a acompanhar. Na minha biblioteca, em lugar acessível, os seus livros estão encostados aos de António José Saraiva e de Eduardo Lourenço, e julgo que tal poderá dizer alguma coisa a alguém. Ou di-lo a mim, pelo menos. Não falei portanto de algumas das suas intervenções e das ausências me falaram mails que recebi entre ontem e hoje. Não lembrei, por exemplo, a sua proximidade dos processos de fundação do MES e, muitos anos mais tarde, do Bloco de Esquerda. Ou a sua actividade como professor, engenheiro e cronista.
Mas uma ausência me parece de facto injusta. Num testemunho conciso e comovente saído hoje no Público, Eduarda Dionísio anota o esquecimento de um jornal absolutamente único, publicado a partir de 1975, do qual João Martins Pereira foi director, colaborador e acima de tudo grande entusiasta. Tratava-se da Gazeta da Semana, anos depois reduzida por dificuldades várias a Gazeta do Mês, e do qual até tinha a colecção completa, desaparecida algures junto com um caixote que levou descaminho numa qualquer mudança. Sobraram-me apenas alguns exemplares dispersos, e é de um deles que me sirvo para ajudar a preencher a falha.
Junho de 1980, artigo «Resistir ou Re-existir» na Gazeta do Mês número 2: «A condição feminina é-me exterior, como o é, num outro plano, a condição operária, a mim, intelectual de extracção burguesa. Libertar-me do complexo de “não ser operário” não é distanciar-me do problema da exploração. É justamente escolher colocar-me, em relação a ele, na única posição que, de boa-fé, me é possível assumir: a da apreensão intelectual, a da “teoria”, a de uma prática solidária, que não a de uma prática vivida (impossível) ou a de uma prática imitada (falsa). Levantemos de uma vez certas ambiguidades persistentes: não posso fazer minha a luta pela emancipação feminina, como não posso fazer minha a luta proletária. Estou com elas. E ao estar com elas, isso determina-me nas lutas que me pertence, a mim, travar.» Parágrafos destes, num tempo dominado agora pelos exageros do politicamente correcto e pelo receio da exposição pública, não existem muitos.
Morreu ontem João Martins Pereira. Na Primavera de 1971 comprei um livro seu, Pensar Portugal hoje – publicado pela Dom Quixote em plena «abertura marcelista» -, no qual, entre outros temas urgentes, se abordava já, pela primeira vez de forma explícita e de um ponto de vista reflexivo, o carácter subversivo da mudança de costumes que Portugal se encontrava então aceleradamente a viver. Essa mesma que ainda hoje permanece algo subavaliada por alguns historiadores, em detrimento da ênfase dada a uma mudança política efectiva mas mais lenta e epidérmica. Recorro a um sublinhado meu datado daquele ano:
«A passagem da rigidez quase total à flexibilidade quase total (…), eis mais uma aprendizagem em que se inicia a classe dominante entre nós. Foi já duro o caminho que a levou dos tempos (não tão recuados) em que nas nossas praias não se podia ver um tronco masculino ao léu (…) até àqueles mais próximos em que os pacatos burgueses saborearam sem pestanejar a fustigação das costas de Romy no filme A Piscina. Aliás (…) no campo dos “costumes” terá tido uma influência decisiva a intensificação dos movimentos de pessoas nos dois sentidos: o turismo estrangeiro em Portugal e as deslocações cada vez mais frequentes de portugueses ao estrangeiro (bolsas, turismo universitário, turismo tout court, a própria emigração). Os portadores da “moral tradicional” viram-se totalmente ultrapassados, e terão talvez ficado surpreendidos que não tenham sido plateias uivantes e babando-se de lascívia as que assistiram aos primeiros nus nos nossos ecrãs. Nada disso: o melhor da nossa burguesia (e não só a intelectual) já estava muito mais «avançada» do que supunham – mesmo a que saía do Blow Up para se encafuar na missa das 7 mais próxima.»
João Martins Pereira viria anos depois a ser secretário de Estado da Indústria do 4º Governo provisório, acompanhando o ministro João Cravinho e colaborando na complexa gestão das nacionalizações. Viria a demitir-se em divergência com a política do governo e a incapacidade deste para responder a uma crise económica cujos resultados, nessa altura de grandes esperanças mas de vacas bem magras, a maioria dos portugueses sentia na pele.
Publicou também O socialismo, a transição e o caso português (ensaio sobre o capitalismo em Portugal), Indústria, ideologia e quotidiano, Para a História da indústria em Portugal, ou, em co-autoria, À esquerda do possível. Um tanto esquecido, por razões que não será demasiado difícil compreender, um outro título que constitui uma das mais corajosas, mas também mais solitárias, reflexões políticas a contracorrente produzidas nesses anos de chumbo que iriam desembocar no espectro messiânico do primeiro cavaquismo. Refiro-me a No reino dos falsos avestruzes(um olhar sobre a política), editado em 1983, um livro onde se procuram desmontar alguns mitos que estavam na época em pleno processo de fabrico: o da sacrossanta «iniciativa privada», o do diabólico «gonçalvismo», o da salvífica CEE ou o do «desejado» Ramalho Eanes. E onde se procurava também repensar o papel da esquerda no meio de tal selva pós-revolucionária. Volto a destacar um sublinhado já gasto pelo tempo mas que ainda poderá iluminar certas consciências desamparadas:
«A banalização do adjectivo “utópico” num sentido pejorativo não deveria impressionar nem complexar a Esquerda; foi a Direita que, ao pretender-se realista e pragmática, lhe lançou essa armadilha. (…) A Esquerda será sempre um “campo de tensão”, a tensão do inventor antes da invenção, do descobridor antes da descoberta, do poeta antes do poema – enfim, do criador antes da criação. É esse “antes” que necessariamente gera a tensão: a Esquerda sabe que nunca chegará à sociedade perfeita, um pouco como Zenão no paradoxo da tartaruga.»
Poucas pessoas terão produzido tantos, tão originais e tão anti-dogmáticos contributos para uma reflexão da esquerda portuguesa sobre o mundo e sobre si própria. A partir de Sartre, ponto de partida de tantos dos da sua geração, João Martins Pereira laborou, como lembra Francisco Louçã no combate.info, num «marxismo heterodoxo, culto, informado de toda a dissidência e da radicalidade revolucionária do pensamento socialista». Terá até, mais recentemente, ido bem para além deste. Foi ainda, como é de calcular, uma pessoa de causas, ainda que mal aclimatado a militâncias redutoras da liberdade do indivíduo e da capacidade para pensar sempre o impossível desejável. Quem o conheceu diz que era também um homem decente.
Um radical e um utopista, sem dúvida. Ouçamo-lo ainda no Reino: «Todos nós sonhámos com a bela noite em que partiríamos com a trupe do circo ambulante. On the road… Miúdos, vivíamos na pele dos pequenos acrobatas nos seus maillots luzidios. Adolescentes, imaginávamos a louca aventura com a bela trapezista (…). O circo deu-nos a primeira ideia de liberdade sem limites e por isso mesmo os ajuizados regressos a a casa em cada noite de circo terão sido das nossas primeiras sensações de derrota (…). O circo colocou-nos o primeiro desafio à ordem estabelecida». Defendendo, a partir daqui, uma dimensão criadora da marginalidade que não é recusa ou exclusão, mas atracção pelo lado lúdico da existência e de crítica ao sistema que a todo o instante procura cerceá-lo, concluirá que «os marginais são apenas uma minoria dos oprimidos – e só em conjunto todos se libertarão».
Viver pensando e aceitando esta magnífica possibilidade parece ser uma bela forma de ser-se solidário com os outros e de viver a própria vida. Uma lição de João.
É abusiva a atitude dos partidos, dos sindicatos e de outras entidades colectivas quando declaram falar em nome «da classe operária», «dos trabalhadores», «dos portugueses», «das mulheres», «dos jovens» ou «dos magarefes». A diferença de interesses e de atitudes, tão imprescindível quanto inevitável nas sociedades democráticas e complexas, condiciona a dificuldade de falar em nome de um todo que é necessariamente múltiplo e contraditório. Mas aqueles que exprimiram publicamente os objectivos comuns da grande manifestação dos professores que decorreu este sábado têm alguma legitimidade para o fazerem, uma vez que a dimensão do movimento tornou inequívoca a convergência da esmagadora maioria numa oposição bem clara às linhas centrais da política educativa do governo. Por isso a posição arrogante e autista da direcção do PS se torna ainda mais chocante e incompreensível. Por isso se pode dizer que os professores, quase todos os professores do ensino básico e secundário – os do superior, e contra mim falo também, permanecem incompreensivelmente passivos –, estão em luta e querem que alguma coisa mude. Ou pelo menos que a sua experiência e os seus pontos de vista não sejam ignorados.
Cada época, cada desígnio colectivo, espera sempre pelos seus heróis, que dão um rosto a identidades, a ideias, a projectos. Ou então procura no passado heróis cuja representação os legitime. Eles são os pioneiros, os combatentes, os guias, devotados a causas que parecem transcender a sua própria humanidade. São seres extraordinários, sim, mas são também necessariamente humanos, e por isso deuses e monstros não podem ser heróis. Têm apenas algumas coisas a mais que os seus semelhantes: mais coragem, maior resistência, uma tenacidade fora do comum, talvez um sangue-frio acima da média. Mesmo quando essas qualidades não são consensualmente reconhecidas. Afinal, mesmo o anti-herói é apenas um herói deslocado no tempo, fora do lugar adequado, que age a contracorrente. Têm também qualquer coisa de sábios e de santos. E apesar de se afirmarem por vezes com alguma exuberância, são essencialmente solitários, uma vez que a sua missão singular exige um lugar à parte. Herói algum leva uma vida análoga à do comum dos mortais, misturando-se com eles, pois é o isolamento que enfatiza a sua dimensão exemplar.
Bem sei que Demóstenes já se queixava de algo de parecido a propósito dos «homens honrados» – apesar de ter acabado por se deixar corromper por um ministro de Alexandre –, mas na época em que vivemos é raro encontrar heróis vivos. Existe até uma tendência, em parte estimulada pelo enorme poder dos média, para a banalização do heroísmo, transformando-se seres por vezes medíocres, ou com uma vida banal, em modelos a copiar. Por isso, e também porque está na nossa matriz a tendência para esperar alguém que fale por nós mas melhor que nós, que melhore o mundo como jamais o conseguiríamos fazer, que pareça infalível como nós nunca seremos, se torna tão fácil vislumbrar no primeiro vulto heróico que apareça o sinal de uma nova redenção. É aquilo que parece ocorrer com o ser aparentemente perfeito que responde pelo nome de Barack Obama. O problema é que é suposto, no combate que trava por um supremo bem, o herói jamais defraudar expectativas, e isso o próximo presidente dos Estados Unidos da América não conseguirá deixar de fazer. A primeira prova de fogo para a preservação do seu estatuto heróico acontecerá, pois, quando desfeito o sortilégio ele se tornar demasiado humano e revelar as imperfeições. O que acontecerá em breve.
Perturbados com um acontecimento cujo sentido e complexidade escapam aos seus esquemas mentais elementares, os fiéis seguidores da esquerda mais imobilista e ortodoxa andam já a fazer o que podem para desconsiderarem, junto de quem ainda os escuta, o movimento de esperança construído em redor da vitória eleitoral de Barack Obama. Sem vislumbrarem nele ponta de valor ou de interesse. Sem perceberem os combates de décadas que o precederam e aquilo que dentro dos seus limites ele poderá trazer de novo. Olhando-o apenas como poeira mediática atirada para os olhos «da classe operária e do povo». Para tais mentes, bloqueadas perante as inesperadas reviravoltas da história, o Grande Satã precisa continuar a ser o Grande Satã. Seja como for, dê lá por onde der. Sem qualquer remissão possível. E quanto pior ele se mostrar, melhor será para «a luta» que travam cada vez mais sozinhos. De outra forma, sem capacidade para proporem um modelo de sociedade alternativo ao do capitalismo que não seja o já testado nas experiências defuntas ou moribundas do «socialismo real», contra que inimigo continuariam a avançar, em passo cadenciado, transportando os velhos símbolos da sua antiga fé?
Um responsável militar qualquer – já esqueci o nome do senhor, admito – afirmou ontem publicamente, a propósito das reivindicações salariais castrenses, que «os militares não são uns quaisquer funcionários públicos». Eu estava convencido que eram, devo confessar. Não sabia que tínhamos regressado ao tempo das guerras privadas. Ou desses mercenários de quem dizia Maquiavel não terem «outro amor nem outra razão que as mantenha em campo a não ser um pouco de soldo». Será que estas pessoas empoleiradas nos seus little tanks não perceberam que estão atrás dos bombeiros, da polícia, da protecção civil e dos nadadores-salvadores em termos de relevância social? E que deveriam tratar da vidinha dando o menos nas vistas possível, em vez de se porem em bicos de pés exigindo um tratamento especial e a preservação de privilégios?
Ainda sobre aquilo a que chama «o episódio Kundera», F. Guerra contesta, em O Vermelho e o Negro, as posições de alguns bloggers. Uma delas a minha. No essencial, parece começar por defender uma bússola moral absoluta, relativa a traços do carácter individual, que seria inerente à condição do escritor, ou do artista, e deveria orientá-lo em todas as situações. O essencial do seu argumento centra-se, porém, na tentativa de aproximar aquilo que, sinceramente, não me parece aproximável se não forçarmos um pouco a nota. Para o efeito confronta o caso Kundera com o vivido por Elia Kazan, procurando mostrar como o pulha de um delator o é sob quaisquer circunstâncias, e como nos Estados Unidos da pior fase da Guerra Fria não ocorreram, «em nome da América», canalhices menores e menos justificáveis que sob os ambientes de denúncia «ao serviço da classe operária e de todo o povo» presentes no universo do socialismo real.
Não posso deixar de ver com algumas reservas esta comparação. Claro que o ambiente da «caça às bruxas» em Hollywood foi terrível, opressivo, levando inúmeras pessoas a delatar o nome de colegas, conduzindo outras à ruína ou ao suicídio. Provavelmente fizeram-no pensando que tal lhes favoreceria (ou pelo menos não lhes prejudicaria) a carreira, o que por vezes aconteceu. É sobre isto The Front (O Testa de Ferro), o filme-documento de Woody Allen estreado em 1976. Mas também deram a cara, na mesma altura, figuras com a maior visibilidade pública como Humphrey Bogart, Lauren Bacall, Danny Kaye ou John Huston, que foram capazes de empenhar o seu nome e a sua segurança para limparem a América da paranóia mccarthista, dando um exemplo de coragem e rectidão. Além de que não falamos, neste caso, de um sistema repressivo construído como tal, mas sim de uma situação de coerção psíquica e económica, que já então se mostrava, aos olhos de muitas pessoas honestas, como uma arbitrariedade.
No caso checo, como em outros casos do «socialismo real», ou mesmo dos diferentes fascismos, falamos da crença generalizada num destino histórico, concebido como salvífico e imortal, apresentado como capaz de revelar definitivamente aquilo que separa o bem do mal. E este destino conheceu, na época de afirmação dos sistemas de coacção totalitária, uma fase de simpatia que mobilizou muitíssimas pessoas. A Kundera também? Talvez. Dizem que sim, parece que sim. Provavelmente mais uma folha para a história universal de ignomínia.
A atitude indigna e pusilânime dos deputados do Partido Socialista que hoje votaram na Assembleia da República contra a sua consciência – somados àqueles, parceiros de bancada, que habitualmente apenas se limitam a votar no que as direcções do grupo e do partido desejam que seja votado, e que têm a consciência apontada noutras direcções – acabará por voltar-se contra o partido e contra eles próprios. Contra o partido, porque ela pacifica a parte homofóbica e mais despolitizada do eleitorado ao rejeitar a lei sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo mas implica uma perda de respeito da parte de alguns dos sectores mais democráticos, empenhados e modernos da sociedade que governa. Contra eles próprios, porque assim, com atitudes deste jaez, vão perdendo de vez a já limitada estima que ainda poderiam colher junto dos cidadãos que prezam, nas pessoas públicas, o rasgo, a coragem e a rectidão de princípios. Quem os avisa…
Num post aparecido no novo O País Relativo, o Tiago Barbosa Ribeiro considera que é «o tempo da ofensiva ideológica» dos socialistas europeus em prol de um modelo social de gestão do capitalismo. Obrigatório, uma vez que o anticapitalismo «é um anacronismo sem regresso» e a direita liberal «inviabiliza o alargamento da regulação económica no seio de uma economia de mercado». Propõe assim, como ponto de partida para um rejuvenescimento da capacidade de afirmação do «socialismo democrático», como que um regresso ortodoxo a Eduard Bernstein (1850-1932). Isto como ponto de partida para se perceber de uma vez por todas em que capitalismo «devem os agentes desenvolver a sua actividade económica e qual a sua relação de forças com o Estado numa sociedade liberal». Partindo de premissas sobre a irreversibilidade do capitalismo como sistema dominante e etapa definitiva da História que foram fixadas pelo teórico social-democrata alemão há mais de cem anos atrás. Com toda a sinceridade, esperava um pouco mais de imaginação e de capacidade de antecipação – até de um ponto de vista semântico – a propósito dos futuros possíveis que nos devem preocupar. Principalmente quando se sugere a necessidade, real sem dúvida, de pensar com ousadia o socialismo de hoje. O socialismo, repito.
[Antelóquio] Não, não vou escrever este post com prazer. Tudo isto me parecem pedaços de paisagem depois do incêndio. As últimas brasas, fumo no ar, o restolho que cheira ainda a queimada. O crepitar de uma distopia que se esforça por resistir. Marcos quilométricos de um caminho arriscado, à beira da ravina.
As pessoas e as organizações que se preocupam com a construção de um Portugal democrático e melhor – isto é, mais livre, mais transparente, mais justo e mais moderno -, devem agir com a maior prudência em relação à actividade do PCP, não se limitando a afastarem-se da sua esfera de acção ou a encolherem os ombros. Os fundamentos desta minha cautela, que não é de agora, dependem essencialmente de sete factores (para seguir a estrutura argumentativa linear tão do agrado dos militantes do partido, em regra adversos aos raciocínios elípticos): 1) da forma de actuação do partido, que tem perfilhado uma «política de trincheira» traduzida na tentativa de conquista de pequenas áreas de poder e da sua manutenção a todo o custo, sobrepondo inúmeras vezes os interesses partidários aos das pessoas; 2) do modelo de Estado e de sociedade que defende, assente na defesa da ditadura «da classe revolucionária» sobre o conjunto da sociedade, o qual em pouco ou nada difere daquele, historicamente funesto, que foi o do «socialismo real»; 3) da defesa como princípio orgânico da vida interna do próprio partido do chamado «centralismo democrático», que não é senão uma forma de legitimação da vontade de uma minoria dirigente que julga deter a «verdade científica»; 4) da sua cultura de dissolução do indivíduo no colectivo, contrária à promoção de um equilíbrio harmónico entre os dois factores; 5) da ausência de um modelo de sociedade que identifique claramente aquilo que propõe, para além dos combates pontuais, como horizonte de acção; 6) da manutenção de uma prática de «partido de vanguarda» sistematicamente apostado em dirigir os movimentos nos quais se envolve; e 7) da continuada justificação, como modelares, de experiências internacionais que se converteram em sociedades fortemente repressivas, bloqueadas e até atentatórias desses mesmos direitos que, na sua linha de combate dentro de portas, os comunistas declaram defender.
A conjugação destes factores tem servido de fonte de conflito e de desconfiança com forças que poderiam confluir em batalhas comuns. E tem servido para manter o PCP num lugar de crescente ambiguidade em relação à sua efectiva integração no jogo democrático.
A situação agravou-se nos últimos tempos e a instalação, na direcção do partido, de sectores obreiristas, representados desde logo pela figura do actual secretário-geral, com o seu discurso simplista e meramente proto-sindical, é um sinal importante da sua presença. Em paralelo, o retorno a uma mentalidade de seita, que parecia há alguns anos ter começado a perder-se, vê-se traduzido sobretudo nas palavras e nos actos de alguns sindicalistas e de muitos membros da JCP, atestando a presença de sectores maximalistas que, há décadas atrás, seriam facilmente qualificados como «oportunistas de esquerda». O conjunto poderá até, num curto prazo, obter alguns pequenos êxitos eleitorais, advindos do crescente descontentamento popular face ao governo do PS, mas jamais será capaz de congregar um projecto de poder realmente alternativo àquele protagonizado pelos dois partidos rotativistas gestores do regime.
Esta tendência superou agora a fronteira do inimaginável com a divulgação do «Projecto de Teses do XVIII Congresso», aprovado por unanimidade por 180 membros do Comité Central. Cinjo-me apenas, para já, a aspectos que vieram referidos nos jornais, como a desculpabilização do processo de degenerescência do aparelho de Estado e do modelo de sociedade vigentes na ex-URSS, cuja «destruição» se vê, nestas «teses», apenas como resultado da «traição» de alguns dirigentes, sem ser feito sequer um esforço de compreensão e de questionamento da herança estalinista, dos erros cometidos pelo sistema e dos dogmas e incapacidades que estiveram na origem de muitos dos desastres. Fala pois, o documento comunista, de uma panóplia de valores e de ideias-feitas, perfeitamente datados, que ali surgem isolados de toda a reflexão teórica produzida nos últimos cinquenta anos, de um «abandono de posições de classe e de uma estreita ligação com os trabalhadores», da «claudicação diante das pressões e chantagens do imperialismo», da «penetração em profundidade da ideologia social-democrata», da «rejeição do heróico património histórico dos comunistas», da «traição de altos responsáveis do Partido e do Estado», que «desorientaram e desarmaram os comunistas e as massas para a defesa do socialismo, possibilitando o rápido desenvolvimento e triunfo da contra-revolução com a reconstituição do capitalismo». Simples e sem mais, como requer uma compreensão pouco treinada no debate aberto e nas subtilezas da análise complexa de situações complexas. Com menor fôlego crítico que as conclusões do XX Congresso do PCUS, ocorrido no longínquo mês de Fevereiro do ano de 1956.
Depois, no topo do bolo, uma indicação, como expectativa, do que até hoje de manhã, ingenuamente, eu julgava inconcebível como posição colectiva dos comunistas portugueses, e imaginava confinada a sectores partidários activos mas não suficientemente representativos. Uma indicação, tenho a certeza disso, que exclui até uma espécie de consenso social construído, mesmo entre muitas das pessoas que têm votado no PCP, a propósito da matéria. Reproduzo sem comentários, que no caso em apreço se tornam completamente supérfluos: «Importante realidade do quadro internacional, nomeadamente pelo seu papel de resistência à ‘nova ordem’ imperialista, são os países que definem como orientação e objectivo a construção duma sociedade socialista – Cuba, China, Vietname, Laos e R.D.P. da Coreia.»
Estas pobres «teses» representam uma declaração de guerra do PCP à normal vida democrática, confirmando a sua afiliação a modelos ditatoriais e criminosos que as sociedades livres não só devem repudiar como precisam combater. Uma pergunta, apenas retórica pois não existe resposta possível para ela: o PCP qualifica o congresso que vai agora aprovar este terrífico monturo político como sendo projectado «Por Abril, pelo Socialismo, por um Partido Mais Forte»: Abril? Qual Abril?
PS – Estava a fechar este texto quando reparei num post sobre o mesmo assunto, e que aponta quase na mesma direcção, editado há poucas horas pelo Daniel Oliveira. Talvez eu me mostre só um tudo-nada menos defensivo, admito.
O PS tem um problema para resolver. Por um lado, os seus deputados vão votar contra os projectos do Bloco de Esquerda e dos Verdes sobre os casamentos entre pessoas do mesmo sexo, ao que dizem alguns por tal matéria «não constar do programa eleitoral do partido». Sem que se permita sequer a opção pelo voto de consciência, precisamente num dos temas no qual este mais sentido faria. Por outro, sabendo-se que a oposição mais conservadora se servirá sempre do assunto para, com o acordo tácito das maiorias silenciosas e homofóbicas, retirar muitos votos ao PS, os seus responsáveis jamais inserirão tal matéria no próximo programa, ou fá-lo-ão sempre de forma ambígua e semi-invisível. Como resolver então o imbróglio? Surpreendendo com uma atitude de arrojo político, um forte sentido de equidade e empenho na mobilização cívica. Precisamente aquilo que não se espera da actual maioria no poder e da generalidade dos membros do seu cordato grupo parlamentar.
A notícia chegou e partiu como todas as outras, mas deixou um rasto de repulsa que merece ser partilhado. Saber pelos jornais que existe um número impressionante de famílias portuguesas que se estão a endividar pesadamente para comprarem aos filhos manuais escolares necessários para a sua integração – repare-se bem – no ensino escolar obrigatório, e que existem mesmo livrarias que criaram linhas de crédito para esse efeito, é algo que não pode ficar em claro e merece uma atenção muito séria das pessoas comuns. Não quero saber se existem outros «países avançados» que o fazem, ou se isto funciona como uma mola para a sacrossanta «modernização do ensino». Sei apenas que é uma situação imoral e caracterizada pela insensibilidade, a qual, num país marcado ainda por áreas de pobreza endémica e pela debilidade da classe média, deixa uma vez mais cair a responsabilidade social do Estado. E deveria envergonhar, envergonhar a sério, os responsáveis por um governo com o carimbo virtual de «socialista».
Gosto de festas e nada tenho, garanto, contra a Festa do Avante! Em democracia, todos os partidos têm o direito de realizar os acontecimentos que entendam e, para mais, «a Festa» do PCP é sempre bem organizada e muito mais decente que aquele forrobodó etílico preparado no Chão da Lagoa pelos idólatras de Alberto João Jardim. Aliás, já fui a algumas, das quais conservo até excelentes recordações. A organização «da Festa» implica muitas pessoas, mobilizadas com antecedência, que dão o seu melhor em prol da celebração anual que lhes transmite a sensação de pertencerem a um colectivo que tem do seu lado os ventos da História. Poucas delas parecem reparar no facto de uma grande parte dos presentes ali estar como se está numa feira, numa romaria ou num festival de rock, nada lhes importando que seja o PCP, a Comissão Fabriqueira ou a empresa Som da Frente a organizar o evento. O importante, para os militantes, é projectar uma imagem da grandeza do Partido e da perpetuidade dos seus ideais, e isso parece-lhes assegurado. «Um grande êxito» que congregou «o melhor do esforço e da iniciativa dos camaradas», dirá sempre algum relatório.
Aparte o comício final, ao qual vão apenas os indefectíveis, o tom «da Festa» é pois… mais ou menos o de festa. O programa é agora bastante mais fraco e repetitivo que o de outros tempos, quando os fundos eram generosos e estar presente no acontecimento representava até, para muitos grupos ou artistas, uma importante mais-valia promocional. Mas o que importa é «o espírito» e esse, naqueles dias, ganha um novo fôlego. No final, de pin ao peito e boné posto, os militantes cantam o hino do partido e regressam a casa com uma consciência de missão cumprida, enquanto os outros, os «amigos» e os infiltrados, há já longas horas que estão no seu domicílio com os pés metidos numa tina de água e a trincarem amendoins à frente do televisor.
Um acontecimento respeitável, e acima de tudo normal, não fora o estendal de kitsch e de pactos com o passado no qual foi transformado o Espaço Internacional, desta feita com «especial atenção aos 90 anos da Revolução de Outubro». A informação que consta do Avante! online – e que pode ler aqui – é eloquente a esse respeito. Um bom exemplo foi uma vez mais fornecido pelo paupérrimo e triste pavilhão da Coreia do Norte (ali mais singelamente designada como «Coreia»), o qual, apesar da míngua da oferta facultada aos visitantes, não deixou de evocar in loco o companheirismo dos comunistas portugueses para com os responsáveis pela monstruosidade concentracionária na qual se tornou o seu «Estado dos trabalhadores». Afinal, não terá sido um mero deslize, próprio da idade, aquilo que na semana passada declarou à Visão a «jovem esperança» da JCP Patrícia Machado: «Uma vez que a Coreia do Norte resiste ao imperialismo americano e busca o socialismo, continuará a contar com o nosso apoio». São «detalhes irrelevantes» desta natureza que estragam tudo, incluindo o «espírito festivo». Digo-vos eu, que sou um apóstata e um descrente.
Não é argumento que integre uma qualquer teoria da conspiração. É sabido como, na lógica do «quanto pior, melhor» que presidiu quase sempre ao relacionamento entre as principais potências mundiais durante a Guerra Fria, a União Soviética se relacionou muito melhor com os republicanos americanos (Nixon ou Reagan, por exemplo) do que com os democratas (Kennedy ou Johnson). Uma posição mais maleável da parte do Ocidente teria sempre, como inevitável corolário, uma diminuição do papel de contrapeso que os soviéticos então detinham no mundo. E não havia necessidade. Mutatis mutandis, há qualquer coisa nisto que evoca a forma como o actual governo da Rússia afronta neste momento pré-eleitoral a América, beneficiando, de uma forma óbvia, aqueles que dentro desta defendem mais abertamente uma política de agressão e de intransigência. Os republicanos, pois claro.
O antiamericanismo congénito, como o anticomunismo primário, padecem de uma sintomatologia análoga: ambos se mostram expeditos a ripostar ao adversário quando o reconhecem sem margem para erro, mas têm grande dificuldade em reagir quando entre «bons» e «maus» se interpõe um discurso autónomo e complexo, que escapa aos lugares-comuns e à lógica maniqueísta que alimenta a falta de lucidez. Assim vejo – concordando no essencial com aquilo que, ontem no Público, escreveu Rui Tavares – o escorregar estonteado da parte da esquerda que diz que sim à óbvia diferença de Barak Obama e diz que não a conceder-lhe o benefício da dúvida. Com todas as reservas que deveremos manter em relação aos compromissos do candidato democrata e à lógica do sistema político americano, não duvido que estamos perante algo de substancialmente novo. Que não pode ser lido com os óculos do costume.
Os Jogos de Pequim fecharam e, antes ainda dos balanços, é hora de repousar das emoções. A cerimónia de abertura trouxe um instante de frescura a contrastar com os últimos discursos dos engravatados e hirtos «poupas altas»(*): a entrada no relvado do gigantesco Ninho de Pássaro de Boris Johnson,o mayor conservador de Londres – conservador, repare-se – que se apresentou descontraído, de fato amarrotado e casaco sem os dois primeiros botões apertados(**), para receber com um gesto nada protocolar a bandeira olímpica que a sua cidade sustentará até 2012. Entretanto, na capital britânica, uma multidão preparada mas informal contrastava com as rígidas coreografias que qualquer cidadão atento terá notado terem sido mantidas, mesmo durante as provas, nas bancadas e nas ruas preenchidas com sempre risonhos e embandeirados chineses, que muitas vezes pareciam saber exactamente em que momento iam ser focalizados pelas câmaras. As democracias não são capazes de alardear tal perfeição nas exibições de capacidade de organização e mando, e essa é uma qualidade sua que devemos preservar.
(*)Como eram conhecidos, por parte significativa da população da antiga República Democrática Alemã – e até por agentes menores da STASI -, os altos dignitários do Partido e do Estado. Existia, em diversos edifícios oficiais, um serviço de cabeleireiro destinado a conservar a «rigidez de Estado» das cabeleiras dos dirigentes, ou, se possível, a disfarçar-lhes calvícies precoces. A petite histoire por vezes é muito útil. (**)JCE ter-se-á revolvido no túmulo.
Mesmo em tempo de Internet, as revistas especializadas de grande circulação publicadas em papel dão-nos imenso jeito como fontes de informação actualizada, veículos de opinião ou pontos de partida para aceder a determinados temas. As que circulam entre nós são quase exclusivamente estrangeiras, com um claro destaque, em campos como a história, a literatura, a filosofia ou as ciências sociais, para aquelas que se publicam em França. O que apenas será estranho se não considerarmos que a maioria dos seus compradores pertence a um segmento social e etário cuja formação conservou ainda o francês como segunda língua. São pois em francês os três números temáticos de revistas que aqui destaco e podem ser encontradas em alguns quiosques e livrarias.
A Philosophie Magazine é sobre um tema – XXe siècle. Les philosophes face à l’actualité – particularmente útil numa época de desvalorização do papel interventivo do intelectual e da sua revisão como conceito operativo. Comporta largas dezenas de fragmentos de intervenções públicas de importantes filósofos, colocando-os em confronto com as suas circunstâncias. De Bergson, Berdiaev, Kraus ou Benjamin até Baudrillard, Zizek, Enzensberger e Amartya Sen, sucedem-se intervenções participativas sobre temas como a guerra, a revolução bolchevique, a ascensão dos fascismos, o Holocausto, a questão colonial, os feminismos, os acontecimentos de 1968, a conquista do espaço, a queda do Muro, o neoliberalismo, o «choque de civilizações», a globalização ou o conflito real-virtual.
Já o Magazine Littéraire publica um número especial que tem como assunto La Passion – théâtre de l’existence. Aqui o objectivo é coligir cerca de três dezenas de artigos publicados na revista, ao longo de mais de vinte anos, tendo sempre em conta uma dupla abordagem da paixão, seja esta afirmada por um ser amado, por uma causa, por uma actividade ou por uma ideia. A primeira abordagem é talvez a mais antiga, e é associada a um certo desregulamento da personalidade, a uma forma de exaltação ou de doença. A outra, mais recente, aproxima-a do desejo, da vertigem, da exaltação. Flutuando sempre entre a melancolia e a acção.
Para fechar, o bimensário Manière de Voir, editado pelo Le Monde Diplomatique, preocupa-se na edição de Agosto-Setembro com De Lénine à Poutine: Un siècle russe. Esta será, sem dúvida, a mais controversa das três publicações. Por ser a única que oferece textos centrados num tema cujas ondas de choque permanecem, tanto ao nível das representações de um passado recente como no que diz respeito aos contornos do mundo contemporâneo, plenamente activas. Estes distribuem-se por três partes organizadas cronologicamente: a primeira vai da Revolução de Outubro à resistência perante os nazis, a segunda parte da Guerra Fria e fecha com o aparecimento da perestroika, e a última ocupa-se do tempo preenchido com as presidências de Yeltsin e de Putin. É na primeira parte, centrada nos fundamentos do regime soviético e na perversão do Gulag, que se torna possível detectar os textos mais polémicos. Mas os mais perturbantes são aqueles que revelam a Rússia actual como um território que se mantém perigosamente inflamável.
Um artigo de opinião que saiu no Público, assinado por Pedro Vaz Patto, desenvolve mais uns quantos parágrafos em apoio da grande cruzada da direita católica contra a legitimação das uniões entre pessoas do mesmo sexo. Não vale a pena perder muito tempo com o essencial da argumentação, uma vez que esta apenas retoma os conhecidos clichés a propósito da impossibilidade, em tais uniões, de se consumar uma preconceituosa «função social do casamento» assente na actividade reprodutora do par. Este raciocínio primário já o ouvimos alto e em bom som pelo menos desde os idos de 1982, dando então lugar à memorável altercação de Natália Correia(*) com o deputado centrista João Morgado.
Mas aquilo que é particularmente grave neste artigo é que o seu autor avança numa direcção menos usual e que é inadmissível na boca de um jurista. Acontece «apenas» que ele deixa implícita, na forma ligeira como se refere ao assunto, a menoridade social e jurídica daquilo a que chama o «casamento de casais estéreis». Na sua cabeça claramente confinado a uns desventurados que devem ser olhados como pessoas incompletas. E deixa obviamente de parte a possibilidade da existência – sabe-se hoje cada vez mais presente na nossa vida colectiva – de uns quantos depravados que não têm filhos por lhes ser impossível educarem de forma estável uma criança ou simplesmente por opção de vida. A desumanidade destas pessoas de credo na boca é apenas brutal.
(*) Lateralmente mas a propósito: que jeito nos dariam hoje uns quantos deputados menos pusilânimes, assim da têmpera da Dona Natália!