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Trabalho de casa

Há alguns dias deixei no meu mural do Facebook uma ligação para um post de J. Rentes de Carvalho publicado no Tempo Contado. A propósito da atual crise e da necessidade de muitos portugueses de classe média cortarem nas despesas correntes, referia-se aí o recurso imoderado aos serviços das chamadas mulheres-a-dias como sinal de um certo desperdício e de menosprezo pelo trabalho manual recorrente entre muitos de nós. A partir desse texto, abriu-se então uma conversa que divergiu em algumas direções: a necessidade ou o direito a fruir de trabalho manual pago, a relação entre esse tipo de serviço e o complexo horário de trabalho de quem a ele recorre, ou o modo como ele é importante para a economia doméstica das pessoas que dele fazem o seu meio de vida. No entanto, talvez tenha passado um pouco ao lado da discussão aquela que me pareceu ser a intenção do autor e a razão pela qual chamei a atenção para o que ele escrevera no seu blogue. Sublinho: a desvalorização do trabalho manual que afasta do horizonte de muita gente a simples possibilidade de sacudir uma passadeira, de cozinhar o seu próprio almoço ou de limpar o quarto de banho que sujou.

O tema é tanto mais pertinente quanto se sabe que no norte da Europa – objetivamente mais rico, com mais pessoas de vida desafogada – esse tipo de serviço é usado apenas em situações especiais, não diria raríssimas mas bastante limitadas. Além disso, trata-se por ali de um serviço muito bem pago. No seu post, o escritor invocava o caso holandês e a influência da ética calvinista, que conhece diretamente, mas poderíamos alargá-lo a outros exemplos e tradições. Ao seu comentário, que não será indiscutível mas no essencial faz para mim todo o sentido, posso entretanto juntar um outro. O costume da casa burguesa arrumada todos os dias, com tudo no seu lugar, os metais a brilhar e o ambiente a cheirar a limpeza recente, é típico das classes média e alta do sul da Europa. Um estudo sociológico recente que me foi relatado – não tenho a referência completa mas a pessoa que me falou dele merece confiança – refere a forma como essa obsessão cultural pela limpeza irrepreensível é responsável até pelo agravamento, em alguns países, das condições de trabalho das chamadas donas de casa, por sua causa forçadas a uma sobrecarga de trabalho. É possível cartografar esta situação: Portugal, a Espanha, o sul de França, a Itália. A ética católica será aqui irrelevante, uma vez que a Irlanda não participa deste culto do detergente e do espanador. No norte, de facto, ninguém se incomoda tanto em ter de tirar uma pilha de papéis de cima de uma cadeira para se sentar ou receber as visitas. Ou de ter os brinquedos dos miúdos espalhados pela casa. Ou de reparar em que está um pouco mais de pó sobre o parapeito. Não sei se não teremos de nos adaptar rapidamente a tais hábitos.

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    Dois novos romances

    Dois novos romances no mercado português, e por estes lados em fila de leitura, que tomam como argumento, a partir de circunstâncias geográficas e históricas muito diferentes, e com uma dimensão literária também ela desigual, o mesmo tema e o mesmo cenário da transformação do poder despótico, exercido em nome de «grandes causas», num fator incontrolável de horror e de arbitrariedade sobre as pessoas das quais se vai servindo e que vai triturando. Comissão das Lágrimas, de António Lobo Antunes (Dom Quixote), referindo os acontecimentos vividos numa Angola pós-independência em redor do golpe (e do contragolpe) de 27 de maio de 1977, e O Epigrama de Estaline, de Robert Littell (Civilização; original de 2009), sobre o combate sem futuro e o fim trágico do poeta e ensaísta russo Osip Mandesltam, merecem ambos a maior atenção. Nos episódios e circunstâncias históricas mencionados, omnipresente a sombra da cumplicidade e da cobardia dos intelectuais que se traíram a si próprios compactuando com a violência e servindo a tirania. Para desta receberem o respetivo prémio ensopado em sangue.

      Atualidade, Democracia

      Recusar e compreender

      Misrata
      Gente de Misrata

      Três apontamentos ainda a propósito da execução pública de Kadaffi e do filho Mutassim, bem como da repercussão que a divulgação mediática desses momentos tem merecido. São também três dificuldades na leitura de um horror que podemos não aceitar mas teremos de compreender.

      1. Mais chocante até do que a morte medonha do ex-líder líbio parece-me ser a do filho Mutassim. O que mais perturba a nossa sensibilidade é vê-lo, em fotografias e vídeos tomados depois da captura, bebendo água mineral por uma garrafa e fumando serenamente um cigarro. Percebermos que por minutos lhe foi oferecida a expectativa da salvação («pronto, acabou…»), seguindo-se a esta uma execução sumária e sem piedade. Dar e tirar repugnam a nossa consciência de matriz judaico-cristã, onde castigo e perdão são faces da mesma moeda. Mas nem todos pensam e agem como nós. E nem em todos os momentos ela tem validade. Na guerra, aliás, a primeira coisa a ser perdida é sempre a codificação ética aplicada em tempos de paz.

      2. Não tem sido devidamente considerado o facto de o fim horrível de Kadaffi ter chegado às mãos da famosa brigada de choque de Misrata, que jurara apanhá-lo à mão. Misrata, relembre-se, foi a cidade que mais sofreu durante o cerco imposto pelas tropas do ex-ditador, devastada e quase integralmente transformada em escombros, com muitos milhares de mortos, incluindo-se entre estes doentes hospitalizados. Lembrando-nos disto mais facilmente entenderemos a dificuldade do perdão e a tontura da vingança. E a vontade de transportar o corpo para a cidade e de o expor de modo a que as vítimas pudessem olhar de frente o rosto do algoz. Tem milhares de anos e é universal a tradição da decapitação e da exposição entre ao povo vencedor da cabeça do chefe vencido.

      3. Uma vez mais, a NATO, e em consequência «os americanos», estão a ser cegamente apresentados por alguns setores como principais responsáveis morais destes atos brutais e definitivos. É óbvio que esta barbárie filmada – e toda aquela que não pudemos ver – lhes escapou ao controlo e que, apesar de instrumentais no derrube de Kadaffi, teriam todo o interesse em evitá-la. Até pela consabida posição dúbia dos líderes ocidentais perante aquilo que se vinha passando desde há décadas na Líbia. Só quem não se esforce por entender a especificidade e a força dos conceitos de honra e vingança no mundo islâmico, ou os distúrbios potenciados por uma guerra civil, pode escandalizar-se com o que aconteceu no terreno e nas horas decisivas. Para nós lamentável e escusado, sem dúvida, mas para «eles» inevitável como exorcismo.

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        Ninguém mais escreverá ao coronel

        Um parágrafo sobre o fim de Kadaffi. Toda a morte é lamentável e esta não o é menos. Observada daqui, em imagens horríveis, não deve alegrar ninguém. Já o mesmo não acontecerá, com toda a certeza, com quem viu pais, filhos, irmãos, amigos, presos, torturados e mortos sob o seu regime. E para quem o combateu, nesta fase definitiva, de armas na mão. Na guerra, e principalmente numa guerra civil, é muito difícil o perdão no momento do combate, pois trata-se de matar ou de morrer, e paira no ar um forte odor a vingança. Mas custa a entender que se possa condenar esta morte terrível sem condenar as outras que o morto assinou, só porque andam uns quantos aviões pouco inocentes a cruzar os céus em voo picado. Como custa a entender, lá mais adiante, o silêncio cúmplice diante dos milhares de mortos sírios de Bashar Al-Assad. O futuro agora é complexo, muitas e discordantes são e permanecerão as forças em presença, o petróleo líbio será sempre bastante tentador. A liberdade e a justiça, para os que vivem naquele país de pequenos oásis e um imenso deserto, fazem parte de um caminho longo e sinuoso, com troços intransitáveis, que apenas começou. Tudo está evidentemente por decidir. Teria sido melhor, é verdade, que o ciclo encerrasse de outra maneira. No entanto, assim o quiseram uns e os outros.

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          Os fantasmas descem à cidade

          «No começo não há sangue, os indícios são inofensivos.»
          (Hans Magnus Enzensberger, Perspectivas da Guerra Civil)

          A violência de rua está nas primeiras páginas. Em Atenas, Roma ou Madrid, ela emerge como manifesto visível dos protestos dos mais lesados pela crise artificial, rigorosa e prolongada que afeta as sociedades do sul europeu. Em Lisboa – como em Dublin, que não fica a sul mas para lá vai resvalando – o ruído de uma indignação agressiva e da chuva de pedras caindo sobre os escudos da polícia é ainda ténue, resultado provável de uma maior predisposição cultural para a resignação, mas quando o último dos limites for ultrapassado cá chegará também. Não se trata de uma paisagem agradável, embora ela seja provavelmente necessária, ou pelo menos compreensível, uma vez que a ausência de uma resposta forte e sonora apenas acentuaria a condição de impunidade que domina os responsáveis últimos por toda esta situação. Esta não é, no entanto, a pior das violências a temer, uma vez que será sempre episódica e localizada. O mal, o verdadeiro mal, está na diminuição brutal dos direitos que a Europa está a viver e no descrédito da democracia, produzindo todas as condições para que o uso da força seja mostrado como instrumento de salvação e, em consequência, para que comece a moldar-se um futuro sombrio no qual as liberdades serão limitadas e os cidadãos viverão iludidos e humilhados.

          Aproximam-se então dois cenários ainda há pouco considerados longínquos ou julgados impossíveis, apresentados como hipóteses académicas ou resíduos de um passado que pertencia apenas aos livros de História. O primeiro destes cenários subentende a emergência de um autoritarismo caracteristicamente conservador e de direita, de raiz populista, que apoiado no descontentamento dos cidadãos e no descrédito dos partidos tradicionais, possa tomar o poder através de eleições, destruindo depois o próprio regime, como aconteceu na Alemanha com a República de Weimar. Nada desta figuração se apresenta à vista desarmada, mas qualquer um percebe que, no presente momento, basta que apareça um nome e se reúnam algumas vontades para que a serpente saia do seu ovo. O segundo cenário não é, porém, menos dramático. Ele supõe o crescimento rápido de uma esquerda antiparlamentar, apoiada no entendimento da violência como «parteira da História» e nos velhos princípios do autoritarismo de matriz leninista, estruturalmente defensora da centralização do Estado e da repressão da divergência, observada sempre como «contra-revolucionária». Esta é uma possibilidade que, nas condições presentes, pode também ser imposta pelo voto de protesto anticapitalista da maioria dos cidadãos, de acordo com um panorama ainda há bem pouco tempo considerado delirante mas agora inteiramente plausível.

          Num e noutro dos casos, é sempre o espetro da força e da coerção, a redução compulsiva do pluralismo e dos direitos individuais, que em nome de urgências maiores, como a necessidade de pão para a boca ou a sobrevivência do Estado-Nação, nos ameaça. Não de longe, mas já aqui, talvez mesmo ao virar da esquina. Estão praticamente reunidas, como dirá a cartilha, as condições subjetivas para que ele apareça à nossa frente. Resta esperar pelas objetivas, que podem não tardar muito. O filme, que parece de terror, está a correr depressa, demasiado depressa.

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            Ódio ao funcionário público

            O mealheiro

            No texto anterior falei do medo, neste falo do ódio. Porque neste momento é ele que nos rege. Imposto por pessoas que já não partilharam os conflitos, os debates, as causas e as expectativas que cavaram o fim do regime velho, gente que desde o ninho fundou a sua estreita noção de democracia no menosprezo da solidariedade social. Menosprezo apoiado num padrão de autoridade imposto por um Estado apenas destinado a arbitrar a defesa do interesse individual, a vertigem do poder do dinheiro e da especulação financeira, a exploração desregulada do trabalho assalariado. Não um governo ao serviço do interesse coletivo, da dimensão partilhada da existência e de uma dignidade fundada na justiça e na equidade distribuídas sem outro limite que não o do esforço e do talento de cada um. São pessoas que odeiam em particular, com «ódio de classe» – sempre odiaram mas agora têm pretextos para o mostrarem sem restrições –, a noção de interesse público e, em consequência, a atividade dos milhões que por ele, ao longo de décadas, deram e continuam a dar o melhor do seu esforço. Dos que nele se formaram, para ele convictamente trabalharam, e, tantas vezes, por ele foram perdendo a juventude, o quinhão de felicidade que lhes cabia, até a saúde. O ódio ao funcionário público, o remoque populista ao seu lugar na sociedade, tornou-se assim uma das molas reais do discurso oficial e da capacidade decisória do atual governo. Não tanto no exercício do direito à crítica dos excessos e dos desmandos do funcionalismo – obviamente existentes e que sempre mereceram a censura e a retificação – mas devido à vinculação do padrão de atividade profissional dessas pessoas a uma noção de interesse coletivo, de desenvolvimento comum ou de desígnio nacional, que tais aprendizes de Milton Friedman apenas invocam quando serve os valores do seu universo mesquinho fundado na desigualdade. Mas será possível governar um país odiando, e em consequência humilhando, uma parte tão significativa dos seus cidadãos?

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              Unir a luta para mudar de vida

              Protesto

              Se excetuarmos os ricos, os néscios, os especuladores e a enfatuada babugem do poder e do sistema partidário que lucra sempre com a gestão da desgraça alheia, todos os portugueses – incluindo por certo os moradores no distrito do Funchal – acordaram hoje em estado de choque com as medidas do próximo Orçamento de Estado divulgadas por Passos Coelho. Não se tratou apenas de um golpe de tenaz sobre o poder de compra e até sobre a mera sobrevivência material da maioria da população, em particular a da outrora chamada classe média, propondo assim matar o doente com base na terapia escolhida. Nem foi só um exercício descarado de inabilidade política, revelando a incapacidade absoluta para apontar uma saída, uma escapatória, um gesto de ousadia capaz de deixar nos cidadãos, pelo menos, a presunção de que aquilo por que vão passar serve para alguma coisa. O discurso de Coelho foi sintomático da incapacidade para encontrar um caminho, ou sequer de conceber uma alternativa a ponderar, por parte de um universo político cobarde e pouco inteligente que só reconhece a administração daquilo que existe, desinteressando-se do caminho que leva ao que pode existir. Dito de outra forma: incapaz de perceber que a negra crise na qual mergulhámos de cabeça é uma crise de sistema, e que a única solução é mudá-lo. Não é deixar que nos afundemos levando connosco o melhor das nossas vidas.

              Mas a tragédia que estamos a viver não passa apenas pelo facto de quem nos gere ser atavicamente incapaz de outro estímulo que não seja o do pau e o da cenoura açulados por Frau Merkl e os seus cúmplices. Passa também por o setor em condições de criar uma outra possibilidade permanecer desde há largos anos incapaz de a pensar e de a propor, separando o essencial do acessório, com uma maleabilidade tática, uma consistência e uma força política e moral em condições de mobilizar os cidadãos. O protesto, naturalmente, é necessário, incluindo o protesto de rua que é nesta altura o único escutado por quem tem a faca e o queijo na mão. E por isso é importante que as manifestações deste sábado sejam concorridas e vibrantes, ainda que não se concorde integralmente com o discurso político que enforma algumas delas. No entanto, não adianta muito clamar contra a injustiça, bradar contra os ataques aos direitos das pessoas comuns – e não apenas «dos trabalhadores» – se não existe a possibilidade de, em termos práticos, definir uma plataforma de entendimento para a alternativa. Capaz, em consonância com uma forte opinião pública e um movimento social amplo e não-sectário, de apontar para uma saída credível. O pior de tudo, neste momento, não é apenas a aproximação do espetro da miséria e do estilhaçamento brusco da qualidade de vida da maioria dos cidadãos: é a ausência de esperança e do enunciar claro da probabilidade de uma saída. E aqui também os partidos, movimentos e correntes políticas críticos do neoliberalismo e dos seus desmandos têm responsabilidades. Eles têm sido incapazes de criar uma real alternativa, refugiando-se, desde há décadas, na mera política do protesto. Preocupados com a reivindicação e o combate pelo poder, mas não com uma larga convergência de objetivos e a sustentabilidade de um futuro solidário projetado para além do imediato e das fronteiras dos Estados. Ora como só a preparação deste futuro pode abrir uma clareira na floresta cheia de lobos e despenhadeiros na qual andamos às voltas, é tempo de mudarem de estratégia. E com a maior urgência.

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                Morenas de Angola

                Riquita 1971
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                Outros (e outras) poderão ter vivido semelhante experiência noutros lugares, quem sabe se até à porta de casa, mas nunca me cruzei com tantas mulheres tão perturbadoramente belas como naquele ano em Angola. Bonitas sem limite, de todas as cores, de todos os aromas, com corpos esplêndidos e um porte único. Capazes de «faire tourner la tête» e de deixar um sujeito parado na contramão atrapalhando o trânsito. Nos anos derradeiros do regime velho, aliás, certas beldades afro-portuguesas eram como um emblema usado para proclamar a dimensão planetária da pátria, disputando a glória e os favores públicos aos jogadores de futebol, aos fadistas, às estrelas do teatro revisteiro, aos ídolos do nacional-cançonetismo destacados na rádio, tv e disco (não havia ainda cassete pirata). Jornais e magazines de atualidades, os editados nas colónias mas também os da metrópole, transmutavam a mulher africana, e mais anda aquela cuja compleição resultava de uma mistura genética incutida pela mestiçagem, fosse ela negra assimilada, mulata, cafuza ou branca com sabor tropical, em ícone de um Portugal tórrido e multirracial, vestindo maillot, que começava na foz do Minho e seguia por aí afora, manejando as ancas num desfile que só deveria terminar nas praias de Timor.

                Os concursos de misses eram, na época, momentos centrais desse esforço de transformação de forças da natureza em emanações morfológicas da identidade pátria que o regime inventara. Algumas fizeram até carreira na metrópole, onde, apesar do clima menos propício ao desabrochar dos corpos, as possibilidades profissionais eram maiores e mais aliciantes. Ainda assim, muitos viam já nesses concursos, para além de instantes de uma cultura predominantemente masculina que reconduzia a mulher ao papel de suave e subalterno adorno, a intervenção censurável da propaganda do regime na construção de um ideal de perfeição que tapava a realidade mais escura, nada bonita, nada dengosa, da situação da mulher sob o Estado Novo e o jugo do colonialismo. Custa por isso ver como, logo após as independências, os certames destinados a designar as misses isto-ou-aquilo se mantiveram como ocasiões de entretenimento das massas e de encenação da grandeza putativa – ditosa pátria que tais filhas gera! – de novos regimes mais ou menos despóticos. A recente aparição de Leila Lopes, a angolana consagrada Miss Universo 2011 em São Paulo, e sobretudo o estardalhaço feito em seu redor pelos propagandistas de Luanda, representam mais um momento dessa transformação da beleza feminina numa encenação buffa, e neocolonial, de um orgulho degradado.

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                  Tabaco da ilha

                  Charutos Churchill

                  Já aqui deixei há dias algumas notas sobre as razões que levarão Alberto João Jardim a ganhar de novo, eventualmente com maioria absoluta, as eleições para a Assembleia Regional que estão a decorrer. Nada tenho a acrescentar ao triste rol. Existe, todavia, um comentário adicional que importa fazer, tendo em consideração as sondagens que confirmam a tendência e a reação de muitos populares madeirenses a inquéritos de rua nos quais lhes perguntam o que acham das contas da região: os dados esmagadores que têm sido divulgados por entidades insuspeitas sobre a ocultação da dívida (não o excesso, pois esse não é exclusivo local, mas a ocultação) e o desvio sistemático de verbas das rubricas para as quais estavam previstas, aplicado ao longo de vários anos, muitas das vezes com a complacência medrosa do governo da República, não perturbam a esmagadora maioria dos eleitores de Jardim.

                  Lá como cá, a ausência em muitas cabeças de um sentido claro e solidário de cidadania, o desinteresse pelos conceitos de honradez e credibilidade na coisa pública, impõem que a malfeitoria, desde que usada em proveito próprio, seja transformada em gesto admirável, em prova de esperteza, e o malfeitor seja convertido em paladino dos beneficiados. De onde vem o dinheiro e por que processos foi obtido, ou de que forma e por quem vai ele ser devolvido com os respetivos juros, tal não importa desde que nos alarguem a estrada, nos componham o coreto, nos dêem um autocarro novo para levar os miúdos, nos arranjem uma ocupação remunerada para a prima ou para o cunhado. Quem sofre com isto é obviamente a democracia representativa tal como a concebemos. Sim, esse péssimo sistema do qual dizia o outro senhor, que também fumava charuto e governava uma ilha, ser ainda assim o menos mau dos sistemas. O mais negativo da ideia está porém em pensar que não pode haver melhor. E se calhar pode.

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                    Os caminhos do extermínio

                    Daniel J. Goldhagen

                    O título do livro explica-se de forma simples, embora brutal: estima-se que ao longo dos últimos cem anos cerca de 150 milhões de pessoas foram vítimas de iniciativas persistentes de extermínio, responsáveis, no seu conjunto, pela duplicação do número de mortos em combate contabilizados em todas as guerras que tiveram lugar no mesmo período. A tese central de Daniel J. Goldhagen apoia-se nesta contabilidade avassaladora para mostrar que ela não dependeu de acasos, de circunstâncias, ou da iniciativa isolada de dirigentes transfigurados em serial killers, mas antes de escolhas políticas apoiadas num razoável ou mesmo num amplo consenso social. A ideia já se encontrava, aliás, presente numa obra anterior deste cientista político americano, motivo pelo qual foi objeto de feroz crítica: em Hitler’s Willing Executioners, saída em 1996, considerava que a busca da Solução Final determinada pelos nazis apenas fora possível com a cumplicidade, ou pelo menos a complacência, das pessoas comuns, alemães e aliados de outras nacionalidades, sem os quais os burocratas e os destacamentos especiais do Terceiro Reich não poderiam ter levado a cabo de modo tão eficaz o seu trabalho sujo. A obra foi, aliás, criticada por historiadores como Norman Finkelstein, que acusou o seu autor – sendo ambos, acusador e acusado, filhos de sobreviventes do Holocausto – de justificar com a sua explicação a criação de uma «indústria do Holocausto» de orientação sionista. (mais…)

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                      Os prémios e os melhores

                      A caminhoA decisão de anular, numa altura em que estavam já marcadas e anunciadas, as entregas dos prémios de 500 euros destinados aos dois melhores alunos de cada escola secundária pública, é, obviamente, uma vergonha e um ato de maldade pura. Atirou para o lixo as expectativas dos jovens premiados, muitos deles com dificuldades económicas, e deu-lhes um mau sinal sobre a forma como o Estado deve ser (ou não deve ser) considerado «pessoa de bem». Ensina-se assim o cidadão de amanhã a não confiar em ninguém. Desde logo, e em primeiro lugar, em quem dirige a coisa pública. Algumas das escolas, tentando minorar a deceção dos seus alunos mais esforçados, estão agora à procura de entidades privadas que possam, a troco de alguma publicidade, ajudar a reduzir um pouco os danos.

                      O caso vem trazer para primeiro plano um problema, periodicamente debatido, sobre o qual existem posições divergentes, transversais até na relação com o mapa político e partidário. A saber: justifica-se ou não a existência de prémios destinados a laurear os melhores alunos? Algum pensamento devoto do ensino «centrado no aluno» – já malevolamente cunhado de «eduquês» – considera que não, entendendo ser apenas necessário criar condições para que todos se sintam motivados. No dia ideal em que tal acontecer, só não terá boas notas quem não quiser ou for mesmo burrinho. Numa área à gauche, mais voltada para a «criação das condições objetivas», pensa-se que a atribuição de prémios contraria o igualitarismo, amplia os contrastes sociais e coloca sobre os ombros dos jovens uma responsabilidade que deve caber ao Estado. À direita, os prémios são muitas vezes defendidos, mas como instrumento de gradual composição de um escol, de uma meritocracia, que assenta na definição de uma elite de futuros «mandantes» com lugar de destaque numa sociedade devidamente ordenada. Na qual é suposto mandar quem sabe (e pode) e obedecer quem deve. (mais…)

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                        Brinquinho madeirense

                        brinquinho

                        De vez em quando é necessário escrever sobre temas que nada trazem de novo, que apenas relembram verdades conhecidas, limitando-se a dizer o óbvio e a fazer ecoar o que já todos sabem. Este post vai ser assim, pois vai falar da Madeira e de Alberto João Jardim, assunto sobre o qual já se disse e já se escreveu tanto que se tornou real e virtualmente impossível inovar grande coisa. Além disso, episódio algum pode surpreender e criar uma situação sobre a qual poderemos lançar um novo olhar, pois nada do que possa ocorrer espantará quem não tenha acordado agora de um coma prolongado ou chegado de uma estadia em Marte.

                        Li e concordo parcialmente com um post do Daniel Oliveira saído no Arrastão («Responsabilizar criminalmente Jardim pela dívida é desresponsabilizar a democracia»). Penso também que a situação madeirense não é da responsabilidade única da clique partidária instalada na ilha ou dos seus mansos patronos (e patrocinadores) de Lisboa, implicando igualmente uma legitimidade democrática que corresponsabiliza a larga maioria do eleitorado regional. Aceito ainda que em determinadas circunstâncias – e muito em particular nas atuais – reeleger o arruaceiro da Quinta Vigia converte os eleitores da Madeira em «cúmplices de um crime.» Que face aos dados esmagadores dos quais dispomos agora, confirmar nas urnas a continuidade do primeiro responsável pela prática continuada de um crime público altamente doloso é partilhar com ele a responsabilidade pelos seus atos e pelas pesadas consequências que transportam consigo.

                        Só que, em parte porque conheço razoavelmente a Madeira e observo os madeirenses para além do que o fazem os continentais-«cubanos» vulgares de Lineu – nos últimos trinta anos, por razões familiares, tenho conservado uma intensa ligação à ilha que me permite ter dela e dos seus habitantes uma mais completa perspetiva de insider –, tenho uma perceção particularmente aguda do modo como as condições objetivas em que decorre a vida social e política do arquipélago impossibilitam a compreensão, pela larga maioria dos seus moradores, desse grau de gravidade e de cumplicidade. As razões são múltiplas e por isso limito-me a anotar as mais óbvias. (mais…)

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                          Frases inquietantes (5)

                          O cowboy

                          «Ontem eu reparava no sorriso das vacas, estavam satisfeitíssimas olhando para o pasto que começava a ficar verdejante.» (Aníbal Cavaco Silva, em Santa Cruz da Graciosa, Açores, 21 de Outubro de 2011)

                          «Fiquei surpreendidíssimo por ver como as vacas avançavam, uma atrás das outras, se encostavam ao robô, e se sentiam deliciadas, enquanto ele, durante cerca de seis, sete, minutos, realizava a ordenha.» (Idem na Agromancelos, Amarante, 3 de Novembro de 2008)

                            Atualidade, Recortes

                            O mundo compósito de M. M.

                            Marshall McLuhan

                            Na crónica saída ontem no suplemento Atual, Pedro Mexia adianta um conjunto de reflexões e de dados sobre a personalidade de Marshall McLuhan (1911-80) que eu desconhecia. Sobre como alguém reconhecido mundialmente, ao longo de décadas, ou pelo menos desde a publicação em 1962 da Galáxia de Gutenberg, como o profeta primevo e maior da tecnologia aplicada à comunicação eletrónica, era na verdade um homem «antigo, conservador, católico devoto, puritano, distante». Conheço de alguma forma este tipo de mal-entendido, determinado por quem tem dificuldade em aceitar a complexidade do humano, das escolhas e das formas de vida combinadas de um modo não linear ou imprevisível. Cedo comecei a interessar-me por computadores e pela sua interação em rede. Fui pedindo emprestados ou comprando revistas e manuais, fiz alguns cursos (no mais recuado, em 1976, ainda aprendi linguagem Cobol), depois comecei a interagir com outras pessoas, na era pré-Internet, através das chamadas BBS. Por essa altura comprei o primeiro PC, mais tarde um modem lento e ruidoso, uma primeira conta de acesso à Internet (salvo erro, em 1994, com tráfego pago ao bit), depois um portátil, a seguir um primeiro PDA, um scanner manual, e por aí afora, quase sempre penetrando em tecnologia usada apenas por algumas orlas e à qual, por interesse e opção que impunha sacrifícios económicos, lá fui aderindo.

                            Curiosamente, esta foi, durante perto de duas décadas, uma atitude bastante incompreendida, vista por muitas das pessoas com as quais me ia cruzando, algumas delas até, por estranho que pareça, com conhecimentos desenvolvidos em áreas do saber informático, como uma excentricidade, uma esquisitice praticada com laivos de exibicionismo, uma modernice perigosa, incomodativa ou condenada ao insucesso para a qual nem valeria a pena olhar mais do que três segundos. E no entanto sempre o fiz por curiosidade e interesse, genuíno julgo, pela mudança das coisas. Jamais como forma de rejeição do mundo tátil no qual nascera e crescera. O mundo dos livros em papel, dos recortes de jornais, dos cadernos de Almaço, dos dossiês em cartão pardo, das canetas de aparo, dos lápis de cores, da cola Peligon e da tinta Pelikan, das máquinas de escrever, das caixas de sapatos servindo de ficheiros, do gosto pelos prazeres antigos, associados à escrita, à leitura e a uma aproximação ao conhecimento intemporal que ainda conservo. Contra a imposição do «ou/ou» ou a rejeição do «nem/nem», acredito pois que vale a pena preferir o cumulativo «e/e». Parece-me mais completo e próximo das realidades compósitas e emaranhadas, de transição veloz e sempre problemática, que vamos atravessando na nossa nave tripulada e que McLuhan, do silêncio do seu gabinete escuro e de austera mobília, foi capaz de intuir e de projetar.

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                              O Queer Lisboa e Israel

                              lbgtisrael

                              O mínimo que se pode dizer da decisão da organização do Queer Lisboa 15, o festival de cinema gay e lésbico já a decorrer neste fim de semana, no sentido de, por pressão do movimento Panteras Rosa e do Comité de Solidariedade para com a Palestina, se recusar a ter entre os apoiantes a Embaixada de Israel – à qual, como é óbvio, havia previamente pedido o apoio que agora declinou – é que se trata de um gesto deplorável. Por certo que um eventual apoio das embaixadas da França ou da Itália, cujos governantes não são propriamente defensores das causas dos povos ou das minorias, não seria posto em causa. E sabendo que, por muito que a política externa e interna israelita seja agressiva e injusta, e (sublinhe-se) neste momento é-o de facto, tal não invalida que Israel seja um país onde se realizam eleições livres, onde se exerce uma mais do que razoável liberdade de expressão, onde os movimentos LBGT são fortes e livres de atuarem, e onde existe até uma oposição cada vez mais visível que se bate por uma sociedade mais justa e multiétnica. Coisa que, como é sabido, nem mesmo após as recentes «primaveras árabes» está minimamente garantido na generalidade dos Estados vizinhos, onde gays e lésbicas são brutalmente perseguidos pelo facto de o serem. A única explicação é, a meu ver, um não-assumido antissemitismo (e antissionismo) que culpa Israel por existir. Não-assumido, repito, o que piora as coisas.

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                                Vamos brincar à leitura

                                O leitor

                                Desconfio muito da maioria dos estudos que atestam o crescente interesse dos jovens portugueses pela leitura. Dando de barato que em regra falamos de indivíduos que têm entre 15 e 24 anos, é uma evidência que o grau de relacionamento com o ato de ler se tem vindo a ampliar, quanto mais não seja porque têm vindo também a crescer em volume e distribuição geográfica os espaços e os suportes que impõem a presença do texto, da palavra escrita, no quotidiano das pessoas. Jovens ou não, claro. Admito até que a perceção do valor social da leitura tenha crescido em ligação com o alargamento da escolaridade e o aumento do número de cidadãos e de cidadãs com maior formação académica. Mas já questiono o crescimento de um padrão de leitura sólido e que integre de facto a formação e os hábitos dessas pessoas.

                                O problema, a meu ver, advém desses estudos se fundarem em inquéritos com perguntas vagas sobre se o inquirido lê ou não, se acha ou não importante que o faça, se planeia ou não fazê-lo no futuro. Brincando um pouco, diria que se me perguntarem se é útil ou se gostaria de fazer uma viagem pela Antártida para ver os pinguins e observar um continente a derreter-se, eu afirmarei que sim, apesar de não ter a menor intenção de ir amanhã de manhã marcar a viagem e comprar um anorak. O que me parece é que este tipo de estudos requer, para ser válido, uma observação ampla e continuada, e a materialização de respostas mais objetivas a perguntas como «que géneros lê e em que percentagem?», «quais os livros que leu de facto no último ano?», «lê-os na totalidade ou só parcialmente?», «com que frequência desiste a meio da leitura de um livro?», e outras que com mais algum esforço decerto ocorreriam. (mais…)

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                                  11/9, dez anos depois

                                  O impacto histórico e político do 11/9 começou a ser averiguado logo no dia seguinte ao da combustão das Torres Gémeas. Como ocorre com toda a tentativa empírica de contextualização de acontecimentos recentes, foi acompanhado de observações argutas, interpretações cautelosas ou afirmações disparatadas. Nesta última direção, poucas semanas depois, em Amesterdão, Norman Mailer erguia a voz perante uma audiência arrebatada: «Tudo o que está errado na América conduziu à construção de uma Torre de Babel que, consequentemente, tinha de ser destruída». Desqualificou aliás o ataque, afirmando que este devia principalmente «ser visto como uma crítica». Van Houcke, um jornalista holandês, acrescentou então: «Os sem-abrigo, os destituídos de poder, os aterrorizados, as minorias, estão a usar o terror para ripostar.» O antiamericanismo mais cego, esse não tinha quaisquer dúvidas sobre quem eram os verdadeiros culpados: «estavam mesmo a pedi-las!»

                                  Com o tempo, no entanto, as explicações foram-se tornando menos precipitadas e simplistas, menos dependentes de fortes convicções e rancores de longa data, construindo-se gradualmente um legado documental e interpretativo rico e diversificado que é, para a década que se seguiu a um facto histórico de tal alcance, dos mais significativos que se conhecem. Em todo o caso, a generalidade das observações foi qualificando sempre o «choque» Ocidente-Islão como inevitável e potencialmente perigoso para a subsistência da paz, tendendo cada um dos «lados», apesar da diversidade das análises, a expurgar o outro da verdade e da razão. A imagem de uma «rua árabe» barbuda e ameaçadora, fundada no ódio e na violência, passou a dominar os média ocidentais, mas, de uma forma só aparentemente paradoxal, passou a dominar também a comunicação, rigidamente controlada pelas autoridades políticas e religiosas, que se fazia ouvir dentro dos próprios Estados islâmicos. E assim nos fomos mantendo até que, em dezembro de 2010, na Tunísia, a Revolução de Jasmim iniciou o rápido processo de transformação do mundo árabe com o qual convivemos.

                                  A partir desse mês, o islamismo mais intransigente e violento deixou de ser vivido e apresentado como uma tendência dominante e que não podia ser evitada. Como nota David Remnick na New Yorker desta semana, os acontecimentos no Norte de África e no Médio Oriente têm revelado a construção de uma alternativa poderosa aos governos ultra-autoritários e ao terror islamita. Há ainda pela frente enormes lutas a travar – lutas entre a modernidade, a democracia representativa, o fundamentalismo religioso, o tribalismo, aquilo que resta dos velhos regimes ou dos sonhos ainda mais antigos do «nacionalismo árabe» e do «socialismo islâmico» – e ninguém pode saber o que vai acontecer, mas o desaparecimento dos regimes de Ali, Mubarak ou Khadafi, talvez mesmo, num prazo um pouco mais dilatado, os de Assad, dos mullahs do Irão, ou mesmo da realeza saudita, deixa no ar um perfume de abertura, diversidade e esperança. Neste sentido, a visão catastrófica e sanguinária do papel do Islão aberta com o 11/9 tem vindo a ser pulverizada. Esta é, com toda a certeza, uma viragem de página numa História que nos habituámos a ver em movimento cada vez mais acelerado. Por isso o atual cenário é o melhor que poderíamos esperar para evocar de forma minimamente positiva o que de terrível aconteceu há dez anos.

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                                    Ação! (para o bem e para o mal)

                                    Ainda não falei da decisão de passar a servir-me, neste blogue como na vida lá fora, do Acordo Ortográfico da língua portuguesa em vigor. Sem referir argumentos utilizados no debate longo e por vezes exaltado que envolveu a sua aprovação, invocando razões para se ser contra ou a favor às quais fui algumas das vezes igualmente sensível, poderia explicar-me com as imposições que me chegam de fora: documentos oficiais que tenho de redigir e assinar nos quais a partir de 1 de janeiro de 2012 me é exigida a aplicação da nova norma, por exemplo, ou as recomendações de redações e editoras que pedem com insistência os originais num português atualizado. Noutra direção, poderia dizer que era para me revelar um sujeito moderno e desperto para os constantes upgrades do real. Mas isto apenas não chegaria para me levar a mudar a medida da escrita da qual me sirvo há meio século. Acrescento por isso duas outras razões.

                                    A primeira prende-se com a consciência muito aguda que tenho da volatilidade das línguas, em particular daquela que é a minha. Passei cerca de quinze anos a ler textos manuscritos e impressos dos séculos XVI, XVII e XVIII, deparando-me com um nível de metamorfose e indecisão tão grande que muitas vezes cheguei a encontrar num só livro publicado a mesma palavra grafada de três diferentes maneiras. A partir dessa altura nunca mais fui o mesmo na aferição de critérios demasiados fixos, ou fixistas, para a definição de regras destinadas a domar um «babelismo» impeditivo da comunicação entre falantes de divergentes geografias, ambientes e gerações. Já o segundo motivo é de ordem puramente prática: como estou numa altura do calendário pessoal na qual é bastante fácil o cérebro experimentar alguma dificuldade em carburar com a mesma agilidade relativa do passado, é sempre bom ginasticá-lo, refrescar-lhe o tónus, combatendo os automatismos antigos e adotando outros novos. Para mim são razões de sobra para passar à ação.

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