Author Archives: Rui Bebiano

E agora Talin

Tallinn

Muitos dos participantes dos movimentos colectivos que vêm para a rua em nome do passado estão menos empenhados em compreendê-lo do que em manipulá-lo. Ainda que de tal possam não ter perfeita consciência. Parece-me razoavelmente claro que algumas das tomadas de posição mais radicais à volta da retirada do monumento ao soldado do Exército Vermelho em Talin, na Estónia (ou da construção do museu do Estado Novo no Vimieiro, a dois quilómetros de Santa Comba Dão), nada têm a ver, para a maioria dos que se manifestam, com um conhecimento efectivo do que significou a ocupação soviética (ou, no segundo dos casos, o salazarismo), ou sequer com uma memória vivida da sua experiência. Se exceptuarmos uns quantos sobreviventes, já quase sem voz activa, para a maioria dos manifestantes o passado (aquele passado) interessará, acima de tudo, para alimentar a sua imaginação e as causas do presente que resolveram tomar como suas. Ou então porque se encontra em condições de agregar diversas formas de descontentamento. Não para expressar, como por vezes tem sido insinuado, um desejo objectivo de meter o presente em marcha-à-ré na máquina do tempo.

Adenda: ler a continuação deste texto mais acima ou aqui.

    Apontamentos, História

    Vª Exª Mr. John Bull

    Ze Povinho

    O que mais me impressiona no caso da miúda inglesa que desapareceu no Algarve – para além, naturalmente, da situação em si – é a subserviência com a qual, fazendo notícia sobre a notícia, os canais de televisão portugueses se preocupam tanto com aquilo que se diz nas pantalhas ou nos jornais do Reino Unido (com o «insuspeito» The Sun citado à cabeça), falando, até à exaustão, dos reflexos do episódio nas ruas de Londres ou de Birmingham. Trata-se de mais um caso de servilismo bacoco, associando a excitação de «sermos falados» lá fora ao receio de sermos confundidos com um povo de raptores e de tarados sexuais. Não há paciência que resista!

      Apontamentos, Atualidade

      Poesia sobre o asfalto

      «Limita a tua velocidade, não a tua música.» Frases como esta, mostrada num outdoor publicitário da Mega FM que me surpreendeu hoje enquanto conduzia, deveriam merecer um prémio de beneficência pública oferecido pelo Ministério da Qualidade de Vida. Se este ainda existisse, naturalmente.

        Etc.

        Rankings

        Fátima arrasa S. Bento da Porta Aberta, Sameiro e Almortão. De acordo com uma jornalista da SIC, numa peça do telejornal cujo tema era exclusivamente esse, o complexo da Cova da Iria encontra-se «em primeiro lugar no ranking dos santuários portugueses» no que respeita à afluência de peregrinos. Em contrapartida, no mês passado Maria Sharapova perdeu o lugar no ranking do ténis feminino para Justine Henin (embora eu talvez prefira Elena Dementieva, que se encontra em décimo mas possui um belíssimo nome).

          Devaneios

          Auxiliar de memória

          Por teu livre pensamento

          Editado pela Assírio & Alvim, Por Teu Livre Pensamento é um livro que evoca os rostos e as memórias de prisão de 25 ex-presos políticos portugueses e que acompanha a exposição patente no Centro Português de Fotografia, no Porto, até ao próximo dia 24 de Junho. As fotografias a preto e branco, imagens recentes sobrepostas aquelas que a PIDE originalmente tirou, são de João Pina. Os textos, da autoria de Rui Daniel Galiza, são essencialmente curtos relatos dos trajectos prisionais dos fotografados, construídos a partir de conversas que se pressente terem sido mais longas e densas.

          Todos os fotobiografados são resistentes, oriundos de diversos quadrantes, embora maioritariamente do PCP, como seria de esperar e é justo que assim seja. Homens e mulheres de rostos endurecidos por anos de luta e de trabalho político, marcados pela prisão, pela tortura, por vidas em fuga que lhes foram gravando algumas das rugas que se lhes podem agora notar. Todos, sem excepção, a merecerem a admiração dos que chegaram depois e deles herdaram o sacrifício da liberdade. Os trajectos mais extraordinários são, porém, o de Emídio Guerreiro (que jamais foi comunista e cuja vida, para utilizar um lugar-comum, dava de facto um filme) e o de Edmundo Pedro (que declara ter sido afastado do partido contra sua vontade). Ambos contêm uma dimensão de imprevisibilidade, por vezes de capacidade para integrar a aventura, que nos permite adivinhar vidas particularmente únicas e complexas. Edmundo Pedro começou, aliás, a publicar entretanto a sua própria autobiografia, a qual prolonga as Memórias do seu pai, Gabriel Pedro, deixadas num documento único que o PCP, contra o desejo expresso do autor, terá sonegado ao conhecimento público.

          No conjunto, o volume funciona como um precioso auxiliar da memória, destacando o rosto e a experiência daquelas pessoas, apenas 25 entre muitos milhares possíveis, de modo a que elas jamais possam ser olhadas como um simples sample do imaginário contemporâneo.

          Originalmente em Passado/Presente

            Etc., História, Novidades

            Sermos solidários

            1º de Maio

            Na generalidade dos países industrializados, fora de algumas organizações sindicais e dos militantes e simpatizantes dos partidos e movimentos tardo-marxistas, já poucos descem à rua no 1º de Maio para gritarem palavras de ordem. Longe das áreas nas quais as contradições sociais ainda inspiram, compreensivelmente, a consagração simbólica da luta de classes, por aqui trata-se apenas, para a imensa maioria, de mais um feriado. Dia de passeio que outrora foi pelo campo e hoje segue a passo pelos grandes centros comerciais, tempo para dormir uma sesta sem ninguém que incomode, às vezes para namorar um pouco, para acertar umas almoçaradas, para um jogo de futebol entre amigos. Quando se liga a televisão, podem ver-se os horríveis cortejos militares de Pequim ou de Pyongyang, a sombra de Fidel na Praça havanesa da Revolução, os velhos moscovitas saudosos do império que cantam a Internacional ao lado de uns quantos adolescentes de comportamento duvidoso. Um pouco mais de intensidade, talvez, em Beirute, Caracas ou Manila.

            Por aqui, desfiles de rua com os mesmo sindicalistas (ou os seus clones) que há mais de 30 anos, inamovíveis nos seus lugares protegidos, gritam as mesmas palavras de ordem («U-ni-da-de-Sin-di-cal!», «Go-ver-no-Pará-rua!») que já ninguém sabe muito bem que coisa significam ou para que servem. Poucos são os trabalhadores sem enquadramento e quase não vejo jovens desempregados, imigrantes, contratados a prazo, tarefeiros, diplomados sem expectativa de emprego, ecologistas, gays, lésbicas, prostitutas, deficientes, mulheres em defesa dos seus direitos, membros de ONGs: largas centenas de milhar de pessoas, em breve muitas mais, situadas completamente fora do aparelho produtivo, e que o velho sindicalismo não sabe (ou não quer? ou não pode?) mobilizar. Não pagam quotas, não militam, não votam, não desfraldam bandeiras vermelhas, mas esperam por algo mais do que a compreensão da sociedade em que vivem. Ninguém lhe poderá dizer que «depois da revolução» os seus amanhãs cantarão. Mas também não está no seu horizonte que um dia, quando estivermos todos longe «da cauda da Europa» e a viver riquíssimos num país «de excelência», as oportunidades lhes sejam concedidas.

              Apontamentos, Opinião

              Early Morning games

              Com os netos a brincar um pouco adiante, dois homens – «feitos», como se dizia antes – inventam à minha frente uma vida trepidante. Por alguns minutos não percebi bem do que falavam eles, assim com todo aquele entusiasmo. Apenas o final de uma frase me ofereceu a chave: «Vais pela estrada e paras junto à casa amarela. Sais do carro e entras na floresta. E segues por ali dentro, mas com muito cuidado, por causa dos índios. Mas atenção, que nem todos eles são de evitar! Pelas pinturas de guerra percebes logo que alguns são diferentes. São os da tribo Tanduí, dos quais te deves fazer amigo. Se conseguires, eles integram-te na tribo e, depois de alguns rituais, oferecem-te o anel Mankala. E será com esse anel no dedo que conseguirás aceder ao nível seguinte.»

                Devaneios, Etc.

                Vítimas e «mártires»

                Franco

                Em Espanha, a Igreja católica contra-ataca numa altura em que se discute a Lei da Memória Histórica, a qual propõe a reparação póstuma das vítimas do franquismo e da Guerra Civil. Prepara-se assim, para o próximo Outono, a beatificação em massa de 2 bispos, 24 padres, 462 religiosos, um diácono, um subdiácono, um seminarista e sete leigos, eufemisticamente designados pela hierarquia eclesiástica como «mártires da perseguição religiosa dos anos trinta». Os fantasmas do passado parece quererem retomar o seu lugar. Algumas das suas causas também.

                Adenda: Vale a pena conhecer o edificante caso da beata Eusébia Palomino, patrona dos adivinhos.

                  Apontamentos, História

                  Blogues: (9) Um território amoral

                  Ódio

                  Existe um «lado negro da Internet» que passa principalmente pelos blogues. Nele sobrepõe-se a voz do mais forte (aquele que sabe produzir engodos, que dispõe de tempo e de estrutura para investir na agressividade). Não se trata apenas de caminhar por subúrbios perigosos pisando ou atravessando a fronteira do delito (o terrorismo, a pornografia, o extremismo político e religioso, a economia paralela, a fraude), mas de comunicar sem um código ético perceptível. Aqui a utilização do anonimato (não do pseudónimo consistente), associada à utilização parasitária das caixas de comentários, favorece o insulto, a calúnia, a provocação, a instalação da dúvida em relação à fala do outro. Quando alimentado, este ambiente torna-se insuportável, empurrando leitores e criadores para diferentes destinos.

                  [De um conjunto de doze posts usados durante uma conversa sobre blogues que teve lugar na livraria Almedina-Estádio, Coimbra]

                    Cibercultura, Etc.

                    A tradução como crime

                    Comprei Um Olhar Sobre o Holocausto, livro já com alguns anos da historiadora e antropóloga australiana Inga Clendinnen editado agora pela Prefácio (Reading the Holocaust, Cambridge U. Press, 1999), onde esta examina testemunhos de sobreviventes como Primo Levi ou Charlotte Delbo. Não conhecia a edição original e, reconheço agora que um pouco ingenuamente, confiei no facto de a qualidade das traduções de livros editados em Portugal ter vindo nos últimos anos a melhorar bastante. O volume tem 302 páginas, mas abandonei-o num instante. É que não tinha assim tanta necessidade de o ler que justificasse o tormento que foi seguir a tradução assinada por A. Mata. E foi praticamente impossível descortinar um parágrafo que não contivesse frases inteiras absolutamente incompreensíveis ou vertidas para um português inenarrável, quase ilegível, desprovido do mínimo exigível de cuidado literário ou mesmo de sentido. Ao acaso: «Eu estava especialmente aterrorizada com os alemães porque eles claramente glorificavam a sua perversidade»; ou «apesar da similaridade dos motivos, as duas experiências estudadas [as duas Guerras Mundiais] tiveram resultados diferentes»; ou ainda «sobre o Holocausto eu não tinha nenhum sentimento de compreensão acumulada». Isto só nas primeiras duas páginas de texto. Continuando: «Experimentei opiniões académicas correntes», «face a uma catástrofe destas dimensões, tão propositadamente infligida, a perplexidade é uma indulgência», «os ciganos eram classificados como insociáveis», «os ciganos fizeram do esquecimento uma arte», «há um mistério principal sobre a compreensão», etc., etc., etc. Já agora: como pode alguém que simplesmente leia livros com alguma regularidade referir-se aos Romani (os ciganos do leste europeu) como Romanos? E parei na página 48, final do capítulo I, pois toda a paciência tem os seus limites.

                    Também em Passado/Presente

                      Homem-sanduíche

                      Uma rapariga com um sorriso atraente olha-me e considera, talvez pelo meu aspecto aparentemente asseado e pelo telemóvel de que me sirvo enquanto caminho, que deverei possuir «um automóvel recente e em bom estado». Parece-lhe-á que também tenho ar de quem «não utiliza parques de estacionamento». Entrega-me então um panfleto com uma proposta objectiva: deixo que o meu carro seja decorado com publicidade – «a imagem de grandes marcas» – e serei remunerado por isso. Em breve, alguém me sugerirá que cole um anúncio da Sony ou da Gillette na mochila e passeie em lugares públicos com ele bem visível. Depois que tatue o logótipo da BMW na testa e sorria com ar cool a quem quer que por mim passe na rua. Serei remunerado por isso, coisa que faz sempre jeito a um funcionário público presumivelmente honesto.

                        Apontamentos, Devaneios

                        Surpresas

                        Gosto, gosto muito, dos blogues que me surpreendem com uma fala que nada tem a ver com a minha, com nomes que nada me dizem. Pensar como jamais poderei pensar, escrever como não sei escrever nem conheço quem saiba. E ler pelo prazer simples de ler.

                          Etc.

                          Blogues: (8) Lugares da memória

                          Lugares da memoria

                          A facilidade e a informalidade do acesso incorporam aqui um número cada vez maior de pessoas que transportam consigo uma experiência de vida e um acumular de referências capazes de se materializarem no fio da história. Tal como acontece com o testemunho oral ou com as cartas e os diários projectados no papel, são, por vezes, vestígios que contêm uma grande dose de erro, imprecisão ou subjectividade, mas nem por isso perdem necessariamente o interesse. Emergem então enquanto «lugares da memória» – territórios de materialização do passado colectivo, seguindo a expressão proposta por Pierre Nora – que servem para declarar informação, testemunhar representações, alimentar referências perdidas ou desfiguradas. Por vezes aproximam também as gerações.

                          [De um conjunto de doze posts usados durante uma conversa sobre blogues que teve lugar na livraria Almedina-Estádio, Coimbra]

                            Cibercultura, Etc.

                            Voz da resistência

                            Carmen

                            Em ambiente rarefeito de clube de gangsters, num pub irlandês do século passado, gingando suado entre tabacaleras. Com João Bénard da Costa na crónica do Público de hoje [visível aqui].

                            «Um dia suprime-se a cabeça do profeta do Idomeneo, de Mozart. O outro, os cigarros da Carmen. Ainda fica muita coisa para nos entretermos: as fogueiras de O Trovador, que jamais serviram para acender cigarros, o túmulo da Aida, onde não consta que nem ela nem Radamés fumassem, o quarto onde Otelo estrangulou Desdémona e onde o perfume do lenço era o único odor que ambos respiravam.»

                              Recortes

                              Que povo era esse?

                              Povo-MFA

                              O velho cartaz de um tempo raro, criador, agora antigo e quase proscrito, desperta uma incógnita. Que povo era esse que se nos apresentava na figura de um lavrador oitocentista arruinado pelo jogo, de um Zé do Telhado em dia de festa, de um jagunço sertanejo, de um Sandokan fora-de-horas viajando incógnito pela margem esquerda da Europa? O imaginário do 25 de Abril e do PREC tem ainda pistas por achar, expectativas por revelar, caminhos (se calhar, um dia talvez calhe) por retomar.

                                Devaneios, História