O suplemento Digital do Público divulgou um conjunto de artigos sobre o processo de construção e a forma de funcionamento da Wikipédia. Assim mesmo, com acento agudo, pois foi principalmente a versão em português da enciclopédia online que foi referida. Aspectos como a credibilidade, a originalidade ou a relevância dos contributos foram ali abordados e devem, sem dúvida, suscitar algum exame crítico. Mas prefiro falar do assunto a partir de uma outra perspectiva.
A experiência como professor tem-me permitido observar, a propósito do funcionamento da Wikipédia, três comportamentos que me parecem preocupantes: 1) um número crescente de alunos utiliza-a como fonte praticamente única de conhecimento em relação a determinados temas leccionados, situação que é agravada pela impreparação da maioria dos docentes para se aperceberem desta realidade; 2) são poucos os alunos que têm consciência do carácter incompleto, por vezes falacioso ou mesmo erróneo, de muitos dos artigos; 3) para piorar as coisas, a esmagadora maioria destes utilizadores serve-se apenas da versão em português, quase sempre incomparavelmente mais pobre do que as versões em inglês, em francês ou em castelhano (para referir apenas aquelas que consulto mais vezes).
Incentivo os alunos a utilizarem a Wikipédia. É um óptimo ponto de partida para o estudo e para a preparação de aulas ou de trabalhos, uma vez que se trata de um processo acessível, barato e que pode abrir inúmeras pistas em hipertexto a aprofundar posteriormente (os links oferecidos, por exemplo, são muitas vezes bastante mais interessantes e úteis do que o são as próprias entradas). Mas apenas como muleta, para se guiarem, ou para encontrarem referências que se cruzam com a informação que recolhem em sites mais fiáveis ou noutros suportes. E aviso sempre que, na correcção dos trabalhos ou das provas, estarei atento ao copy-paste desonesto que a curto ou a médio prazo se volta sempre contra quem dele se serve (não garantindo apanhá-los todos, naturalmente, mas isso eu não devo dizer). Tento desta forma evitar que este instrumento se transforme num factor de desastre, valorizando-o ao mesmo tempo, como ele efectivamente merece. Ignorar o assunto, ou fazer de contas que ele é irrelevante, é que me parece perigoso.
Para quem – sempre mais ou menos os mesmos – se aplica tanto em mostrar-se imparcial perante a «luta de facções» que avassala o território da Palestina, parece ser irrelevante o facto de o Hamas, após ter tomado posse da faixa de Gaza, ali ter imediatamente instalado a sharia e começado a executar pessoas. Será apenas um pormenor? Um sintoma respeitável da multiculturalidade palestiniana? Uma lamentável desavença entre irmãos «moderados» e «radicais» suscitada pela intromissão ocidental e pelas iniciativas israelitas? É muito estreita a linha de fronteira que separa a teimosia, a cegueira e a má-fé.
Maria Konstantinovna Bashkirtseva (1858-84), filha de uma família da nobreza russa, nasceu na Ucrânia mas passou grande parte da sua breve vida a viajar pela Europa. Estudou pintura em Paris, onde produziu uma obra notável, quase inteiramente destruída pelos nazis durante a Segunda Guerra Mundial. Sob o pseudónimo Pauline Orrel, também escreveu para o jornal feminista La Citoyenne. Mas foram as suas cartas, e principalmente o diário que manteve desde os 13 anos, que a tornaram uma figura única no seu tempo, levando Jon Savage, em Teenage, a considerá-la pioneira da emergência de uma nova consciência do lugar e do papel da jovem. Escreve ela no Diário: «Incendiar todas as coisas, exasperar-me, chorar, sofrer todos os dias, mas viver, e viver!». E mais adiante: «Estou cansada da minha própria obscuridade. (…) Definho na escuridão. O sol, o sol, o sol!» Maria insurgiu-se de forma consciente e solitária contra a vitoriosa ordem burguesa e a poderosa definição arquetípica de uma feminilidade assente na auto-repressão, na resignação e na vida confinada ao espaço doméstico. Hoje quase esquecida, terá sido uma das primeiras a fazê-lo.
«Vocês são mesmo ordinários, foda-se!». Foram as palavras de um Al Berto em «fúria controlada», quando, em 1992, foi vaiado por um grupo de estudantes universitários, soi-disant irreverentes e mais ou menos etilizados, durante uma sessão de leitura de poesia que decorria em Coimbra. A mesma Coimbra onde o poeta, morto há dez anos, nascera em 1948, e cuja Câmara Municipal proclama agora o «Museu da Irmã Lúcia» e o concurso local de Misses como parte integrante do seu roteiro cultural. A minha cidade tem também destas tonterias, mas o problema não é com ela, garanto. É (tem sido) apenas com alguns dos seus habitantes (verdadeiros ou putativos).
O lamentável episódio foi gravado e pode ouvir-se aqui (16m08s):
A recordação do momento e esta gravação chegaram-me através d’A Origem das Espécies, de Francisco José Viegas, e foram inicialmente colocadas em linha, no blogue Frenesi – Livros, por Paulo da Costa Domingos.
De repente tornara-se invisível. Como acontecera com a sua própria sombra, também o olhar dos outros deixara de o perseguir. Podia agora sorrir, ou acenar, ou imitar o voar oblíquo dos pássaros, sem que lhe perguntassem porque o fazia.
A pergunta parece gasta, mas não excedeu ainda o prazo de validade. Poderemos continuar a integrar, como instrumento do combate social e da representação contemporânea do mundo em mudança, o binómio esquerda-direita? A melhor forma de responder à questão talvez seja pensá-la colocando de lado os apriorismos que transformaram «esquerda» e «direita» em ídolos ou em meras etiquetas. Porque a identificação da «esquerda» e da «direita», e a actualização do seu perfil, são tarefas bem mais complexas que o simples enunciar de profissões de fé apoiadas na invocação de símbolos ou de tradições.
E são-no ainda mais neste presente fluido que relativiza práticas e valores, perturbando o universo mais simples no interior do qual as duas categorias historicamente se separaram. Afinal, Bush e Blair contestam a restrição dos direitos humanos e apelam à redução das desigualdades, ainda que tenham contribuído para as aprofundar. Ao mesmo tempo, Castro e Chávez praticam o autoritarismo e o silenciamento daqueles que se lhes opõem, apesar de serem apresentados por alguns como paladinos da democracia. O CDS fala de liberdade de expressão, enquanto o PCP relativiza constantemente o conceito. Os partidos socialistas e social-democratas permanecem erráticos, com programas repletos de expressões vagas utilizadas para fins eleitoralistas, rapidamente substituídas por atitudes pragmáticas na gestão do quotidiano, de acordo com aquela que consideram ser uma «perspectiva moderna» da política.
Foi-se, de facto, o tempo das barricadas, quando as bandeiras pareciam cravadas nas mãos certas e no seu lugar natural. Mas devemos fazer a crítica desta ambiguidade recorrendo a um processo de separação que nos ajude a compreender onde se distanciam ou começam a confundir-se a defesa dos princípios essenciais dos programas políticos e a prática da mais sórdida demagogia. Colocando o problema no campo do que é essencial, Norberto Bobbio considerava que, em última instância, a distinção entre direita e esquerda acaba sempre «por se converter na distinção entre sagrado e profano», dentro da qual se inserem outras diferenças, como «a que existe entre ordem hierárquica e ordem igualitária, e entre comportamento tradicionalista, favorável à continuidade, e comportamento voltado para o que é novo ou progressista, favorável à ruptura, à descontinuidade». Esta é, no fundo, a sobrevivência da tradição divisória que vem da Revolução Francesa e que, sem coagir em demasia a procura de novos caminhos, nos pode ajudar a separar as águas e a encontrar uma alternativa, questionando a traição aos princípios fundadores sem deles fazer territórios inamovíveis.
Procurarei abordar aqui – num conjunto de posts obrigatoriamente diferidos no tempo – o modo como, no campo da esquerda, essa grande traição se tem vindo a afirmar. Viajarei pelo processo de perversão de alguns dos seus fundamentos, apoiados nos ideais de liberdade, de tolerância, de igualdade, de laicidade, de emancipação ou de progresso. Justamente aqueles que, permanecendo marmóreos nas declarações de princípios, têm vindo a ser subvertidos pelos movimentos e pelas experiências que continuam a reivindicar a parte mais substancial da sua herança.
Nos países sob regimes democráticos, onde se verifica algum respeito pela diferença de opiniões e pela transitoriedade dos valores, o mobiliário monumental tem começado a atenuar a expressividade simbólica que sempre incorpora. Os edifícios construídos são mais funcionais e voltados para um diálogo com as populações envolventes, a agressividade figurativa das estátuas é reduzida, ocorre uma maior preocupação com o reconhecimento social e com o confronto com a paisagem. Isto atenua o carácter demasiado afirmativo e panfletário, acentuadamente polémico, que estas construções assumem noutras circunstâncias. Porém, a suavização da mensagem dilui ao mesmo tempo o impacto do objecto, convocando um mais rápido esquecimento.
Sem ela não seríamos bem aquilo que somos. Nem os nossos dentes brilhariam da mesma forma. A fórmula da Pasta Medicinal Couto foi elaborada pelo gerente da sociedade Flôres e Couto, sediada no Porto, com a ajuda de um dentista amigo, visando evitar «nomeadamente as infecções das gengivas», e foi registada em 13 de Junho de 1932. 75 imperturbáveis anos de vida, se exceptuarmos, em 2001, o episódio da retirada da designação «medicinal», imposta por normas comunitárias. Também ajudou a defender o império servindo-se de «um artista português» que passou a integrar a nossa memória colectiva.
Um dos pequenos dramas domésticos mais comuns consiste em desejar ardentemente cortar o som da televisão, ou mudar o canal, e não se saber onde raio poisámos o telecomando. Foi o que me aconteceu ontem, obrigando-me a ouvir em alta gritaria, durante alguns minutos, Notas Soltas, a entrevista de Judite de Sousa a António Vitorino que a RTP transmite todas as segundas-feiras. Calculo que este seja um dos programas com mais baixo nível de audiências da televisão portuguesa, apesar de ir para o ar em horário nobre, de anteceder o popular concurso Um Contra Todos, e de muitos cidadãos, em função do título da rubrica e do nome do entrevistado, poderem legitimamente pensar que a conversa verse os meandros da música erudita. A previsibilidade absoluta das ideias, que apenas repetem em modo afável o discurso oficial do governo, a incapacidade para ser-se convincente, mobilizador ou sequer, como Marcelo Rebelo de Sousa, um bom entertainer, transformam aquela meia hora num suplício a requerer medidas céleres de higiene doméstica. E é aí que entra (ou deveria ter entrado) o bendito telecomando.
Com catorze anos de idade eu não podia ter uma posição política que se esforçasse por parecer coerente. Talvez por isso, ou graças às «leituras para rapazes» que ocupavam a maior parte do meu tempo, em Junho de 1967 ainda sentia um grande entusiasmo pela guerra e pelos guerreiros que imaginava a povoá-la. Não aquela guerra que sabia travar-se no «nosso Ultramar» e que já então me parecia soturna, sem vislumbre de finalidade ou de grandeza, mas as guerras que se assemelhavam às dos livros. Partilhei pois – na altura, com muitos outros portugueses comuns – uma certa atracção pela dimensão heróica da Guerra dos Seis Dias. Passei aquela semana agarrado à rádio, combinando a escassa informação que chegava através da Emissora Nacional e do Diário de Notícias com as proclamações indecifráveis e contínuas, acompanhadas de música marcial, que, através da onda curta, provinham, presumo, do Cairo ou de Tel-Aviv. Entrevi dias depois, em escassas imagens da televisão, o júbilo dos soldados israelitas. Mais ao longe, uma nuvem de poeira que o locutor de serviço dizia ser a infantaria egípcia em retirada. Lamentei que tudo tivesse acabado tão depressa. E rejubilei com a vitória militar daquele que era então – alguns dos que conservam alguma memória da época já o terão esquecido – um pequeno povo perseguido de «judeus imundos», confinado a uma língua de terra árida e demasiado ensolarada.
O rosto visível daquele delírio juvenil, que só depois soube tratar-se do prelúdio de um outro drama que nada teria de romanesco, era o do misterioso general Moshe Dayan. Com a sua inconfundível pala de pirata (substituindo o olho vazado no Líbano durante a luta contra os francesas colaboracionistas), um permanente mono-olhar de gozo e sobranceria, a mesma postura descontraída e operacional que vislumbrei depois nos muitos oficiais-generais do exército israelita que ganharam as suas estrelas dividindo o tempo entre o ar condicionado dos comandos e um quotidiano vivido em ininterrupto estado de guerra. Dois anos depois, já via a Guerra dos Seis Dias de uma forma crítica, percebendo como ela tinha incubado o ovo da serpente – e como o «espírito de aventura» preludiara afinal uma proeza extremamente perigosa – mas ficou-me, para sempre, sob o retrato daquele herói que não saía dos livros e do passado mas de uma realidade imediata que os imitava, a percepção vivida, da dimensão estética, inebriante e tremendamente perigosa da guerra. Da forma como ela pode catalisar tomadas de posição bruscas, irracionais e irreversíveis. Tal como, actualmente, o reconhece aquela parte da oposição política israelita que ainda é capaz de conceber uma paz que mais ninguém parece desejar.
Aceito parcialmente a crítica de José Pacheco Pereira a certos malefícios do metabloguismo, particularmente aos vícios do «amiguismo». Não significa isto, porém, que seja contra a partilha de ideias e de cumplicidades entre escrevedores de blogues. Elas constroem solidariedades e ampliam a visibilidade daquilo que se publica, possibilitando uma interacção muitas vezes enriquecedora. Reconheço que também não gosto de ver livros referidos apenas porque a ou b sugere que o façamos. E depois ver o favor a ser pago à luz do dia. Como não aprecio banalidades de notáveis transformadas em memoráveis citações, enquanto textos bem escritos e de gente inteligente permanecem ignorados. Mas considerar que este tipo de situações traduz nesta altura um «significativo empobrecimento da blogosfera» – na qual ocorreram fases bem piores de maledicência e boataria que levaram até à desistência de excelentes bloggers – parece-me injusto e exagerado.
Não é fácil defender a importância de uma obra como esta. Quando se multiplicam os livros, discursos, colóquios, debates e números de revistas que pretendem colocar em diálogo islamismo e cristianismo, ou que intentam provar «cientificamente» que se completam, e quando a defesa da laicidade parece confinar-se à teimosia de uns quantos excêntricos fora do tempo, não é fácil declarar, e tentar demonstrar, que ambos são males transportando consigo, em quaisquer das suas múltiplas formas, a opressão e a guerra. Mas é isso que procura fazer o filósofo americano Sam Harris em O Fim da Fé. Religião, Terrorismo e o Futuro da Razão, recém-editado pela Tinta da China.
Um dos argumentos centrais deste livro aponta para o carácter negativo de um novo dogma, do qual são portadores os «crentes moderados» e também aqueles que, não sendo pessoas de fé, entendem a religião como uma área intocável e essencialmente positiva da experiência humana: uns e outros «imaginam que o caminho para a paz só será desbravado quando cada um de nós tiver aprendido a respeitar as crenças injustificadas dos outros». O que leva Harris a declarar, e a propor-se mostrar, que, ao invés, «o próprio ideal de tolerância religiosa (…) é uma das principais forças que nos arrasta para o abismo».
Numa recente entrevista ao suplemento Babelia, Fernando Savater afirma, reciclando o velho aforismo de Marx, que «mais do que ópio, a religião é cocaína». Isto é, ela não se limita a anestesiar, a entorpecer, mas é capaz de produzir estados psicóticos produtores de uma suspensão do tempo e de ilusões com um elevado potencial de violência. O livro de Harris parte também, de alguma forma, do entendimento da religião como uma doença, e como uma doença perigosa, cujo alastramento é favorecido por dois mitos que procura desarmadilhar: o primeiro associado ao facto da maioria de nós acreditar «que é possível retirar coisas boas da fé», o segundo vinculado à crença de que as coisas terríveis que por vezes se cometem em nome da religião «são produto, não da fé em si mesma, mas da nossa natureza mais ignóbil (…) em relação à qual as crenças religiosas constituiriam o melhor (senão mesmo o único) remédio».
Todo o volume se constitui então como um tentativa de destruição do mito da «moderação» religiosa e, ao mesmo tempo, como um enunciado do grau de inadequação ao mundo contemporâneo de todas as religiões do «Único Deus Verdadeiro», as quais, aliás, pressupõem sempre «uma ignorância enciclopédia da história, da mitologia e até da própria arte» e impelem o outro, a todo o instante, para um lugar, tolerado ou combatido, de menoridade política e de inferioridade cultural. Se ele se afirmar como apóstata, então a solução será a exclusão ou a morte.
Particularmente examinados são, para além dos traços essenciais da matriz judaica, os fundamentos e as práticas, passados e presentes, do islamismo e do cristianismo. E aqui a crítica é impiedosa, procurando provar o seu carácter arcaico, o potencial de violência que integram, e a periculosidade das posições daqueles que buscam compreender, quando não aceitar, os seus mais terríveis excessos. A argumentação, que recorre constantemente aos textos sagrados, bem como aos discursos e às práticas dos líderes políticos que procuram na religião os fundamentos das suas opções, é verdadeiramente esmagadora, embora, frequentes vezes, bastante perturbante para aqueles que foram educados num universo laico mas tolerante em matéria de religião. Ao mesmo tempo, o recurso constante a factos do passado recente integra o debate em volta dos antigos mitos na discussão sobre os acontecimentos contemporâneos que os invocam e com os quais nos temos visto, e continuamos a ver, constantemente confrontados. Afinal, pergunta o autor, «quando será que nos iremos aperceber de que a indulgência do nosso discurso político em relação às crenças religiosas nos impede de mencionar, quanto mais de erradicar, a fonte de violência mais prolífica da história?»
A presença dos cristãos fundamentalistas na administração americana é mostrada em muitos dos seus assustadores detalhes, mas a crítica do Islão é, sem dúvida, a mais agreste. Tendo em linha de conta a tese proposta, afinal, de que outro modo poderia ser, se, como se sabe, é neste campo que as coisas têm agora ido mais longe? As palavras são duras: «Ao reflectirmos sobre o Islão e sobre o risco que ele representa para o Ocidente, deveríamos imaginar o que seria preciso para vivermos pacificamente com os cristãos do século XVI. Com homens ainda desejosos de perseguir as pessoas por crimes como a profanação da hóstia ou a bruxaria. Estamos hoje na presença do passado. Conseguir estabelecer um diálogo construtivo com estas pessoas, convencê-las dos nossos interesses comuns, incentivá-las a seguir o caminho da democracia e a celebrara diversidade mútua de ambas as nossas culturas, é tudo menos uma tarefa simples.» Tarefa esta que o autor não enjeita, ainda que não se mostre muito optimista em relação aos seus possíveis resultados.
O argumento de Harris faz também cair por terra a ideia de acordo com a qual, resolvidas as desigualdades ao nível da distribuição da riqueza e do desenvolvimento económico, as contradições religiosas desapareceriam, ou, pelo menos, os extremismos que actuam neste campo ver-se-iam isolados e reduzidos a uma expressão residual. O autor mostra como estes aspectos pouco interessam às massas ignorantes de crentes e como os líderes religiosos que lhes alimentam a credulidade e a ferocidade frequentam um universo quase invariavelmente protegido, informado e próspero.
No final do livro, dois capítulos mais densos mas não menos polémicos debruçam-se sobre a essência do fenómeno religioso e sobre o valor positivo de uma espiritualidade liberta da religião. Outro tenta enunciar uma posição positiva no sentido da definição e alargamento de um grande campo de combate cultural à presença e à influência das religiões. Um interessante posfácio procura ainda rebater algumas das principais e previsíveis críticas, muitas delas com um recorte de grande violência, que foram feitas após a saída da primeira edição deste livro, vencedor do Pen Award para a não-ficção de 2005 e grande êxito de vendas. No mundo onde é possível editar livros destes e debater estes temas, evidentemente.
Tendo-lhe sido perguntado, em entrevista da revista Sábado, se se identificava com o Zorro ou com D. Quixote, José Sá Fernandes, o protagonista da «candidatura alface» do Bloco de Esquerda à Câmara de Lisboa, afirmou, como era de prever num candidato partidário a alguma coisa, «com o Zorro porque tinha os pés na terra». Sendo grande a minha simpatia pelo herói mascarado – mais ousado até do que Sá Fernandes o pinta (sobretudo na versão de Isabel Allende) – sinto principalmente a falta de Quixotes. Um dos problemas de algumas das forças que a dada altura pretenderam renovar a política activa e a participação dos cidadãos talvez advenha mesmo destas não lhes darem grande atenção. O espectro gélido de Lenine paira ainda em muitos horizontes.
Admito que a afirmação do ministro Mário Lino a propósito do «deserto» situado abaixo do habitat das senhoras tágides tenha sido, para além de politicamente controversa, uma valente gaffe. Mas já deu para entender que ML habita, ele próprio, um outro deserto: o dos «homens públicos» com sentido de humor e alguma propensão para a introdução de critérios de subjectividade no sempre previsível discurso de Estado. Considero isso extremamente saudável e até lhe agradeço a singularidade. E, claro, não deve pedir desculpa coisíssima nenhuma por ter dito aquilo que disse e como o disse. Será bom até, para a saúde mental da Lusitânia, que o faça mais vezes. Ainda que depois se veja forçado a corrigir o tiro. Se mais políticos agissem com este estilo, talvez a opinião pública lhes prestasse uma maior atenção. A maioria deles, porém, simplesmente não é capaz de o fazer. Ou então vive de mãos atadas e de língua presa.
Salazar em Santa Comba nos idos de 70, decapitado e florido
Se a valorização positiva de determinados sinais é transitória, é-o também a sua negação. Muitas das vezes, a destruição dos velhos símbolos é posta em causa por sectores da sociedade a quem um determinado passado suscita um efeito de sedução. Pode então acontecer que determinados grupos – menos conformados com a ordem vigente, mais identificados com algumas causas – evidenciem uma vontade de recuperação dos monumentos destruídos. São formas de pensamento nostálgico que suscitam esse tipo de retorno, e a nostalgia pode afectar tanto as pessoas que viveram um dado passado como aquelas que o não viveram mas que aceitam, muitas das vezes sem qualquer intervenção da crítica, as imagens que dele lhes são oferecidas. O combate pela afirmação identitária – política, cultural, religiosa, étnica, geracional – determina então a vontade, mediada pela intervenção do simbólico, de um «regresso ao passado».
Conta John Banville, no seu livro sobre Praga, que quando Kafka começou a ler excertos de O Processo a um grupo de amigos, foi acometido de um tal ataque de riso, logo à primeira página, que acabou por desistir da leitura. Algo me terá escapado na história soturna de Joseph K.