Em Os Amores de Salazar, Felícia Cabrita procurou desenhar para o austero ditador o reverso do familiar perfil fradesco. Uma «vida de D. Juan» feita de indícios, de suposições, de artifícios de imaginação, e, claro, também de uma dose de verdade que se perde na efabulação. Apresentado como remate de uma investigação de raiz, o livro mereceu mesmo, de Diogo Freitas do Amaral, um prefácio elogioso que o fez passar por obra reservada aos «historiadores imparciais» do futuro. E transformou-se rapidamente num êxito editorial.
Apresentado como resultado de década e meia de experiência jornalística vivida no contacto directo da autora com as parcelas das antigas colónias portuguesas, Massacres em África segue uma estratégia de construção aparentemente distinta. Mas cujo resultado prático acaba por se lhe assemelhar.
O livro aproxima alguns dos momentos mais sangrentos da história recente da África que se entende em português. Desde os massacres de Batepá, São Tomé, e da chacina da UPA, em 1961, ao de Wiriyamu, Moçambique, e aqueles que se seguiram ao golpe angolano de 1978, incluindo-se ainda informações sobre a morte violenta e inglória de Jonas Savimbi. Felícia Cabrita refere-os recorrendo a algum material de arquivo e a um conjunto de entrevistas, concedidas por testemunhas directas, sobreviventes e também executantes. A estes se refere quase sempre, aliás, com alguma compreensão, associando-os a actos que circunstâncias passadas determinaram mas que, de alguma forma, o tempo entretanto decorrido libertaria da responsabilidade histórica.
A escrita é fluente mas fácil, reconstruindo sem aparentes inibições os espaços sobre os quais a jornalista não possui informações. A busca do efeito melódico, a procura do impacto imediato da frase em prejuízo da sua beleza ou do seu rigor, definem um tom que prolonga o do livro sobre o Salazar «parte-corações». E o testemunho oral, veículo essencial para a construção de uma obra desta natureza que materializa a parte mais substancial do trabalho apresentado, resulta insuficiente, pois permanece imperfeitamente identificado, localizado e datado. Confrontado com estas falhas, o leitor vê-se então forçado a confiar plenamente na versão que lhe é contada. Coisa que, como é sabido, só por si não chega para aquilatar do valor documental de um determinado texto. Muito menos de um texto como este, que se reporta a uma das áreas mais sensíveis da memória e do rastro do nosso passado colonial
Pena é que a maior parte das pessoas que os irão ler julgará este livro, tal como aconteceu com o anterior, como um livro de história. Que de facto o não é: trata-se de uma compilação de reportagens aligeiradas sobre um tema que merecia maiores cuidados, inclusive do ponto de vista jornalístico. Talvez resulte razoavelmente como guião de um documentário concebido para a televisão ou para circular em DVD, e para ver apenas uma vez. Mas não como um livro para ficar.
Um pequeno post d’AOrigem das Espécies chama a atenção para um apontamento saído no El País. Nele se refere um inquérito a 3.000 cidadãos, efectuado em Inglaterra pela cadeia de televisão UKTV Gold, o qual revelou estarem 23% deles convencidíssimos que Winston Churchill é um personagem de ficção e que nunca foi primeiro-ministro, enquanto 58% acreditam sem quaisquer problemas que Sherlock Holmes existiu de facto. 47% dos inquiridos considerou também que Ricardo Coração-de-Leão apenas existiu nos livros. Julgo que nenhuma pergunta se referia à existência – real ou imaginada – de Robin Hood e do Xerife de Nottingham. A reinvenção acelerada do passado é realmente um fenómeno deslumbrante. Como o é também a manipulação do passado na criação do presente.
Vêm aí os Russos! (The Russians Are Coming, The Russians Are Coming, realizado por Norman Jewison e estreado em 1966) foi um dos produtos fílmicos da Guerra Fria mais divulgados no mundo ocidental há cerca de quarenta anos atrás. Em registo de paródia, ele partia da presunção, então espalhada no ocidente, de um carácter insuportavelmente maléfico de qualquer cidadão soviético vivo e das acções do governo que lhes orientava os passos. Ainda que, no filme, o pavor dos habitantes do Massachusetts que inesperadamente viram chegar os marinheiros russos fosse desproporcionado em relação às suas intenções não-agressivas. Tenho a impressão de voltar a sentir alguns dos fumos desse tempo de medos quando vejo, oiço e leio algumas das notícias sobre os exercícios militares navais que, neste momento, a marinha de guerra russa realiza nas águas do Mediterrâneo e do Atlântico.
«Para mim, todos os justos, bem como todos os heróis, só em França se produziam na perfeição, como os espargos». A asserção de Eça terá sido produzida por volta de 1887, mas oitenta anos e várias gerações depois era ainda a partir das coordenadas da França, e em língua francesa, que muitos portugueses de leituras – dos que se não ajustavam ao «doce viver habitualmente» apetecido pelo eminente saloio do Vimieiro – olhavam o mundo e as suas mutações. É provável até que eu próprio pertença à última geração que aprendeu a dizer táble muito antes de saber pronunciar têible, mas cá me fui adaptando, embora de vez em quando possa deixar fugir le piedpour le chausson. Um pouco como aconteceu com o «Ministro do deserto» e esse repentino jamais que os jornais – onde proliferam licenciados em jornalismo que «não fazem a mínima» sobre quem foi Émile Zola ou Jean-Paul Sartre – verteram sem problema algum para jamé. Apesar de não ser de aceitar a condescendência das chefias de redacção com tal coup de pied no dicionário, temos de admitir que o episódio não passa de um pequeníssimo sintoma do trambolhão da língua e da cultura francesas que se tornou irreversível a partir dos anos 80. E não há Sarkozy, com elas ou sem elas, que lhe possa dar a volta. Quel dommage!
Morreu Bobby Fischer o «excêntrico, arrogante, insano, incomparável e genial» ex-campeão mundial de xadrez. Morreu hoje em Reiquiavique, na Islândia, o seu último e escolhido lugar de repouso e de exílio. Com ele desaparece também uma parte central da memória mais intensa da Guerra Fria (1 – 2 – 3 – 4). O xadrez, dizem, foi apenas um pretexto.
Não conheci Simone de Beauvoir logo através dos livros. Na viragem para a década de 1970 apenas tinha acesso a uma imprensa mais ou menos generalista que se lhe referia de uma forma quase sempre superficial – «a existencialista», «a defensora do amor livre», «a companheira de Sartre» – e que já então oscilava entre o reconhecimento do seu papel pioneiro no campo do feminismo e a revelação de um feitio difícil. Associado, talvez demasiado livremente, à relação complicada que mantinha com o filósofo. Aquele penteado antiquado com o qual aparecia em todas as fotografias, o raríssimo sorriso, o ar reservado ou colérico, reforçavam ainda uma silhueta que parecia muito distante. Bem mais distante que Paris e o quartel-general de Saint-Germain-des-Prés.
A outra Simone, anunciadora, ainda nos anos 40, de um feminismo «de segunda vaga», só a encontrei anos depois, ao procurar pôr em dia as leituras das quais falavam as pessoas da geração imediatamente anterior à minha. Mas rapidamente percebi que a frase-epítome do Segundo Sexo (1949) – «não nascemos mulheres, tornamo-nos mulheres» – tinha entretanto sido apropriada por uma esquerda que procurava conciliar a «emancipação da mulher» com a emancipação mais geral do proletariado, rumo a uma sociedade-outra na qual, então sim, fosse possível construir uma efectiva situação de «igualdade» (ou, mais exactamente, de paridade). Até lá, pois, a tarefa fundamental seria o derrube da ordem estabelecida, jogando com as «capacidades objectivas e subjectivas» existentes na sociedade a fazer tombar, as quais admitiam uma situação de efectiva diferença ao nível dos papéis sociais.
Esta interpretação, associada no caso português à persistente secundarização que o salazarismo impôs à mulher, fazendo recuar o seu lugar social a um nível de subalternidade anterior ao verificado durante a Primeira República, tornou inevitável a sua depreciação prática, tão atávica quanto assumida, na própria lógica de organização das diversas facções da oposição de matriz marxista. Isto apesar da introdução gradual, ao longo da década de 1960 e nos ambientes estudantis universitários e urbanos, de uma situação mais «permissiva». Independentemente do reconhecimento teórico da importância do seu papel – que os sectores conservadores recusavam liminarmente –, na prática as mulheres da esquerda foram quase sempre mantidas, de acordo com um modelo que só nos anos 90 começou a recuar de forma visível, num lugar de segundo plano, enquanto retaguarda da luta pela mudança na qual deveriam trabalhar os seus homens.
Tantos anos depois, essa é ainda uma marca patente no conservadorismo moral de muitas das mulheres associadas ao referido quadrante político e cultural, e também uma das causas da sua quase-ausência nos rostos visíveis e com protagonismo da geração agora no poder. A verdade é que, em Portugal, a «segunda vaga» do feminismo, beauvoiriana, quase não existiu, para além de algumas manifestações mais ou menos folclóricas e de experiências pessoais isoladas, muitas vezes de «estrangeiradas». E a «terceira», propondo uma mais eficaz desconstrução das diferenças, apenas agora – globalização oblige – começa a fazer-se sentir. Mas antes tarde que nunca.
Parece-me escusada a entrevista que Maria Eugénia Neto, a viúva de Agostinho Neto, deu ao Expresso. E não gostei de ver o Expresso publicar uma entrevista que apenas serve para desvalorizar a personalidade da entrevistada e nada acrescenta a nada. As suas posições são ambíguas, fugidias, estão mal explicadas ou mostram algo que não se percebe muito bem se é astúcia ou simples dislate. A informação que oferece é nula: a entrevistadora parece até melhor informada que a entrevistada sobre os assuntos que esta supostamente deveria conhecer. E os comentários que Maria Eugénia faz aos momentos e episódios mais dramáticos da história angolana dos últimos 35 anos são sempre esquivos e irrelevantes: «não sei como foi», «não me apercebi», «são coisas em que não meti o nariz», «não quero entrar em pormenores», «estou-lhe a dizer que não sei», «não quero falar disso», [Neto] «não devia saber», [em casa] «não falava de coisas políticas». Para além das referências às circunstâncias dos primeiros anos da sua vida com Agostinho Neto, a parte mais afirmativa da entrevista ocorre quando, ao referir-se a Dalila Cabrita Mateus (co-autora do livro Purga em Angola, no qual se redescobre o golpe sangrento de 27 de Maio de 1977), considera que esta «é desonesta, é mentirosa». Porém, quando a jornalista pergunta, a propósito das informações avançadas no livro, «então quantas pessoas morreram?», a resposta daquela que era então a mulher do principal responsável do MPLA e do Estado angolano é tristemente esclarecedora: «Não sei, não estava dentro de nada. Mas isso é mentira».
«Os Amigos são: simpáticos, afáveis, delicados, escondem-nos as verdades-verdadinhas, poupam-mos com hipocrisias e blandícias, são ambíguos às vezes, cobiçam-nos a fêmea (…). Os mesmos Amigos ouvem-nos com paciência, com ironia, disfarces, facadas ou bonacheiradas, promessas depois fáceis de não cumprir (esquecer ou iludir com outras inda mais tentadoras), fiteiros de uma figa que nos lixam na nossa máxima fraqueza ou dor como se, sim (e para dizer tudo), sim, como se a nossa queda desamparada na miséria ou no vício lhes servisse a eles, ou justificasse a eles, os auxiliasse a eles a vencer a eles nalguma coisa. Escutam. Fingem às vezes que acreditam. Com toda a compreensão.» «Os Amigos. Os Bambinos», Exercícios de Estilo, Estampa, 1971
Escrita uma semana após o seu desaparecimento triste e prematuro, uma muito bela e comovente evocação de Olímpio Ferreira deixada no Público por Jorge Silva Melo. Pode lê-la aqui.
Os resultados de um inquérito realizado pela Universidade Livre de Berlim, tendo como universo de respondentes cerca de 5.000 alunos alemães com idades compreendidas entre os 15 e os 17 anos moradores na Renânia do Norte-Vestefália, na Baviera, em Berlim e no Brandeburgo, foram encarados pelo Le Monde com bastante alarme. O diário francês considerou-os inquietantes e um claro sinal das graves lacunas na informação sobre a história recente do seu próprio país que muitos desses jovens possuem.
Perto de 37 por cento deles, por exemplo, considerou que a STASI, o eficientíssimo órgão de segurança e de contra-informação do Estado da ex-RDA – que se autodesignava como «Escudo e Espada do Partido» e integrava milhões de agentes e informadores –, era «um serviço de informações como outro qualquer». 54,4 por cento dos inquiridos não tinha conhecimento do ano de construção do Muro de Berlim nem sabia que este foi erguido por iniciativa do governo comunista alemão. E 40 por cento entendia que o regime democrático no qual actualmente vive não é melhor que a anterior ditadura comunista, valorizando alguns factores de segurança no emprego que esta parecia assegurar.
O singular é que um artigo não-assinado do Avante! («O sonho do socialismo») põe de lado as inquietações do Le Monde e não disfarça a felicidade e o contentamento pela desculpabilização do antigo regime leste-alemão que parece revelar a débil memória histórica dos jovens inquiridos. Fala rancorosamente, e com uma dose notável de ignorância e parcialidade, sobre «a verdadeira história do muro de Berlim e as pesadas responsabilidades das três potências administrativas ocidentais, que impuseram a divisão da Alemanha no pós-guerra contra a vontade da União Soviética»(*),e aponta alegremente para o facto de 32 por cento dos inquiridos não se importarem de regressar a um sistema no qual fosse possível recuperarem as «vantagens daquela sociedade», aceitando «restringir as suas liberdades individuais» para o conseguirem. As frases transcritas em itálico são do Avante!.
(*) Disponível nas livrarias uma investigação sólida escrita num registo invulgar: O Muro de Berlim. 13 de Agosto de 1961 – 9 de Novembro de 1989, de Frederick Taylor (Tinta da China).
No âmbito de uma das correntes que neste momento deslizam entre os blogues que se expressam em português, Joana Lopes considerou-me merecedor do «Prémio Escritores da Liberdade». Agradeço a lembrança e a simpatia, perdoando-lhe o exagero óbvio. Desta vez, porém, não me sinto capaz de manter a esperada sequência. Procurando não ser demasiado verboso – e menos ainda um grande chato – tento explicar porquê.
Como poderemos encontrar, no universo dos blogues, um «escritor da liberdade»? Um dos critérios será, naturalmente, seguir a trajectória do blogger, confirmando tanto quanto possível o seu papel, pela escrita e pela acção, e em todas as circunstâncias, na defesa da democracia e na afirmação da liberdade de expressão. Não vale, por exemplo, um resistente antifascista que no passado tenha fechado ou que hoje feche os olhos a múltiplas formas de coação da livre expressão da palavra. Esse jamais será um «escritor da liberdade».
Outro critério, mais lato e difícil de definir, situá-lo-á como aquele que actualmente seja capaz de pensar de forma autónoma e de exercer o direito à crítica sem pensar se aquilo que escreve ou diz se conforma com este ou aquele modelo. Chamemos-lhe escritor-herói: o que sistematicamente utiliza os instrumentos que tem à mão – um blogue, por exemplo – para escapar à lógica de padronização e de conivência que domina hoje a política e a comunicação social mainstream. E, mesmo de entre estes, só poderão verdadeiramente contar aqueles que forem capazes de exercer até ao fim a responsabilidade e a convicção do seu gesto, dando o nome, um contacto, e, quando necessário, também a cara. De outra forma, a sua ousadia facilmente se transforma em nada.
Nestas condições e feitas as contas – que não consideram muitos dos que já foram premiados, entre eles alguns dos nossos comuns amigos –, peço desculpa mas confesso-me incapaz de apontar mais do que dois ou três bloggers que conheço suficientemente bem para garantir a justeza do distintivo. Como julgo que eles pensam mais ou menos como eu, prefiro não os desafiar.
Ainda que com atraso, não posso deixar de referir a merecida atribuição do Prémio Pessoa 2007 à historiadora Irene Flunser Pimentel. Para além desta distinção chamar a atenção de um público alargado para releituras não-assépticas de alguns temas da história portuguesa recente (as organizações femininas no Estado Novo, os judeus em Portugal durante a Segunda Guerra Mundial, a PIDE e a censura, a propaganda da Mocidade Portuguesa Feminina, e, ao que se anuncia, também a vida de José Afonso), ela valoriza igualmente a requalificação da História como instrumento da cidadania. Permitindo ver de que forma se podem conjugar método e rigor com esse «dever de memória» que constitui, afinal, desde pelo menos Heródoto, a essência da própria actividade historiográfica. E mostrando como, neste campo, é possível – e também urgente – escrever ao mesmo tempo para dentro e para fora da academia. Sem que essa escolha implique necessariamente uma simplificação do discurso ou um abrandamento do seu grau de fundamentação. Os meus parabéns a Irene Pimentel.
Começa enfim a sair dos baús a memória de uma singular «África portuguesa», vivida apenas por algumas comunidades de brancos e de «assimilados». Há cerca de doze anos atrás, quando comecei um projecto destinado a inventariar uma parte desse legado, – projecto depois gorado, por ter surgido fora de tempo e enfrentar obstáculos na altura ainda intransponíveis –, toda aquela vivência permanecia fechada sobre si mesma, inacessível, geralmente envolvida em traumas, medos e rancores. A transposição para os territórios coloniais de determinadas marcas da cultura de regime instalada na «Metrópole» – como o folclore em versão «estado-novista», o fado de salão, a canção ligeira oferecida pelos «melhores artistas da rádio e da TV», os concursos de misses, as corridas de automóveis, os torneios de ténis, o futebol com as camisolas locais do Benfica ou do Sporting – parece-nos hoje, quando espreitamos alguns dos seus ecos na série televisiva de Joaquim Furtado, algo de estranho, de improvável, que jamais terá existido. Mas a verdade é que existiu e o seu rastro não pode, nem deve, ser apagado. Um bom exemplo desse aparente «Portugal de cartolina» é-nos recordado por Joana Lopes num post-documento sobre as Marchas Populares de Lourenço Marques. O «lusotropicalismo prático» em todo o seu esplendor.
A primeira vez que experimentei um sentimento obsessivo de ciúme e um profundo desejo de vingança direccionei-os para a pessoa do Sr. Plemiannikov. Observo o infame sujeito, a rir-se não sei de quê, nesta velha fotografia a preto ebranco. Nunca lhe perdoei as sucessivas afrontas.
A História da PIDE, o livro de Irene Flunser Pimentel que constitui uma versão condensada da sua tese de doutoramento e foi agora publicado pela Temas & Debates, vale, entre outros atributos, pela forma criteriosa e documentada como devolve essa sombra da nossa história recente que tende, por vezes, a ser ampliada ou então esbatida. Não, a PIDE não foi uma cópia caseira da Gestapo ou da italiana OVRA, como no-la apresenta uma certa memória heróica da resistência ao fascismo português. Mas não foi também a instituição policial «benévola», quase paternal, que o regime caído em 1974, corroborado por alguns escritos contra-revolucionários posteriores, apresentou como um mero serviço público. O conhecimento da sua verdadeira dimensão e dos seus mecanismos essenciais sai reforçado com esta obra que passa desde já a constituir um instrumento indispensável para uma compreensão adequada de um dos lados mais negros do Estado Novo e do peso dos silêncios e das cumplicidades que ele nos legou.
Este trabalho levanta, no entanto, um problema metodológico que, ao contrário daquilo que se passa por exemplo em Espanha ou na América Latina, se mantém recorrente na historiografia portuguesa contemporânea: o dos entraves colocados à utilização, ou mesmo à validade, do testemunho oral, que a autora entendeu pôr deliberadamente de parte. Utilizou, naturalmente, esse direito de se servir ou não de determinadas fontes documentais que é prerrogativa de todo o historiador. Desde que este justifique essa exclusão, o que a autora fez com clareza na introdução. Mas já me parece bastante discutível a explicação que procura dar das razões pelas quais desqualifica o testemunho oral, por si tomado, essencialmente, como «’provocado’ pelo historiador que, ao interrogar a testemunha, constrói a sua própria fonte, utilizando-a à maneira de um produtor».
Sendo verdade que este problema se coloca, ele requer, justamente, não a desistência, mas um cuidado suplementar da parte desse mesmo historiador, forçando-o a confrontar os testemunhos orais entre si e na relação com outro tipo de fontes, escritas ou não, servindo-se apenas das informações que podem ser aferidas e claramente identificadas. A própria autora reconhece, muito correctamente, que existe hoje uma «profusão de artigos que colmatam a ausência dos que foram esbulhados ou não podem ser consultados». E por «artigos» podemos entender aqui, parece-me, outras fontes que não apenas os materiais provenientes dos arquivos oficiais. Porque não então as fontes orais? Que diferença de valia tem esta por comparação como testemunho pessoal escrito? E, partindo do princípio segundo o qual não passará pela cabeça de ninguém fazer a história do Holocausto e do Gulag sem recorrer aos seus sobreviventes (sejam eles as vítimas ou seus carrascos), por que motivo se coloca a dúvida em determinadas situações e não noutras?
Em «Pela História Oral», publicado no Passado/Presente, Maria Manuela Cruzeiro coloca esta questão naqueles que me parecem ser os seus adequados termos. Aí escreve a dada altura: «não discuto que os documentos orais (exactamente como os escritos) têm que estar sujeitos à crítica, mas não apenas à crítica da comunidade científica, que como a própria história tem abundantemente provado não é imune àquilo que tanto teme e pensa esconjurar: embustes, falsificações ou manipulações». Esta ideia, que exclui uma obsoleta concepção asséptica do trabalho do historiador e abre o leque do espaço de prova, permite-nos relativizar e aferir do grau de falibilidade de todo o tipo de fontes, independentemente do facto destas serem escritas, orais, sonoras ou imagéticas. E ponderar melhor o grau de erro das instâncias legitimadoras que pretendem ditar o grau de verdade que elas podem ou não conter, refugiando-se para tal, por vezes, no restrito recurso ao documento escrito. Um texto de João Tunes sobre este assunto, publicado no blogue Água Lisa, retoma e desenvolve este tema de uma forma que me parece igualmente límpida. Evitando repetir alguns dos seus argumentos, remeto o leitor para a leitura de ambos os textos (que encontra aqui e aqui).
A história oral da qual falo corresponde ao registo, mas também à análise, dos testemunhos orais acerca do passado. E refere-se tanto ao processo de investigação no qual o acto de recordar é suscitado por um entrevistador como aos tipos de escrita baseados na interpretação razoável dessa informação. Ao contrário da tradição oral, que envolve o conhecimento do passado transmitido através das gerações, ela parte de uma narração individual determinada pela experiência, como actor ou figurante, de quem viveu determinados acontecimentos. Tendo-se desenvolvido após o final da Segunda Guerra Mundial, foi nos anos 60 e 70 que sofreu um maior impulso, devido à crescente influência de uma história social cada vez mais preocupada com os sectores e os grupos cuja experiência vinha sendo ignorada, ou reinterpretada, pelos discursos do poder e das elites. Transformou-se então, como lembra a historiadora e filósofa argentina Maria Inés Mudrovcic, «no principal meio para o registo das experiências vividas pelos sectores marginais». Creio ser legítimo que a esta condição de marginalidade possamos associar também as vítimas e os silenciados dos processos de repressão impostos pelos diversos regimes de pendor totalitário, como o foi também o que regeu a sociedade portuguesa até Abril de 1974. E também por eles, ou para eles, a memória transmitida oralmente funcionará como última possibilidade de adquirem voz própria e resistirem ao esquecimento ou à sonegação impostos pelos registos oficiais, venham eles da instituição que os reprimiu, ou mesmo, em determinados casos – que não terão sido poucos – das organizações de oposição que não aceitaram muitos dos seus comportamentos (como aconteceu, por exemplo, com aqueles que denunciaram companheiros sob tortura).
A memória oral, deve ainda reconhecer-se, é sempre particularmente contaminada pelo processo de «reconstrução» ditado pelo grau de subjectividade que ela integra e pela extensão temporal da experiência individual da qual parte. Esta pode tomar como vivido num dado momento aquilo que foi, de facto, acumulado e «reescrito» ao longo de anos. É esse aliás, a par da possibilidade da pura e simples invenção, o principal problema que se coloca ao testemunho oral e aquilo que mais claramente distingue a informação que este oferece daquela que é veiculada pelos documentos escritos, em princípio fixados num determinado momento (por alguém que o produziu com a intervenção da sua subjectividade, evidentemente). Devemos ter consciência dessa dificuldade e agir em conformidade, aproveitando apenas o que pode ser credibilizado por outros processos ou enunciando as nossas dúvidas sempre que estas existam.
Termino num registo que só aparentemente é o da futurologia. Que faremos nós daqui por alguns anos, ou mesmo agora, com a profusão de documentos escritos que, devido ao suporte digital no qual estão a ser depositados, poderão facilmente, ainda que protegidos por senhas de acesso, ser reescritos ou mesmo substituídos? Com uma acta de uma reunião, por exemplo, anteriormente fixada numa leitura parcial mas vertida por uma vez para o papel e hoje guardada num disco duro ou numa pen. Não existe ainda uma resposta cabal para esta pergunta, mas suspeito que os historiadores do futuro – um futuro muito, muito próximo – terão de recorrer aos testemunhos orais (e aos documentos visuais ou híbridos) para tentarem aferir do grau de fiabilidade dessa informação escrita sobre a qual jamais existirão certezas. Esta é, no entanto, uma realidade que transcende um pouco o problema concreto suscitado pelas perplexidades da autora desta excelente História da PIDE.
Um importante esclarecimento de Irene Flunser Pimentel a propósito do valor da história oral pode ser lido aqui.
Tenho evitado referir-me a Purga em Angola, o livro de Dalila Cabrita Mateus e de Álvaro Mateus, editado pela ASA, sobre a história do MPLA e os acontecimentos que envolveram o negro dia 27 de Maio de 1977. Custa-me falar de um assunto doloroso e sobre o qual não posso ser observador imparcial, pois estive em Angola no ano da independência e conheci de perto pessoas que ano e meio depois foram fuziladas, ou desapareceram, ou foram «apenas» presas e torturadas com requintes de barbárie. Jovens quadros como o Mário Rui ou o Armando, que deixaram uma boa posição em Portugal para participarem na construção da sua pátria, militantes anónimos com os quais me cruzei por diversas vezes em missões de apoio logístico ao Movimento, figuras mais conhecidas como o Rui Ramos, da OCA, com quem cheguei a ter, em Luanda, uma reunião vigiada já por agentes da DISA. Sei que, para todas as partes, era aquele um tempo de radicalidade. Eu próprio não era, na altura, propriamente um sujeito razoável. Mas sempre achei que existe um limite moral para o extremismo. E esse limite foi largamente ultrapassado por pessoas como Pepetela, Manuel Rui Monteiro, Luandino Vieira ou Rui Mingas, membros da «Comissão das Lágrimas», que continuam a passear-se por aí, a serem premiados ou apaparicados, com a condescendência de muitos intelectuais portugueses, companheiros seus dos tempos do «reviralho» para quem não passam de uns «gajos porreiros». Seja qual for a posição política que cada um deles possa hoje ter, o grau de culpa que possam ou não sentir, o hábito de eremita que possam até arrastar consigo, aquilo que fizeram jamais será esquecido e dificilmente poderá ser perdoado. Também por isso este livro se torna importante.
Continua a excelente série sobre a Guerra Colonial que a RTP-1 tem transmitido todas as terças-feiras. Para já, aquilo que ressalta como inegável é o fantástico trabalho de recolha e o esforço de enquadramento histórico dirigido por Joaquim Furtado. Jornalismo de investigação a sério, daquele que só alguém com a sua experiência, o seu perfil e o seu estatuto pode materializar. De facto, detecta-se ali um conhecimento, uma capacidade crítica, uma procura não-ingénua de isenção, uma disponibilização do tempo, um esforço para fazer devagar mas bem, que nem sempre os jornalistas mais novos, e alguns dos da geração de Furtado, sabem fazer ou têm condições para levar à prática.
Entretanto, em termos formais, aquilo que neste momento mais me choca não são os dados sobre as vítimas e os danos ocorridos nos primeiros tempos da guerra em Angola. A maioria deles eram já bem conhecidos. É a forma paternalista como a generalidade dos protagonistas portugueses entrevistados, mesmo pessoas responsáveis como Carlos Fabião, Lemos Pires ou Adriano Moreira, fala dos combatentes africanos e do comportamento das «populações indígenas». Alguns deles não hesitam mesmo em apelidá-los, tanto tempo depois, de «terroristas», ou de considerar muitas dessas pessoas como «levadas ao engano» pela propaganda insidiosa do «inimigo». Em muitos dos testemunhos ainda se pressente a matriz racista, um resto de adrenalina, a marca de exaltação (esforçadamente contida, mas perceptível), que sobra dos momentos de tensão e de bestialidade então vividos. É bom que o programa também mostre isso, claro. Mas tal não deixa de perturbar aqueles de nós que já mataram esses fantasmas.
«Estamos em Junho de 1961. No Cais da Rocha do Conde de Óbidos, em Lisboa, a multidão reuniu-se para ver partir um dos primeiros contingentes de soldados a partir para a Guerra Colonial. Há fanfarra, hino e ambiente de festa. O repórter lança-se no seu discurso, previamente revisto, onde fala da grandiosidade do império e do céu azul na partida, despedindo-se com um ‘boa viagem rapazes e até breve’. Mas o microfone da rádio, que não obedece a ordens, não conseguiu fazer calar os gritos de dor de mulheres e mães que se ouvem de fundo, ao longo de toda a reportagem.» [do Público online]