Enid Blyton e os criadores de imbecis

Creio que os primeiros livros com mais de cem páginas e exclusivamente de texto que li me foram oferecidos entre os oito e os dez anos, em pequenos embrulhos com três ou quatro volumes de cada vez, na qualidade de prendas de aniversário e de Natal. Como para muitos rapazes e raparigas mais ou menos da minha geração, as histórias d’Os Cinco (Famous Five), de Enid Blyton, no caso em versão traduzida, foram uma introdução ao maravilhoso da aventura e do mistério, à construção de uma distinção entre o bem e o mal, e ainda à saborosa arte de bem merendar. A série de 21 volumes foi escrita entre 1942 e 1963, trazendo consigo o mundo benévolo e inquietante do Júlio, um jovem de bom-senso, da Ana, moça desembaraçada, do brincalhão David, da Zé, a «maria-rapaz», como se usava dizer, e do imprescindível cão Tim. Sem dúvida o meu primeiro bando de heróis.

Pois é esta mesma série que foi agora, segundo o The Telegraph, inteiramente retirada das prateleiras das bibliotecas públicas de Devon, em Inglaterra, e armazenada em locais não acessíveis ao público, de forma a que este «não tropece» em linguagem julgada «desactualizada» e «ofensiva» por quem supostamente o protege. Algumas palavras estão mesmo a ser substituídas em novas edições agora depuradas de expressões julgadas datadas, como «queer» (esquisito) ou «gay» (alegre). Um pescador que surge numa história, de torso tisnado pelo sol devido à profissão que tinha, deixou de poder ser descrito como «brown» (castanho), enquanto ninguém mais pode ser mandado calar com um «shut up». Continua a saga da imbecilização das novas gerações feita através de uma linguagem censurada que não permite distinguir entre o bem e o mal por um exercício crítico próprio.

Para quem desgraçadamente defende e aplica esta política higienista e censória de revisão ou escondimento de obras literárias, um sujeito como eu, que leu a série toda – e depois dela também os 15 volumes de Os Sete (Secret Seven), da mesma autora, embora já menos estimulantes – sem por isso se tornar racista, homofóbico e violento, provavelmente só pode ser anormal.

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