
Aprendi a ler cedo, antes ainda da primária, pela mão de um avô que gostava que lesse sem soletrar, aos amigos dos seus encontros matinais de maledicência, artigos inteiros do jornal diário. Talvez por isso, tornei-me viciado em notícias, usando-as, sem falhar um dia, para conhecer e entender os caminhos do mundo. Numa rápida retrospetiva de tanto tempo a absorver informação – juntando-lhe sempre o insubstituível conhecimento histórico –, posso dizer que não me recordo de viver uma época pautada por uma situação política global tão caótica e de difícil decifração quanto a que agora nos cabe. Prova disto é a visível incapacidade dos analistas políticos, mesmo dos mais bem preparados, para interpretar os acontecimentos em curso e lhes antecipar consequências.
À divisão do mundo em duas metades das décadas da Guerra Fria, e à pax americana que pautou os anos noventa, sucedeu a repartição tripolar que hoje define as áreas de influência e os interesses concorrentes dos Estados Unidos, da Rússia e da China. Este seria, já por si, um fator de instabilidade e de incerteza. Todavia, a principal razão pela qual se torna agora particularmente difícil analisar escolhas e prever saídas no domínio da política global, prende-se com quatro fatores: o esvaziamento das grandes ideologias, o menosprezo pelo papel da ética, a banalização das escolhas erráticas e o excesso de informação. Sobre eles ergueu-se uma paisagem caótica e cada vez mais instável.
O «fim das ideologias», descrito em 1988 por Daniel Bell, trouxe consigo, em associação com o suposto «fim da história», bebido em Hegel e proposto no ano seguinte por Francis Fukuyama, a noção de que tinha deixado de ser possível definir interpretações coerentes, dinâmicas e globais para o fluir do mundo. Tratou-se, na verdade, de um acentuado recuo dos sistemas filosóficos e políticos explicativos da história. Estes foram trocados por uma gestão imediatista e à vista da coisa pública, sem qualquer interesse pela imaginação de futuros. A perda dos faróis da ideologia trouxe consigo um esvaziamento de horizontes, abrindo espaço a uma afirmação limitada ao curto prazo de objetivos e de valores.
A perda de uma noção de ética, vinculada ao sentido de responsabilidade que lhe dá corpo, é a segunda causa de desnorte. Existia já a ideia, referida por Maquiavel, de que as escolhas em política podem valer por si e ter uma ética própria, mas o triunfo do individualismo e do conceito de «sucesso», articulados com a expansão do neoliberalismo, tornaram obsoleta a ideia de que ela deve fundar-se, como desejou Camus, «em comportamentos que a legitimam ou contrariam». Desaparecido este vínculo, que por décadas norteou as escolhas responsáveis dos atores das grandes famílias políticas, quebrou-se também o vínculo moral entre quem decide e quem recolhe o impacto das decisões. O cidadão comum espera agora tudo e o seu contrário.
O terceiro fator articula-se com uma dimensão errática da política e possui um rosto. Tomando medidas por impulso, sobrepondo o ego narcísico ao interesse coletivo, mostrando-se incapaz de avançar uma ideia clara e de lhe dar sequência, pervertendo as regras básicas da civilidade e da diplomacia, Donald Trump tornou-se um fator de imitação. Pelo lugar de poder e de influência que ocupa, está a definir um «novo normal», alimentando o autoritarismo, condicionando a democracia e disseminando globalmente um sentimento de instabilidade. Já o quarto fator, que amplia os demais, traduz-se na reprodução excessiva, acrítica e não hierarquizada de informação, tendente a disseminar por todo o lado a dúvida, o engano, a incerteza e a instabilidade.
Nesta condições, todo o juízo crítico do analista político, que não é um adivinho, se torna arriscado, com forte tendência para se concentrar nas meras hipóteses e para se tornar falível cinco minutos depois. É perturbante esta conjugação de fatores de instabilidade, generalizando um estado de confusão e de incerteza, ser capaz de influenciar amplos setores do eleitorado. Torna-se, por isso, urgente a afirmação de vozes e de práticas capazes de devolverem um papel central ao discernimento. Poderá parecer uma missão impossível, mas ela é imprescindível para suster a barbárie e a sua companheira servidão, dando também um sentido mais claro e completo às nossas vidas.
Rui Bebiano
Fotografia de Igor DemidovPublicado no Diário As Beiras de 28/6/2025