Author Archives: Rui Bebiano

A barba de Harry Potter

Os deuses vivem uma vida muito deles, com a qual nós, comuns mortais, nada temos a ver. Importam-nos sempre as suas intervenções pontuais, coléricas ou benfazejas. Fora desses momentos, porém, nada queremos saber sobre a forma como trabalham, comem e ocupam os tempos livres. Aliás, estão tão distantes que seja o que for que possam fazer apenas podemos aceitá-lo. Mesmo quando se trata de actos da maior brutalidade ou despudor. Mas tal já não acontece com os semideuses. Poucos admitirão, sem se mostrarem contrariados, que um sátiro, protector dos pastores e dos rebanhos, se passe a comportar como um lobo. Ou que uma ninfa estabeleça a sua residência num bairro movimentado e passeie entre nós de headphones nos ouvidos (eu já vi uma, mas deveria tratar-se de uma alucinação). Semideuses, porém, são também aqueles seres extraordinários, homens ou mulheres, que pelos seus feitos, ou pelo seu talento, se destacam do comum dos mortais. E então com estes somos particularmente severos.

Não me surpreende, por isso, que pais dos fãs de Daniel Radcliffe, o actor que interpreta no cinema a personagem de Harry Potter, se mostrem agora publicamente escandalizados com o facto deste ter aparecido, na fotografia de promoção de uma peça de teatro na qual participa, abraçado a uma outra actriz, ambos sem roupa da cintura para cima. Daniel é um semideus, e os semideuses não podem anular os traços que os definiram como tal. Deveria, pois, na opinião dos progenitores dos pequenos cinéfilos, permanecer para sempre criança e assexuado. Há uns bons vinte anos atrás, algo de idêntico se passou, quando Julie Andrews, a noviça Maria do patético The Sound of Music (Música no Coração), mostrou os seios a todo o universo no filme S.O.B., deixando prostrados de pasmo e dor aqueles que a viam como preceptora exemplar – e irrepreensível – dos sete filhos do capitão Von Trapp. É sempre difícil aceitar que as figuras que endeusamos são, em larga medida, um produto da nossa imaginação e das nossas egoístas expectativas. E que seguirão o seu próprio caminho enquanto nós permanecemos naquele que escolhemos. Demasiado humanos para deixarmos de precisar do divino.

    Devaneios

    Burberry fields

    Burberry
    Não entendo o motivo pelo qual a óbvia intervenção militante da Opus Dei na actual campanha para o referendo sobre a despenalização da IVG tem sido omitida pela generalidade dos comentadores. Não existem provas evidentes? Bem sei que não servem de prova de tal ligação os rostos sinistros e o aspecto geral triste, conservador e vagamente aristocrático dos Médicos pela Vida – como não provam uma relação fraternal com a Burberry as cuidadíssimas toilettes de muitas das senhoras e das jovens do Não – mas porque motivo não poderemos especular sobre a nossa própria ingenuidade?

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      Palito à bolonhesa

      Na sequência das alterações nos cursos introduzidas pelo Processo de Bolonha, o Diário As Beiras, de Coimbra, reporta a preocupação de alguns sectores da academia com a necessidade de reestruturar o código da praxe. Perante a mudança e a inovação – para o bem e para o mal, mas essa é outra questão – há pois que refrear os ânimos e reconquistar a quietude. A confusão instala-se: «serão criados novos títulos com termos antigos que serão recuperados». Os problemas sucedem-se: os estudantes quartanistas não podem seguir no cortejo da Queima das Fitas porque vão deixar de existir estudantes quartanistas. O mapa dos festejos académicos será voltado do avesso. Mas não há que entrar em pânico, pois, de acordo com o dux veteranorum, existe «um grupo de trabalho» a congeminar uma solução. Definitiva, presumo. E esse grupo tem a que se agarrar: «Estamos a investigar o Palito Métrico, para saber como é que antigamente se designavam os estudantes em termos hierárquicos». Calculo que a investigação seja demorada, pois o Palito Métrico – destacado da mais livre Macarronea Latino-Portugueza – tem, nas edições que conheço, 14 (a 1ª, de 1746) ou 7 páginas (numa mais serôdia, de 1965), com diferenças de conteúdo entre si. Nestas coisas, porém, não há tempo que chegue, pois é preciso andar para a frente, para trás, aos triângulos e aos círculos. Como em qualquer investigação, bem entendido.

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        «Rute» e a banalização do mal

        Rute

        Compreendo a posição de Eduardo Pitta relativa ao «caso Rute» mas não consigo concordar inteiramente com ela. Refiro-me, como parte dos leitores saberá, ao artifício «wellesiano» utilizado por Luís Carmelo para ampliar o impacto da divulgação de E Deus Pegou-me Pela Cintura, o seu último romance. Começo por dizer que não tenho quaisquer preconceitos a respeito da existência de «temas tabus», sejam eles considerados no campo da criação artística e literária como nos da abordagem jornalística, académica ou qualquer uma outra. Não estou, porém, a falar do romance: refiro-me sim à estratégia utilizada para o divulgar. Mas mesmo nesta direcção não acuso LC, como já foi feito, de colaborar «na degradação da imagem pública da blogosfera», e, menos ainda, de se envolver num assunto «com o qual não se brinca». Tal como respeito a opção criativa do autor, e, neste caso, de alguma forma aceito também a crítica de EP aqueles que tudo levam a sério (o que não é o mesmo que levar tudo a peito). «Não saber rir, não ser capaz de rir, foi a herança que o Velho nos deixou»: não poderia concordar mais com isto.

        Mas devo confessar que tenho sérias dúvidas sobre se uma brincadeira envolvendo um tipo de drama que permanece muito presente no nosso quotidiano – neste caso, o rapto, levado a cabo por por um grupo de islamitas, de Rute, uma jornalista portuguesa a trabalhar no Líbano, associado ao silenciamento do assunto por parte da comunicação social e à «descoberta» do mesmo providenciada pelo universo atento dos blogues lusitanos – não contribuirá para uma certa «banalização do mal», transformando, com consequências imprevisíveis, um drama possível num episódio trivial. Um pouco como acontece com os hipocondríacos a quem ninguém dará importância no dia do AVC definitivo. Aplicaria este juízo a um exercício feito em 1945 sobre o campo de Auschwitz, como a outro feito em 1973 sobre o massacre de Wiriamu. Ou ainda a um outro, concebido em 2007, sobre técnicas terroristas com as quais somos actualmente forçados a conviver. Trata-se de uma questão pessoal de gosto e de sensibilidade. Provavelmente, apenas provavelmente, também de bom senso. De qualquer forma, este alarido já tirou a espoleta à bomba de fabrico caseiro.

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          A toalha de linóleo

          Parece-me inegável a forma como, tomando a generalidade dos espectadores por parvos, a RTP tem vindo a transformar as suas «reportagens» diárias sobre o referendo, supostamente imparciais, em sessões de propaganda insidiosa do não. As estratégias são diversas, sendo a mais comum a subversão da própria questão a referendar. É preciso relembrar que ninguém nos vai perguntar no dia 11 de Fevereiro se somos taxativamente contra ou inequivocamente «a favor do aborto». Mas a RTP mantém o equívoco.

          Outra das manobras consiste em utilizar de forma parcial o poder da imagem. Como aconteceu com os bonequinhos em plástico, prefigurando um feto com 10 semanas de vida, que uma das piedosas organizações favorecedoras do negócio da Clínica dos Arcos tratou de mostrar ao país num assomo de sadismo e mau gosto. Ou com a repetição da imagem de uma daquelas cadeiras – com óbvio mau aspecto, como tem qualquer móvel ou utensílio utilizado em cirurgia – na qual, nas melhores condições possíveis, é possível interromper voluntariamente uma gravidez. Porque não mostram as mesas de cozinha cobertas com uma toalha de linóleo ou com folhas de jornal utilizadas vulgarmente em abortos clandestinos? Provavelmente, será essa a linguagem que entendem muitas das pessoas que irão «deitar o voto». Sim, custa-me dizê-lo, mas talvez a campanha pelo sim o deva fazer. Chama-se a isso combater o inimigo no seu próprio campo. Neste caso, vale a pena.

            Opinião

            Sim – um bom exemplo

            «Todos os participantes neste blogue concordam com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado. E votarão “sim” no referendo de 11 de Fevereiro. Os argumentos de cada um são da sua exclusiva responsabilidade e não vinculam os restantes participantes.» Um bom exemplo, e um exemplo raro entre nós, daquilo que pode a recusa civilizada do sectarismo. Aqui por uma causa justa e absolutamente prioritária.

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              Pigarrear

              tosse colectiva
              Gosto de escrever sobre irrelevâncias. Mas, desta vez, prefiro abordar um assunto sério. O tema ocorreu-me quando lia O Anjo Pornográfico, a extraordinária biografia do extraordinário Nelson Rodrigues, publicada em 1992 por Ruy Castro e agora reeditada pela Companhia das Letras. Fala o autor, a dado passo, da chegada da família de Nelson ao Rio, provinda do Recife, e do ambiente com o qual esta deparou na Aldeia Campista, distante subúrbio da cidade que então ainda se não autoproclamava «maravilhosa». Estamos em 1919:

              «Era também uma vizinhança que tossia em grupo. Não que fosse uma comunidade de tísicos. O brasileiro é que tossia muito naquele tempo. Qualquer agrupamento numa sala era um pânico. Começava por um solitário pigarro. alguém aderia. Logo se juntavam as tosses secas, os chiados de asma, os assovios de bronquites e, num instante, a sala inteira era um festival de expectorações. Por isto, em todas as salas, em lugar de honra, entronizava-se a escarradeira. Uma escarradeira “Hygea”, branca, de louça, com o caule que se abria em lírio ou copo-de-leite. No resto, a vida era simples.»

              À data, convirá que se saiba, eu não tinha nascido ainda. Digamos, porém, que quarenta anos depois já por cá andava. Ora minha memória recua a um tempo no qual ainda por aqui sobrevivia o hábito, ao que se vê transatlântico, de tossir em sociedade. Em casa ou na rua, nas missas e nas procissões, nos velórios também, como no teatro, no cinema, nos corredores e antecâmaras dos edifícios públicos ou privados, pigarreava-se muito mais do que hoje. Ao ponto de as repartições do Estado, como os cafés e até alguns restaurantes, possuírem, em regra, um vaso de porcelana ou de ferro esmaltado idêntico aquele que Castro descreve. Perguntei a pessoas em condições de partilharem a minha memória se o confirmavam: «É verdade, nunca tinha pensado nisso! Mas lembro-me, sim, daqueles momentos de convulsão incontrolável!»

              Se retirarmos os espectáculos de ópera e os concertos para quartetos de cordas, ou as tomadas de posse, agora já em momento algum se encontram com facilidade acessos colectivos dessa natureza. Especulando um pouco, que é para isso que aqui estamos: presumo que se trataria de uma moda, de uma «prática costumeira», como dizia alguém. Ou então de uma forma subliminar de dar a volta ao apertado controlo social e às limitações impostas pela censura. Em democracia, felizmente, só pigarreia quem precisa. E quando lhe apetece. Ou pelo menos deveria ser assim.

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                Xarope Carla

                Carla Bruni é uma mulher bonita. Bom, não o será para todos os gostos, mas dará certamente nas vistas onde quer que possa dar quatro passos seguidos, sentando-se de seguida e cruzando as pernas. Faz parte daquela franja do mundo das top-model que, num estalido de dedos, passou do veludo carmesim para as capas de revista. Agora que aquela voz e aquela música são débeis e repetitivos, não tenho a menor dúvida. Eu quero lá saber da fotogenia da mulher, que ela seja amiga do Paco Rabane e do John Galliano, que se tenha envolvido com o Mick Jagger ou o Kevin Costner, que agora cantarole textos de Wiliam Butler Yeats, Emily Dickinson ou Dorothy Parker! Tal como o anterior, o álbum No Promises é um bocejo e uma porcaria. E não digam, honra lhe seja feita, que ela não nos avisou: o aviso está mesmo ali, no título.

                  Coentro, cúrcuma e tal

                  Nem seria preciso dizer, mas o presidente confessou a uma jornalista que não gosta da comida indiana. Com os seus sabores intensos e exorbitantes temperos deixam-lhe a língua em chamas, a testa liquefeita, o pescoço afogueado. E um presidente não deve. Ninguém o pode forçar ao suplício, naturalmente, embora, por dever de representação de um povo de antepassados façanhudos e epopeicos, lhe ficasse bem provar um pouco daquilo que, pela medida grossa, decerto Almeidas e Albuquerques provaram. E a Scientific American até acaba de revelar que o caril – como se sabe, uma mistura destrambelhada de gengibre, coentro, cúrcuma, noz moscada, pimenta-do-reino, cravo-da-índia, açafrão e eu sei lá o quê mais – pode produzir efeitos terapêuticos no tratamento da doença de Alzheimer, do cancro e de outras maleitas igualmente ruins. Mas uma vida inteira de comedimento e de morigeração deixa as suas marcas no que toca ao confronto com os excessos. Há, pois, que soerguer as virtudes de um arroz modesto e imaculado. De uma bolachinha de água e sal. De lusíadas sem canto nono, que apenas desorbitam com uma fatia de bolo-rei.

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                    Da resistência das mulheres-leitoras

                    leitora

                    A deixa de Alberto Manguel tomada aqui como «frase do mês» («Ler será, no futuro, um acto de rebeldia») serviu de mote para um post do Rui Ângelo Araújo que me agrada desde logo pelo título. «Literatura, mamas e rabos» é assunto que me levanta sempre a moral, e verificar que não me encontro sozinho nos gostos mais profundos – a inveja será mesmo o único dos sete pecados mortais que não pratico – é coisa que sinceramente me apraz.

                    Comentar a frase de Manguel pode ser um exercício complicado. Até porque – não está ali mas está em tudo aquilo que o argentino diz ou escreve (e também na entrevista ao El País de sábado da qual a retirei) – ele se reporta a um tipo de leitura considerada pelo ex-guru do digital Nicholas Negroponte, há mais ou menos uma década atrás, como exercida no domínio dos «átomos». Em papel. Na forma de livro, de revista ou jornal. Será pois no território de sobrevivência deste género tendencialmente minoritário de leitura que Manguel parece conceber a constituição gradual de ilhotas de resistentes. Sobranceiros, eventualmente conservadores, estranhíssimos sem dúvida alguma, mas resistentes.

                    Mas o post dos Canhões de Navarone parte daqui para um outro assunto que fez soar em mim uma campainha. Para o poder referir, vou-me travestir por brevíssimos instantes de um daqueles simpáticos jovens que, a troco de alguns euros, efectua inquéritos para sondagens públicas. Pela parte do mundo que vou cruzando, e da qual vou mentalmente procurando anotar as práticas e costumes, sou levado também a concluir que as mulheres lêem mais que os homens. Ou melhor, lêem muito mais que os homens. Não sei se será por uma questão de sensibilidade, de distribuição mais racional dos horários, de inteligência, de concentração nas coisas essenciais, mas parece-me ser assim. E assim sendo, se o cenário se não alterar, um papel decisivo na condução da futura resistência dos humanos-leitores estará necessariamente nas mãos delas. Parece-me um belíssimo cenário e, se puder, cá estarei, junto com as minhas dioptrias, para nele partilhar a resistente existência.

                      Devaneios

                      Duas noites com Scorsese

                      De Sica Rossellini Fellini

                      A tecnologia do digital permite agora um retorno sistemático à memória do cinema. Pelas mãos de Martin Scorsese, uma pequena caixa com quatro dvd que acaba de ser editada conduz-nos assim através de duas viagens por uma época decisiva da história dos cinemas americano e italiano. Aquela que mais indiscutivelmente marcou, ainda que apenas como um eco, a formação essencial de grande parte dos realizadores contemporâneos, bem como a sensibilidade e a «recordação fílmica» de sucessivas gerações dos amantes da arte.

                      A possibilidade de uma recuperação dos filmes dos anos cinquenta é, aliás, tanto mais importante quanto a televisão quase deixou de os passar. Hoje, a generalidade dos canais interessa-se mais por filmes dotados de uma visualidade capaz de se impor de maneira imediata a um público nivelado por baixo, e isso significa, desde logo, o recurso incontornável à cor, a argumentos providos de «acção», a um erotismo contemporâneo e a todo o tipo de efeitos especiais. O entretenimento comanda a programação do cinema televisivo, deixando implícito que quem não gostar deverá procurar alternativas por sua própria conta e risco.

                      Estes filmes apontam, porém, numa outra direcção. Enquanto uma parte do público revê neles imagens e enredos que para si serão matriciais, a outra pode descobrir por seu intermédio um universo que actualmente se encontra quase compulsivamente afastado das salas de projecção. É esse o exercício para o qual nos convida Scorsese, colocado aqui na posição do rapaz italo-americano de classe média-baixa que, pela década de 1950, na sua casa familiar de Little Italy, descobria, através do pequeno monitor de cantos curvos de uma televisão a preto e branco – por vezes em cópias cortadas e de baixa qualidade, inevitavelmente dobradas em inglês – a magia e a veemência dramática do grande cinema.

                      A caixa transporta dois dvd duplos: o primeiro deles com Uma Viagem com Martin Scorsese pelo Cinema Americano (1995), que ainda não pude ver, e o outro A Minha Viagem a Itália (1999), que me ocupou em duas intensas noites. A partir do fundador Roma città aperta (1945), de Roberto Rossellini, o autor de Taxi Driver percorre ali algumas das referências do cinema italiano do pós-guerra e o seu imediato desenvolvimento, centrado nas diversas fases dessa revolução neorealista que, tanto no domínio dos processos da realização quanto no que respeita ao impacto junto da sensibilidade do espectador, redefiniria para sempre a arte do cinema. Um trajecto de revisitação sentimental, através de filmes-documento, considerados centrais nas obras do mesmo Rossellini, de Vittorio De Sica, de Luchino Visconti, de Federico Fellini ou de Michelangelo Antonioni, que nos ensinam e, ao mesmo tempo, nos deixam algo ébrios de uma beleza antiga mas muito bem conservada. Rendidos, durante 246 minutos, ao puro prazer de ver contar histórias – e de ver correr a história – tendo a câmara por confidente.

                      Adenda – Como é sabido, o bom conhecimento de uma língua não faz um bom tradutor. Em Portugal, a tradução de livros tem vindo a melhorar nos últimos anos, mas a televisão e o cinema continuam a aceitar tradutores que, por vezes, não possuem um background cultural mínimo para a tarefa que lhes foi destinada. Neste caso, o trabalho executado parece bastante razoável, mas aqui e ali tropeçamos com palavras em relação às quais teria sido conveniente o recurso a algumas leituras. Exemplo: os omnipresentes partigiani (plural de partigiano) repetidamente convertidos em partidários! Além do mais, incomoda.

                      Publicado também em Passado/Presente

                        Cinema, Olhares

                        Da sabedoria 7

                        Schopenhauer

                        Schopenhauer, 1788–1860 (A Arte de Ser Feliz)

                        «A nossa felicidade depende sempre daquilo que somos, da nossa individualidade, embora, na maioria das vezes, não tomemos em linha de conta senão o nosso destino e aquilo que possuímos. O destino pode ir-se melhorando, e a frugalidade não reclama dele grande coisa: mas um idiota não deixa de ser um idiota e um indivíduo grosseiro permanece sempre um indivíduo grosseiro, ainda que se veja rodeado de belas mulheres. Eis o motivo pelo qual, segundo Goethe, “a felicidade suprema é a personalidade”.

                        Para falar com propriedade, aquilo que para ele é essencial, a verdadeira existência do homem, consiste manifestamente naquilo que acontece no seu interior, e que é o resultado daquilo que ele sente, vê ou pensa. Dentro do mesmo ambiente, cada um vive num mundo à parte, e os mesmos acontecimentos exteriores afectam cada um de maneira particular. A diferença que nasce destas disposições íntimas é maior do que aquela que as circunstâncias exteriores estabelecem entre diferentes seres humanos.

                        De resto, de maneira imediata, cada um deve preocupar-se principalmente com as suas representações, as suas sensações, a expressão da sua vontade; as coisas exteriores não têm influência senão na medida em que as estimulam. Cada um vive, efectivamente, através das suas disposições íntimas, sendo elas que tornam a sua vida feliz ou infeliz.»

                        Conclui-se aqui a tradução de alguns dos «Dez Textos Fundamentais da Sabedoria», enunciados no dossier «La Sagesse» publicado no Le Monde des Religions.

                          Recortes

                          A Gestão segundo T.S.

                          walking
                          Em tempo de crise generalizada, resolvi meter alguma ordem nas finanças domésticas. Tal como muitos outros desajeitados em quaisquer assuntos que envolvam dinheiro, sempre tive o hábito de pôr imediatamente de parte os suplementos de economia dos jornais. Abri uma excepção para o Dia D, talvez por este conter uma secção sobre gadgets de informática e por ser escrito de forma simples, como convém ao leitor completamente leigo nas matérias versadas. Porém, procurando assumir uma nova atitude, resolvi numa destas manhãs olhar no quiosque para as publicações que tratam o dinheiro por tu. Reparei então na capa da Executive Digest, contendo a cara familiar da principal personagem de The Sopranos, com uma chamada de atenção para um livro no qual o boss mafioso de New Jersey surgiria como exemplo para algumas lições elementares de gestão.

                          Entrei na livraria mais próxima e procurei o livro. Afinal, o autor de A Gestão segundo Tony Soprano não era James Gandolfini, nem Tony himself, mas sim um tal Anthony Schneider, publicitário e fabricante de videogames. Pensando que estava a dar os primeiros passos na direcção de uma boa gestão do meu dinheiro, resolvi não comprar o livro e lê-lo ali mesmo, apenas com o dispêndio de algum tempo livre e a complacência das empregadas (e poupando 12 euros e 48 cêntimos). A espécie de leitura demorou uma meia-hora. Claro que não li tudo, mas julgo que percebi a ideia: propor, com recurso a numerosos exemplos práticos, a adequação das práticas de gestão de uma associação de criminosos à direcção de uma qualquer actividade empresarial lucrativa. Afinal, a Gestão é uma Ciência, com direito a publicações especializadas, prestigiadas escolas superiores e professores catedráticos de obra assaz consagrada, pelo que deve situar-se acima de qualquer parcialidade ou suspeita.

                          Acabei por copiar um parágrafo, que me pareceu resumir o tom geral da obra:

                          «Tony Soprano é um líder eficaz porque cada faceta do seu estilo de liderança responde às necessidades do seu negócio, responde aos desafios postos pelos concorrentes e reflecte o modo como a sua gente trabalha. Como o seu ambiente de negócios está em constante mutação, Tony é rápido, flexível e directo. Como a sua empresa se estende por diversas áreas e repousa em parcerias complexas, é decisivo e rápido a implementar mudanças. Como o seu negócio tem tudo a ver [sic] com pessoas, ele valoriza a confiança, o respeito e a responsabilidade, e sabe como delegar. Como a sua indústria é difícil e os tempos são duros, tem uma visão clara da sua vida e do seu trabalho e pressiona os subordinados e os parceiros para tirar o melhor dessa visão. Como quer que a sua equipa tenha êxito, instila confiança e ama a sua gente. quando há acordos, negoceia rapidamente e bem. quando surgem conflitos, resolve-os. (…) A atitude de Tony Soprano é ideal para os negócios e a economia global de hoje.»

                          Fiquei pois a saber que para se ser um bom gestor não é necessário ter elevados princípios morais e é inteiramente proibido o exercício da franqueza. Aquilo que conta são os objectivos e, como se diz ultimamente a propósito de tudo e de nada, «as competências». Admitindo a ausência de jeito, desconfio que ainda não seja desta que me converto a uma mini-carreira de gestor.

                            A múmia

                            O Mausoléu de Lenine, onde habita o fundador da extinta União Soviética, foi reaberto hoje ao público, após 59 dias fechado para obras, informou Serguei Deviatov, porta-voz do Serviço Federal de Segurança do Kremlin. Em declarações à agência russa RIA Novosti, Deviatov informou que todos os trabalhos dos cientistas responsáveis pela múmia concluíram que o túmulo pode ser visitado novamente pelo público. O director do Centro de Tecnologias Biológicas e de Medicina da Rússia, Valeri Bikov, afirmou que a múmia do fundador do Estado soviético se encontra em perfeito estado de conservação. Segundo Bíkov, o trabalho dos cientistas «permitirá conservar o corpo de Lenine por um tempo indefinido». O culto do mórbido prevalece: o Museu Britânico terá de esperar.

                              Etc.

                              Calar-se de vez

                              calar-se
                              Em artigo no L’Espresso, Umberto Eco aborda o medo de falar, e até de rir, com o qual somos hoje confrontados. Lembra que «os tabus não são todos imputáveis aos fundamentalistas muçulmanos» – os quais, aliás, considera não brincarem em serviço no que toca à susceptibilidade –, tendo começado, antes da vaga desencadeada pelos islamitas radicais e aceite complacentemente pelos órfãos de causas do ocidente, «com a ideologia do politicamente correcto». Inspirada, como se sabe, por um sentimento de respeito para com o outro e para com todos, ela limita-nos agora na prática de um dos melhores exercícios para a aceitação da diferença. Refiro-me ao humor, aquele humor capaz de jogar com as peculiaridades, manifestas ou caricaturadas, de cada pessoa ou de cada grupo. Quem tem mais de trinta e cinco anos recordar-se-á, com toda a certeza, da forma desinibida como no princípio da década de 1980 os simpatizantes portugueses da Frelimo contavam «anedotas do Samora» de mesma maneira terna e cúmplice utilizada por um tanoeiro de Vila Pouca de Aguiar para contar «anedotas do Bocage». Hoje isso seria muito difícil sem conflitos e autocensura pelo meio. E nos EUA, o constrangimento chega ao ponto de não apenas se evitar contar piadas sobre negros, loiras, gays, lésbicas, judeus, muçulmanos ou deficientes, mas igualmente de cada um isentar de tais brincadeiras, nota ainda Eco, «escoceses, genoveses, belgas, bombeiros, varredores do lixo e esquimós» (ou inuit, para não ofender ninguém). Tratar tudo com gravidade – o que não significa, obviamente, levar tudo a sério – passa cada vez mais por medir as palavras, algumas vezes até ao limite do caricato, por desviar a conversa, omitir, ou simplesmente calar-se. Mesmo em questões de princípio, uma vez que, acima de tudo, importa nesta lógica não ferir com qualquer insinuação a condição ou os valores de quem não pensa como nós. Num mundo cada vez mais colorido pela variedade das culturas e pelas formas de mestiçagem, poderemos por um dia destes, paradoxalmente, ver-nos forçados a deixar de contar anedotas e a falar apenas de vacuidades (o tempo e o piso das estradas são temas seguros, mas já a comida, o sexo ou o desporto, não sei…). Ou então a calar-nos de vez, não vá um telemóvel – provido de gravador de voz ou de câmara de vídeo – tramar-nos bem tramados.

                                Opinião

                                Aceitar

                                A notícia podia ser igual a outras que periodicamente aparecem nos jornais. Num hospital do norte, uma troca de identidades desencadeara os rituais da morte na família errada, trazendo o luto e graves transtornos aos filhos de uma mulher que, afinal, ainda irá comemorar os 95 anos de vida. Tudo ficaria esclarecido pela intervenção do agente funerário entretanto contratado, mas, como vem sendo habitual, sem uma frase de explicação ou um pedido de desculpas da parte do hospital. Os familiares sentiram mas calaram: «Quem é pobre nunca tem razão e sei lá se ainda se vingam nela», dizia a filha à jornalista, «os pobres têm de comer e calar». Poderia ser a atitude típica dos filhos do salazarismo que dele herdaram sobretudo a mudez e a desprotecção. Parece-lhes preferível engolir em seco: «houve um senhor que se ofereceu para escrever o que se passou num livro amarelo, mas eu recusei-me a assinar», explica a mulher, «pois a gente nunca sabe quando vai voltar a precisar deles». Hoje sou capaz de entender os seus temores.

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                                  Bloco de notas

                                  Uma chamada de atenção para «Blogging, the nihilist impulse», um longo e excelente artigo do holandês Geert Lovink, teórico da comunicação, crítico e activista, publicado – em neerlandês, mas, descansem, também em inglês e com uma versão printable em pdf – no igualmente excelente e sempre estimulante Eurozine. E outra para as breves respostas do autor deste blogue ao inquérito acerca da blogosfera que tem vindo a ser revelado, no Miniscente, por Luís Carmelo.

                                    Etc.