Author Archives: Rui Bebiano

Limbo

A Igreja Católica acaba de eliminar o limbo – a morada das almas que, não tendo cometido pecado mortal, se encontram afastadas da presença de Deus – onde a tradição colocava todas as crianças que morriam sem antes haverem recebido o sacramento do baptismo. Considera agora que aquele reflectia «uma visão excessivamente restritiva da salvação». Em documento acabado de publicar, a Comissão Teológica Internacional, que depende da Congregação para a Doutrina da Fé (ex-Tribunal do Santo Ofício), declara-se finalmente convencida de que existem «sérias razões teológicas para crer que as crianças não baptizadas que morrem se salvarão e desfrutarão da visão de Deus». Resta saber se esta decisão terá efeitos retroactivos e para que servirão as instalações até agora ocupadas por aquele serviço.

    Etc.

    Let’s dance!

    Apenas 25 por cento dos trabalhadores da função pública poderão ter um nível de avaliação de desempenho relevante, dos quais cinco por cento poderão ter excelente. É esta a proposta de lei que desenha o novo Sistema Integrado da Avaliação de Desempenho da Administração Pública, aprovada hoje em conselho de ministros. Os restantes 75 por cento dos trabalhadores, naturalmente, não precisam esforçar-se muito: façam aquilo que fizerem, a «tal de excelência» será para eles uma eterna miragem. Talvez possa usar-se como mote para um fado, um vira minhoto, a letra de um rap.

      Apontamentos, Opinião

      Retrovisor

      Emigrantes

      Não, não se trata de um grupo de romenos, moldavos ou ucranianos emigrados que confraternizam numa noite de sábado. São portugueses, homens apenas, à espera de um comboio para França durante os nossos anos 60. A imagem – de grande utilidade para aqueles que padecem de amnésia – é retirada de Portugal, Um Retrato Social. Todos os episódios já emitidos desta notável série televisiva de António Barreto e Joana Pontes podem ser vistos, na íntegra, aqui mesmo.

        Apontamentos, História

        Format C:

        Coreia do Norte

        «Aqui É o Paraíso! foi a frase mais ouvida, durante toda a sua infância, pelo pequeno Hyok (…). A rádio, os altifalantes nas ruas, os próprios professores, repetem-na à saciedade: fora da Coreia do Norte, a vida é um inferno; mas lá, graças ao Grande Líder cujo culto é obrigatório, tudo corre da melhor forma.»

        Os visitantes ocidentais mais honestos e descomprometidos têm mencionado o cenário catastrófico e a brutal repressão que se encontram instalados naquele lado do planeta. Os raríssimos testemunhos que nos chegam daqueles que conseguiram fugir e descobrir que, afinal, existia vida para além do silêncio, da servidão e do universo concentracionário, têm relatado, anos após uma custosa aprendizagem dos rudimentos da liberdade, o processo de formatação integral dos cidadãos norte-coreanos. É um testemunho desta natureza que surge em «Aqui É o Paraíso!». Uma infância na Coreia do Norte (Ulisseia), revelado pelo escritor e jornalista Philippe Grangereau a partir das conversas tidas em Seul com o jovem Hyok Kang. Que carrega consigo um factor suplementar de sofrimento: quando o convidam para ir a escolas falar sobre a sua experiência às crianças sul-coreanas, elas não acreditam nele.

          Apontamentos, Novidades

          Blogues: (7) Oficina das palavras

          Teclado e Cha

          Um dos reparos que os puristas da língua fazem à escrita através da Internet centra-se no seu funcionamento como pólo agregador dos processos de destruição do seu próprio ideal de «pureza». A simplificação, a rapidez e a mistura de registos serão factores decisivos de contaminação. Mas se este risco existe – e fica por discutir se ele é necessariamente negativo – também é verdade que uma boa parte daquilo que de melhor e de mais original se tem escrito nos últimos tempos tem, pelo menos em Portugal, começado por aqui, só depois migrando para outros suportes. Incluindo-se nestas contas a prática de muitos jovens bloggers, capazes de treinar aqui a agilidade da escrita e a capacidade para pensarem de forma autónoma. Há poucos anos, por falta de meios e de um estímulo, a maioria deles jamais escreveria com regularidade. Reescrever, rasurar, remeter, são práticas partilhadas que podem aqui apurar a forma, a clareza, a fala.

          [De um conjunto de doze posts usados durante uma conversa sobre blogues que teve lugar na livraria Almedina-Estádio, Coimbra]

            Cibercultura, Etc.

            O DN bate na avó

            Senti hoje de manhã que alguém me agarrava pelos colarinhos e me dava duas bofetadas. Havia já alguns dias que não comprava o Diário de Notícias – o jornal que me ensinou a ler e a perceber que existiam mais mundos que o mundo – mas de facto não há como ver para acreditar. O velho e respeitado diário transformara-se, de um momento para o outro, numa espécie de tablóide, com os maiores destaques concedidos ao crime e à desgraça, notícias espremidas e sem tutano, colunas minguadas e colunistas que desapareceram, e, à traição, sem um aviso sequer aos seus fiéis leitores, o suplemento cultural 6a. completamente evaporado (e substituído por um anódino caderninho com a programação da televisão subordinada ao prometedor título «Mariana está a dar a volta à minha vida»). Chama-se a isto cuspir na sopa. Ou, talvez mais propriamente, bater na avó. Então adeusinho, DN, até qualquer dia!

            O Daniel Oliveira e, sob um ponto de vista particularmente preocupante, o Luís Januário, chamam também a atenção para este triste episódio.

              Apontamentos

              Manhãs de nevoeiro

              Sebastiao

              Em 1581, Filipe II (I de Portugal, como se ensinava em tempos na Primária), fez transladar para o Mosteiro dos Jerónimos um corpo que alegava ser o de D. Sebastião. O objectivo parece ter sido o de acabar com os rumores a propósito da sobrevivência do rei em Alcácer-Quibir e do seu eventual regresso na tentativa de resgatar o trono e a independência do reino. A incerteza, porém, manteve-se, alimentado esse «mito sebástico» que desde o início se fundou na crença do retorno messiânico de um salvífico «desejado». Em 1879, na História de Portugal, Oliveira Martins explicava-o assim: «A alma lusitana, ingénua na sua candidez – tombado agora por terra o edifício imperial (…) – rebentava em soluços, buscando no seio da natureza, onde se acolhia, uma salvação que não podia esperar mais das ideias, dos sistemas, dos heróis, nem dos reis em quem tinha confiado por dois séculos. A obra temerária dos homens caía por terra; e o povo, abandonado e perdido, abraçava-se à natureza, fazendo do lendário D. Sebastião um génio, um espírito, e da sua história um mito». Alguém, portanto, que transportava um anseio colectivo e vivia para aquém do seu desaparecimento físico.

              Bastará uma consulta apressada de parte da imensa bibliografia que sobre o assunto se produziu ao longo dos últimos cento e vinte anos para se perceber que o sebastianismo não cresceu da dúvida sobre a identificação do corpo, mas de algo muito mais profundo que já as profecias do Bandarra (anteriores, aliás, à vida de Sebastião) enunciavam como a crença num herói providencial capaz de interpretar o colectivo destino dos portugueses. Sabe-se como o próprio Salazar não escapou a esta aproximação (tal como Sidónio Pais, Sá Carneiro, e até Cavaco, na sua versão hardcore dos anos 80). Parece, porém, que dois investigadores, um português e um espanhol, defendem agora a abertura do túmulo do rei e a realização de análises às ossadas ali depositadas, para «acabar de vez com o mito sebastiânico» (sic). Talvez valha a pena lembrar, a quem possa dar uma importância exagerada a este tipo de iniciativa, que o que importa aqui não é o corpo – muito provavelmente sem qualquer gene dos Áustrias, pois só o contrário seria surpreendente – mas sim a manhã de nevoeiro.

                História

                O homem da mala

                Se comparadas com os testemunhos individuais, sempre mediados por aquilo que são hoje as pessoas que os revelam, perturbam bastante – talvez mais até a quem por dentro as viveu – as imagens do Portugal do tempo do outro senhor que António Barreto e Joana Pontes nos têm oferecido. Assim aconteceu, durante o episódio da noite passada, com as hesitações daquele homem, de gasto fato completo e chapéu de pano, a velha mala reforçada com um cordel, que tremia ao ver-se na obrigação de atravessar a rua movimentada da cidade grande. Que começava a travessia mas parava, voltando atrás, limpando o suor com um lenço, olhando desesperado como que a pedir auxílio. Naquele início da década de 1960, vindo de longe, provavelmente de uma aldeia ignorada dos mapas do asfalto, o homem tinha medo de Lisboa: dos automóveis que não abrandavam para o deixarem passar, das pessoas que não o saudavam, da incerteza de poder comer a hora certa e de encontrar a morada do conterrâneo que trazia escrita num pequeno rectângulo de papel que não sabia ler.

                  Apontamentos

                  Os 300 contra Ahmadinejad

                  Leonidas, rei de Esparta

                  Sempre preferi os reflexivos e polidos cidadãos atenienses aos seus vizinhos espartanos, descritos como eternamente guerreiros e brutais, e não será agora que vou mudar de opinião. Mas também não será por isso que, como o faz um crítico do Expresso, aceito que qualifique de «protofascista» o filme 300, de Zack Snyder – construído, a partir da BD de Frank Miller e Lynn Varley, e (naturalmente) do relato de Heródoto – sobre o combate desigual travado no desfiladeiro das Termópilas pelo rei Leónidas, acompanhado dos seus três centos de corajosos combatentes espartanos, contra as tropas numericamente muito superiores de Xerxes. Deve dizer-se que o filme idealiza bastante o lugar de Esparta no seu combate «pela liberdade» contra os ímpetos despóticos do rei dos persas. Que incorpora personagens mágicos, violentos ou grotescos que parecem caricaturas do bestiário de J. R. R. Tolkien. Que os medo-persas são de forma caricatural apresentados como chacais um tanto estúpidos, ora medonhos, ora efeminados, e sempre amorais. Mas, para além disso, trata-se de uma obra inteiramente concebida como um jogo de computador – até a coreografia dos duelos e das batalhas acompanha muito de perto a sua mecânica feita de impulsos – que me parece apenas mais uma daquelas experiências de cinema romanesco, «de aventuras», a tender, como milhares de outras, para o extremar da separação política entre heróis e vilões. A não ser que se queira dar alguma razão à impugnação do filme pelos círculos próximos do presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad, que o fizeram proibir no seu país por considerá-lo parte da guerra psicológica lançada pelos EUA contra o regime que suportam. Quer-me parecer que é isto mesmo que este tipo de crítica nos pretende oferecer como observação essencial a ter em conta perante 300: com os «persas» não se deve brincar nesta altura dos acontecimentos mundiais.

                    Cinema

                    Pela cruz de Cristo

                    Como é sabido, encontra-se na matriz do catolicismo popular a ignorância das subtilezas teológicas e a ausência de qualquer reflexão sobre os momentos e os símbolos fundadores da religião de Cristo, mas não deixa de se revelar espantosa a forma como diversas testemunhas, ouvidas em Benavente após o assassinato a tiro da funcionária de uma gasolineira local, justificaram o facto de não terem atribuído grande importância aos fortes estampidos que claramente ouviram. Todas elas declararam que, sendo Sexta-Feira Santa, consideraram «natural» o lançamento de alguns foguetes «para comemorar».

                      Apontamentos

                      Blogues: (6) Praça pública

                      Speaker's Corner

                      Espaços de todas as dimensões procuram leitores, abrindo-se aos comentários, conversando entre si. Os debates decorrem livremente, condicionados apenas pelo grau de informação e de cultura dos autores, pelo estilo de cada um, pela sua capacidade para ouvir e para seduzir por intermédio da escrita e da imagem. Apesar da ausência de um suporte físico estável e localizado, a expressão de opiniões afirma-se de um modo plural e, muitas das vezes, com um grande número de pormenores dada a (quase) inexistência de limites formais aquilo de que se fala e à forma como se fala. Muitas das mais substantivas polémicas públicas têm passado por aqui. Ou confluem naquilo que por aqui acontece.

                      [De um conjunto de doze posts usados durante uma conversa sobre blogues que teve lugar na livraria Almedina-Estádio, Coimbra]

                        Cibercultura, Etc.

                        Meio-morto

                        Hip Hop is Dead

                        Por vezes dramaticamente perdida entre as referências que lhe chegam do passado, uma parte da esquerda procura agarrar-se ao que lhe parece serem expressões contemporâneas da rebelião anticapitalista. Uma das estratégias, em curso desde há meia dúzia de anos, consiste em recuperar o hip-hop como expressão cultural de uma contestação de dimensão mundial protagonizada por jovens das periferias – os das grandes cidades, mas também os que habitam as áreas excluídas do planeta – ou por aqueles que com eles se identificam. E todavia, o próprio movimento, emergente a partir da década de 1970, foi gradualmente perdendo a sua força reivindicativa, tendo-se separado do mundo dos gangs e da delinquência de rua no qual nascera e onde ia buscar toda a sua primitiva força. Actualmente, como género musical, é apenas um vestígio revivalista, convenientemente domado e aproveitado para actividades de marketing pela indústria discográfica e pelo comércio das roupas e do calçado, quando não mesmo pelos partidos institucionais e alguns movimentos conservadores (como aquele que, entre nós, tem apoiado o «não» no referendo sobre o aborto). Representa um logro desenhá-lo agora como expressão globalizada de uma justa «revolta do oprimido», ou mesmo como emblema de geração. Sê-lo-á quase tanto quanto o velho rock’n’roll.

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                          O concurso e a responsabilidade dos historiadores

                          De acordo com os dados divulgados pela RTP, o total de votos «válidos recebidos» no concurso Grandes Portugueses foi de apenas 159.245. Destes, 41% foram para Salazar e 19,1% para Álvaro Cunhal, o segundo classificado. Porém, se contarmos os votos militantes – que poderiam ser exercidos, via SMS, pelo menos em triplicado ou quadruplicado –, os votantes efectivos não deverão ter excedido os cerca de 60.000. Desta forma, apenas umas 24.000 pessoas, no máximo, terão votado no antigo ditador. Como qualquer cidadão, independentemente da idade ou até da nacionalidade, poderia participar no escrutínio, o efectivo valor deste número será ainda mais residual. Aliás, o mesmo pode ser constatado de forma empírica: acredito que pouquíssimos conhecerão pessoalmente um verdadeiro salazarista. Assim, para quê tanto alarido com as repercussões do pobre espectáculo televisivo?

                          Convirá recordar que o impacto político do programa foi ampliado, em primeiro lugar, pela própria RTP1, sempre interessada em tornar concorrencial o seu produto, e também por muitos jornalistas e analistas, em busca de tema para os seus artigos e crónicas, ou empenhados numa reflexão sobre o que não deixou de ser um fenómeno curioso da cultura de massas. Mas o concurso foi também exageradamente dramatizado por alguns historiadores, que se viram confrontados com algumas das hesitações e perplexidades que têm atravessado a sua área de interesses. Anoto, de uma forma obrigatoriamente sumária, três problemas com as quais o conhecimento histórico se tem debatido e que me parece terem convergido neste particular contexto.

                          O primeiro deles prende-se com o abandono da narrativa literária, que durante séculos foi o suporte essencial da História. Iniciado pelos meados do século XVIII, este abandono seguiu a crença numa objectividade absoluta, numa «aproximação científica» ao passado, que foi acompanhada pela afirmação de um discurso cada vez mais «neutro» e descolorido. Este afastamento da narrativa acabou por cavar uma crescente clivagem entre a comunidade de historiadores profissionais e as sociedades envolventes. Neste contexto, a maioria dos cidadãos viu-se progressivamente excluída dos processos de compreensão da História, acentuando-se assim as possibilidades de apagamento ou de perversão do passado. A partir dos trabalhos de Hayden White, surgidos pelos meados da década de 1970, esta dimensão voltou a ser valorizada, mas ainda é olhada com alguma desconfiança por uma parte daqueles que do conhecimento do passado fazem a sua profissão.

                          O segundo problema situa-se no domínio das formas de recuperação da memória no processo de construção da História. Particularmente em relação à história de períodos mais recentes, cujos actores em grande parte se encontram ainda felizmente vivos, torna-se imprescindível a utilização da microbiografia e do testemunho oral enquanto instrumento complementar de conhecimento, uma vez que este introduz informação e um «sopro de vida» que pode ajudar a tornar a história mais completa, mais rica e, de certa forma, dotada de uma superior capacidade dramática, a qual é imprescindível no processo de comunicação. De outra forma, as novas gerações terão grande dificuldade em perceber a dimensão dinâmica do tempo que imediatamente as precedeu, tornando-se presa fácil de todo o tipo de interpretações.

                          O terceiro problema articula-se com a forma como a História e o historiador vivem, ou devem viver, a experiência da cidadania. Este não pode manter a veleidade de adoptar um discurso impoluto e «apolítico». Deve, naturalmente, pautar a sua actividade pelo rigor e por um esforço de imparcialidade, comparando diferentes informações e pontos de vista, mas não pode ter receio de questionar o passado a partir dos problemas que a experiência da cidadania coloca. Não levantar questões que podem ter uma incidência política conduz ao desaparecimento da capacidade crítica e à passividade perante as formas de reescrita e de branqueamento do vivido. A leitura «benévola» do salazarismo não pode ser desligada de uma abordagem que, de tão politicamente «distanciada», se tornou insípida.

                          Estes aspectos, tornados particularmente urgentes nas condições desta nossa época de uma comunicabilidade instantânea (a «modernidade líquida» de Zygmunt Bauman), dizem particularmente respeito à comunidade dos historiadores, uma vez que são eles quem – ao lado de Mnemósina, a memória, na sua infinita luta contra Lethos, o rio do esquecimento – tem em primeiro lugar o dever de impedir que o passado seja apagado ou reescrito. Muito para além do concurso televisivo, existe quem o procure fazer, e nunca será demais a maior vigilância. Quanto a este último, daqui por três ou quatro de meses já ninguém dele se lembrará. A não ser, talvez, alguns estudantes universitários, aos quais um professor possa sugerir o episódio como tema de exercício académico.

                            Atualidade, História

                            O vício esplêndido

                            Vicio esplêndido

                            Escrito em Outubro de 2003 para a extinta revista Periférica

                            Senti alguma simpatia por Vaclav Havel no dia em que o vi, numa fotografia a preto e branco tirada na Praga nocturna dos dias da Carta 77, durante um concerto dos Plastic People of the Universe. Nada ali fazia supor que Havel seria um dia o último presidente da Checoslováquia e o primeiro da República Checa. Naquela imagem não se notavam ainda os retoques cosméticos do homem de Estado: a camisa desapertada mostrava a pele muito clara, na mão direita segurava uma enorme caneca de cerveja, o suor escorria pela cara, um cigarro acesso mantinha-se entre os lábios, enquanto o escritor conversava com alguns companheiros de ocasião. O fumo de tabaco saturava o ambiente, sublinhando o carácter pouco convencional do momento, humanizando os rostos, afastando-os das máscaras gélidas da velha guarda no poder, que a essa mesma hora dormitava em casas repletas de retratos medalhados, tirados nos desfiles do 1º de Maio.

                            Relembro essa imagem em plena fúria legislativa antitabagista, que começou a ser barbaramente imposta quando os maços de cigarros, as cigarrilhas e os charutos passaram a ostentar aquele selo horrível, acusador, proclamando a negro que «Fumar Mata». Trata-se de um óbvio caso de exagero e de abuso de confiança, mas é também a expressão de um falso moralismo escrutinador dos costumes, imposto pelas autoridades que, ao mesmo tempo, permitem o fabrico e comercialização de automóveis que atingem velocidades absurdas, ou, para não ir mais longe, fecham os olhos diante das enormes responsabilidades poluentes dos escapes e das indústrias químicas. [continua aqui]

                              Opinião

                              Existencialismo

                              Sinatra

                              Seguindo a informação fornecida pelo teólogo anglicano Keith Ward em God: A Guide For The Perplexed, a canção mais pedida nos cerimoniais dos crematórios britânicos é My Way. «Vivi à minha maneira», bradava ali o sábio existencialista (igualmente católico e mafioso) Francis Albert Sinatra. Não «à Sua», de Deus, como outrora se acreditava ser a única forma de viver. Mas «à deles», solitários e infiéis defuntos.

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                                Heróis do silêncio

                                Os heróis silenciosos são figuras particularmente admiráveis. Aqueles, aquelas, que longe das tribunas aprenderam a observar, a calar, a murmurar. Para agirem sem hesitação quando chegado o momento certo. E depois regressarem ao silêncio, provavelmente para sempre.

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