Arquivo de Categorias: Olhares

Sobre os monumentos (5)

Bratislava

Nos países sob regimes democráticos, onde se verifica algum respeito pela diferença de opiniões e pela transitoriedade dos valores, o mobiliário monumental tem começado a atenuar a expressividade simbólica que sempre incorpora. Os edifícios construídos são mais funcionais e voltados para um diálogo com as populações envolventes, a agressividade figurativa das estátuas é reduzida, ocorre uma maior preocupação com o reconhecimento social e com o confronto com a paisagem. Isto atenua o carácter demasiado afirmativo e panfletário, acentuadamente polémico, que estas construções assumem noutras circunstâncias. Porém, a suavização da mensagem dilui ao mesmo tempo o impacto do objecto, convocando um mais rápido esquecimento.

    História, Olhares

    Sobre os monumentos (4)

    Salazar
    Salazar em Santa Comba nos idos de 70, decapitado e florido

    Se a valorização positiva de determinados sinais é transitória, é-o também a sua negação. Muitas das vezes, a destruição dos velhos símbolos é posta em causa por sectores da sociedade a quem um determinado passado suscita um efeito de sedução. Pode então acontecer que determinados grupos – menos conformados com a ordem vigente, mais identificados com algumas causas – evidenciem uma vontade de recuperação dos monumentos destruídos. São formas de pensamento nostálgico que suscitam esse tipo de retorno, e a nostalgia pode afectar tanto as pessoas que viveram um dado passado como aquelas que o não viveram mas que aceitam, muitas das vezes sem qualquer intervenção da crítica, as imagens que dele lhes são oferecidas. O combate pela afirmação identitária – política, cultural, religiosa, étnica, geracional – determina então a vontade, mediada pela intervenção do simbólico, de um «regresso ao passado».

      História, Olhares

      Ver para respirar

      Kapuscinski

      Quando, em nome de uma «objectividade» asséptica ou de uma lógica de amanuense, a escrita jornalística foge a alta velocidade do compromisso e da emoção – esquecendo, ou ignorando, legados como os de Reed ou de Orwell – apetece-me recomendar, e sem reservas, a leitura de um livro de Ryszard Kapuscinski editado há cerca de dois anos pela Campo das Letras. O volume possui um título, O Império, que o aproxima das estantes áridas da ciência política, e foi precisamente numa delas que o encontrei.

      Entre 1989 e 1991, o jornalista polaco-bielorusso fez uma série de viagens por uma União Soviética já moribunda. Recuperando a sua própria memória de textos mais antigos, e associando-lhe a observação arguta e sensível de um mundo a mover-se à sua frente em rápida espiral, Kapuscinski deambulou por territórios muito diversos, cuja efervescência a acção uniformizadora soviética apenas escondera. O resultado final foi uma obra próxima do soberbo, sobre um mundo imenso que desaba, por entre tremores de cólera e vestígios de esperança. Poucos jornalistas são capazes de captar, e de descrevê-lo com arte como Kapuscinski o faz, tantos e tão sucessivos instantes de um realismo intenso e de pura poesia. Como neste instante arménio: «Volto para o hotel. É uma tarde suave e cálida dos princípios de Outono. Multidões de pessoas passeiam. Estas ruas, esta cidade, exalam um ar benévolo. Num dos recantos, na maior escuridão, brilham umas brasas incandescentes. Junto a um forno de ferro está sentado um rapazinho. Prepara shashlik, o churrasco de carneiro. Os seus grandes olhos negros olham fixamente o fogo. O seu olhar fascinado, quase ausente, como que longe do lugar e do tempo.»

        Olhares

        Música nocturna

        Radio Head

        Na década passada fiz muitas e longas viagens de condução nocturna tendo como banda sonora a música encantatória da Íntima Fracção e a voz poética, ocasional, do seu autor, Francisco Amaral. O programa, no ar desde 1984, andou pela Antena 1 e pela TSF, recebeu diversos prémios, perdeu o sinal nacional quando passou para a Rádio Universidade de Coimbra e a ESEC Rádio online, e regressa agora a todo o país na grelha de um renovado Rádio Clube Português. Mantém um blogue próprio, através do qual é possível fazer-se o download integral dos programas em formato mp3. Com esta versão podemos, aliás, viver a experiência rara de mergulhar na noite à luz do dia. Em directo, a Íntima Fracção passa todas as semanas de domingo para segunda-feira, entre a meia-noite e as duas da madrugada. Nem se pergunta se recomendo.

        As frequências: Aveiro 94.4 – Beja 106.4 – Braga 92.9 – Coimbra 98.4 – Faro 106.1 – Leiria 96.4 – Lisboa 104.3 – Portalegre 106.7 – Portimão 107.1 – Porto 90.0 – Sabugal 94.8 – Santiago do Cacém 107.5 – Vila Real 97.4

          Música, Novidades, Olhares

          Sobre os monumentos (3)

          Lenine caido

          Tal como todas as formas de poder são transitórias também o são o sistema de valores e o conjunto de códigos estéticos que as suportam. A prevista «imortalidade» das estátuas – talvez menos a dos edifícios, sempre recuperáveis com outras funcionalidades – acabará por defrontar um futuro que a irá contestar. O seu derrube consagra então, simbolicamente, os tempos da mudança. A Alemanha e a Itália do pós-guerra, o Portugal revolucionário, a Angola e o Moçambique da descolonização, os países do Leste europeu do período pós-queda do Muro, o Iraque after-Saddam, constituem, com as suas construções descaracterizadas pelos novos regimes e as suas estátuas apeadas e atiradas para lixeiras ou para museus privados, exemplos desse processo que permanecem razoavelmente nítidos na nossa memória. Aspecto igualmente acessório destes momentos de inversão são as mudanças bruscas, por vezes espectaculares, na toponímia local ou nas designações de países, cidades e regiões.

            História, Olhares

            Cinco blogues que fazem pensar

            Thinking_B

            Seguindo a iniciativa Thinking Blogger Awards, Pedro Correia, do Corta-Fitas, elegeu A Terceira Noite entre um dos cinco blogues que o fazem pensar. Agora é a minha vez, se bem que, provavelmente, tenha de insistir em blogues que outros já apontaram. (Bom) sinal de que não fazem pensar apenas a mim. Como têm mesmo de ser apenas cinco, aqueles que neste momento mais me provocam são…

            O Água Lisa, de João Tunes – a mostrar como é possível ser-se ser militantemente de esquerda sem se ser estrábico (muitas orelhas a arderem)
            O Ana de Amsterdam, da Ana (simplesmente) – vá-se lá perceber porque me tenho amarrado a este blogue (e até refere ainda menos livros que o Ípsilon)
            O Legendas & Etcaetera, de Carlos Sousa Almeida – desconcertante e jamais conformista (apesar do fundo de página em tom brouillard)*
            O Da Literatura, de Eduardo Pitta (ocasionalmente com João Paulo Sousa) – escrito sempre com atenção, sem emendas, como se fosse para o papel
            A Natureza do Mal, de Luís Januário e André Bonirre – um pouco anárquico, desalinhado e nada distraído (com saudades da voz desaparecida da Sofia do Mal)

            * Entretanto, o L&E migrou e ganhou um aspecto renovado. Menos brouillard portanto. [3/6/2007]

              Etc., Olhares

              Sobre os monumentos (2)

              Stalin

              Dotadas de traços figurativos mais explícitos, as estátuas são monumentos que possuem uma dimensão simbólica vigorosa, podendo facilmente funcionar como «lição». Aí, é o grande vulto (o rei, o chefe militar, o político, o intelectual), ou então o operário em luta, o soldado desconhecido, a mulher heróica, a agregar um conjunto de sentidos propostos sob a forma de mensagens a reter.

              Os imperadores romanos e os monarcas absolutos utilizaram o processo, mas foi o romantismo, ao valorizar o papel histórico da nação e do indivíduo, a criar as condições para um recurso sistemático a essa estratégia. Estimulando a criação dos museus e dos memoriais urbanos, tornou igualmente possível a recuperação da dimensão exemplar de determinados momentos do passado, colocando a nostalgia ao serviço da política.

              Os regimes totalitários do século passado levaram muito longe esse esforço, utilizando o monumento na tentativa de propagar as metas e as imaginárias conquistas dos seus programas políticos, de traçar o perfil físico e comportamental do «homem novo», de reescrever de cima para baixo a própria história. As artes monumentais fascista e socialista definiram a sua centralidade pedagógica, tornando-a uma prioridade da iniciativa política.

                História, Olhares

                Devaneios eleitorais

                Santander

                Uma bela ideia a do El País: a de intimar intelectuais originários de certas cidades, no contexto da campanha para as eleições autárquicas que se encontra a decorrer em Espanha, a declararem que coisas fariam eles se por impossível hipótese fossem eleitos alcaides. Não se trata de pedir que emitam propostas «razoáveis», mas sim de permitir que assumam a dimensão programática do seu próprio devaneio. Eis três fragmentos do testemunho da escritora Josefina Aldecoa (preservados num castelhano que sempre nos soa convenientemente estranho e um pouco mágico):

                «Si yo fuera alcaldesa de Santander, cerraria sus entradas y obligaria a entrar desde el mar. La Isla de Mouro seria nuestra frontera. Los barcos llegarían llenos de gente y un edicto marcaría que navegaran de noche, cuando su belleza te impacta para siempre y te sobrecoge.

                Mi despacho (…) lo instalaría en el Marítimo, rodeada de cartógrafos y navegantes que deseñarían nuevas rutas oceánicas entre Santander y los puertos más lejanos; rutas comerciales y exóticas al estilo veneciano que llenarían de visitantes la ciudad.

                (…) Me responsabilizaría de regalar un cuadro de Eduardon Sanz a cada santanderino que viviera fuera, para que tuviera un trozo de mar y no lo olvidara nunca.»

                  Olhares, Recortes

                  Povo de zombies

                  dormir

                  Margaret Thatcher gabava-se de dormir apenas quatro horas por noite. Charles Dickens só conseguia adormecer se o seu corpo estivesse precisamente no centro do colchão, pelo que executava demoradas medições para descobrir o sítio exacto onde se deveria deitar. Marylin Monroe precisava, como é sabido, de muitos comprimidos para fechar os olhos. E, de acordo com a lenda, Ióssif Vissarionovitch Djugashvili velava no seu gabinete pelo destino dos povos, enquanto todo o Kremlin dormia. A maior concentração de insones, porém, encontra-se aqui mesmo: de acordo com estudos recentes, afirmou na televisão a neurologista Teresa Paiva, o povo que menos dorme em todo o mundo é o português. O que explicará, entre outros traços comportamentais, uma crescente tendência para a soturnidade e a depressão. Afinal, sejamos justos, o culpado não é apenas o governo.

                    Olhares

                    Sobre os monumentos (1)

                    O historiador da arte austríaco Alois Riegl considerava o monumento uma obra criada pela mão humana com a finalidade de conservar presente, na consciência das gerações atuais e futuras, a lembrança de determinada acção ou de uma existência passada que se deseja conservar como modelo. Este objectivo enfrentou sempre condicionalismos vários. Desde logo, sendo obra de arte pública, o monumento é construído necessariamente por quem detém a autoridade política ou por um grupo que, mesmo não se encontrando no centro do poder, tem capacidade para impor determinadas formas de reconhecimento do passado. Afinal são quase sempre os vencedores e os fortes os responsáveis pelos monumentos que conhecemos, pois são eles quem detém capacidade para os erguer, para os preservar e, acima de tudo, para fazer repercutir um significado que lhes é colado. Os chamados «anti-monumentos», destinados a contrariar os que possuem uma origem oficial, e por este motivo dotados de uma intenção subversiva, assumem um papel não-consensual e geralmente efémero. Porém, nem por isso menos importante.

                      História, Olhares

                      Entre Marrocos e a Finlândia

                      A discussão sobre o «fenómeno de Fátima» permanecerá para sempre inacabada. Parece que tudo já foi dito a propósito das circunstâncias nas quais emergiu, do significado teológico da sua mensagem, do comércio organizado à sua volta, da fé ou da superstição de quem ali ocorre em peregrinações salvíficas ou a pagamento de promessas. O padre Mário de Oliveira tem abordado o assunto com seriedade mas também alguns tiques de prosélito do contra. Fina d’Armada ou Moisés Espírito Santo, no passado, foram muito mais longe na especulação e no delírio «científico». E nesta altura parece difícil falar do assunto sem repetir argumentos e banalidades. Deixo, por isso, apenas dois apontamentos.

                      Um de indignação, em relação à forma como a maioria das televisões e dos jornais têm tratado o «prodígio», referindo-se aos acontecimentos de 1917 como «aparições» que abordam como a um indiscutível facto histórico. A RTP1, em horário nobre e com o nosso dinheiro, passa mesmo The Miracle of Our Lady of Fatima (1952), de John Brahm, «baseado em factos reais» e que confunde os camponeses portugueses com balcânicos campesinos e os nossos galhardos republicanos com perigosos comunistas, arqui-inimigos bigodudos e ajuramentados da Santa Fé e das inocentes criancinhas.

                      Um segundo apontamento sobre as pessoas que vi nas reportagens e que fui encontrando por estes dias ao ritmo da condução. Homens de boina xadrez, mulheres de lenço, muitos jovens também, às centenas, aos milhares, a comerem farnéis de broa e chouriço à beira das estradas nacionais (sim, que as auto-estradas, velozes e assépticas, não são para eles). Sentados à sombra de velhas camionetas, de destoante e assertoado colete reflector, parecem saídos do país dual, a preto e branco e marcado ainda por um catolicismo velho e tridentino, de há quarenta anos atrás. E nós que nos imaginávamos já a mais do que metade do caminho entre Marrocos e a Finlândia!

                        Apontamentos, Olhares

                        Órfãos do Che

                        Pós-Che

                        Não adianta olhar para o lado e passar à frente. O Che vive e, por mais morto que esteja, insiste em confrontar-nos. Não a sua alma errante, obviamente, mas a sua imagem lembrada, evocada, manuseada, maquilhada. A suprema cosmética conseguiu-a em 1997 Fidel Castro, ao decidir – como acaba de provar a reportagem «Operación Che. Historia de una mentira de Estado», publicada num número especial da revista Letras Libres por Maite Rico e Bertand de la Grange – o enorme embuste que foi a exumação do seu cadáver (sem testes de ADN) e a deposição dos supostos restos mortais, em cerimónia apoteótica, num mausoléu em Havana voltado para o planeta. Quem no-lo lembra é Mario Vargas Llosa, no artigo «Los huesos del Che», recém-saído no El País, e que sublinha de uma forma transparente, sem marcas de repulsa ou de sedução, alguns dos sentidos tomados pela manipulação contemporânea da memória de Ernesto Guevara de la Serna.

                        «El Che representa una hermosa ficción, un personaje del que la historia contemporánea está huérfana: el héroe, el justiciero solitario, el idealista, el revolucionario generoso y desprendido que realiza hazañas soberbias y es, al final, abatido, como los santos, por las fuerzas del mal. No importa que los historiadores serios muestren, en trabajos exhaustivos, que el Che Guevara real, de carne y hueso, estaba muy lejos de ser ese dechado de virtudes milicianas y éticas. Que fue valiente, sí, pero también sanguinario, capaz de fusilar a decenas de personas sin el menor escrúpulo, y que, desde el punto de vista militar, sus fracasos y errores fueron bastante más numerosos que sus éxitos. Es verdad que era consecuente con sus ideas, sobrio y austero, incapaz de las payasadas y dobleces de los politicastros profesionales. Pero, también, que la violencia y eso que Freud llamó ‘la pulsión de muerte’ lo atraían y guiaron su conducta tanto como su pasión por la aventura y la revolución.»

                        O pior que podemos fazer, nas tentativas de traçar abordagens compreensivas dos personagens que marcam a História, é desumanizá-los, transformá-los em símbolos, confundi-los com deuses ou com heróis. Pois apenas estes são perfeitos. Nas nossas cabeças, claro.

                          Olhares

                          Duas noites com Scorsese

                          De Sica Rossellini Fellini

                          A tecnologia do digital permite agora um retorno sistemático à memória do cinema. Pelas mãos de Martin Scorsese, uma pequena caixa com quatro dvd que acaba de ser editada conduz-nos assim através de duas viagens por uma época decisiva da história dos cinemas americano e italiano. Aquela que mais indiscutivelmente marcou, ainda que apenas como um eco, a formação essencial de grande parte dos realizadores contemporâneos, bem como a sensibilidade e a «recordação fílmica» de sucessivas gerações dos amantes da arte.

                          A possibilidade de uma recuperação dos filmes dos anos cinquenta é, aliás, tanto mais importante quanto a televisão quase deixou de os passar. Hoje, a generalidade dos canais interessa-se mais por filmes dotados de uma visualidade capaz de se impor de maneira imediata a um público nivelado por baixo, e isso significa, desde logo, o recurso incontornável à cor, a argumentos providos de «acção», a um erotismo contemporâneo e a todo o tipo de efeitos especiais. O entretenimento comanda a programação do cinema televisivo, deixando implícito que quem não gostar deverá procurar alternativas por sua própria conta e risco.

                          Estes filmes apontam, porém, numa outra direcção. Enquanto uma parte do público revê neles imagens e enredos que para si serão matriciais, a outra pode descobrir por seu intermédio um universo que actualmente se encontra quase compulsivamente afastado das salas de projecção. É esse o exercício para o qual nos convida Scorsese, colocado aqui na posição do rapaz italo-americano de classe média-baixa que, pela década de 1950, na sua casa familiar de Little Italy, descobria, através do pequeno monitor de cantos curvos de uma televisão a preto e branco – por vezes em cópias cortadas e de baixa qualidade, inevitavelmente dobradas em inglês – a magia e a veemência dramática do grande cinema.

                          A caixa transporta dois dvd duplos: o primeiro deles com Uma Viagem com Martin Scorsese pelo Cinema Americano (1995), que ainda não pude ver, e o outro A Minha Viagem a Itália (1999), que me ocupou em duas intensas noites. A partir do fundador Roma città aperta (1945), de Roberto Rossellini, o autor de Taxi Driver percorre ali algumas das referências do cinema italiano do pós-guerra e o seu imediato desenvolvimento, centrado nas diversas fases dessa revolução neorealista que, tanto no domínio dos processos da realização quanto no que respeita ao impacto junto da sensibilidade do espectador, redefiniria para sempre a arte do cinema. Um trajecto de revisitação sentimental, através de filmes-documento, considerados centrais nas obras do mesmo Rossellini, de Vittorio De Sica, de Luchino Visconti, de Federico Fellini ou de Michelangelo Antonioni, que nos ensinam e, ao mesmo tempo, nos deixam algo ébrios de uma beleza antiga mas muito bem conservada. Rendidos, durante 246 minutos, ao puro prazer de ver contar histórias – e de ver correr a história – tendo a câmara por confidente.

                          Adenda – Como é sabido, o bom conhecimento de uma língua não faz um bom tradutor. Em Portugal, a tradução de livros tem vindo a melhorar nos últimos anos, mas a televisão e o cinema continuam a aceitar tradutores que, por vezes, não possuem um background cultural mínimo para a tarefa que lhes foi destinada. Neste caso, o trabalho executado parece bastante razoável, mas aqui e ali tropeçamos com palavras em relação às quais teria sido conveniente o recurso a algumas leituras. Exemplo: os omnipresentes partigiani (plural de partigiano) repetidamente convertidos em partidários! Além do mais, incomoda.

                          Publicado também em Passado/Presente

                            Cinema, Olhares

                            Por La Mancha

                            La Mancha
                            Seguia num velho autocarro que, em final de tarde, atravessava a Mancha rumo a Barcelona. O machimbombo tinha uma espécie de animação cultural: um motorista entradote mas bastante jovial, que intercalava horríveis cassetes contendo extractos de zarzuelas, interpretadas pela Orquestra y Coros da Radio Nacional de España, com obtusas anedotas «de andaluzes». Em alguns casos, estas pareciam-me até ser a cópia, se não o original, das nossas obtusas anedotas «de alentejanos». De tempos a tempos, conseguia abstrair-me do ruído de fundo e olhar a paisagem que era para mim aquela que havia associado à figura do Quixote. Não a do romance, que à época ainda não havia lido sequer, mas a que obtivera com a mistura de uma versão simplificada, requisitada na carrinha Citroën da biblioteca-itinerante da Gulbenkian, com aquela retirada da projecção televisiva do velho filme de Rafael Gil, rodado em 1947 (relembro agora, recorrendo ao Google, com Sarita Montiel e um ainda jovem Fernando Rey). Reencontrei essa paisagem extensa, de planícies de um amarelo-torrado provocado pela presença dos campos de trigo e da terra argilosa, ontem mesmo, ao ver Volver, o último filme de Pedro Almodovar. O filme é belo de novo, e intenso como sempre, retomando os temas e os tipos que são recorrentes da cinematografia do realizador, embora, talvez por isso mesmo, não me tenha parecido particularmente original. Mas as viagens transmancha daquele grupo insólito de mulheres de três gerações, numa velha carripana vermelho-barro, sob um sol inconfundível e uma poeira que parecia jamais assentar, fez-me recuperar aquela travessia, há mais de trinta anos, pelo cenário real de um imaginado Quixote. Para mim, as mais emotivas sequências do filme.

                              Olhares

                              Frére Jacques

                              Prévert
                              Reencontro por um acaso a edição de Paroles que comprei às escondidas em 1972 e entro em flashback. Jacques Prévert na capa, no seu estilo único, como um dandy com boina de operário, capaz de alternar ferroada da grossa com patinhas de veludo. Como os irredutíveis da anarquia, preferia sempre ver-se «de fora», contra toda a ordem. Recusará por isso manter uma ligação com os comunistas que não fosse apenas pontual: «Aderir?.. Mas iam logo meter-me numa célula!». Tinha outro programa («J’écris pour faire plaisir à quelques uns et pour en emmerder beaucoup») e uma certa percepção da condição incerta e perigosa do intelectual («Il ne faut pas laisser les intellectuels jouer avec les allumettes»).

                                Olhares