Refugiados e humanitarismo conceptual

A perder de vez a dose de paciência que ainda me restava com aquela espécie de gente que, de tanto amor conceptual por uma humanidade distante, não perde a oportunidade para apoiada em explicações ou em fantasias fabricadas à medida, mostrar menosprezo pelo sofrimento mais próximo. Aquele manifestado na primeira pessoa e gravado no corpo, por gente de carne e osso que nos surge ao virar da esquina ou à distância de apenas umas horas de viagem. 

Sim, é verdade, parte da solidariedade quase generalizada que, aqui na Europa, está a rodear os homens e as mulheres que nasceram na Ucrânia, em particular os refugiados que fogem da guerra de invasão, tem alguma relação com o facto de os acontecimentos que os estão a cercar se passarem aqui ao nosso lado, com brancos, maioritariamente loiros e de olhos azuis, educados numa cultura com pontos de contacto com a «nossa», vivendo praticamente como «nós», e de quem por isso facilmente sentimos maior proximidade. 

É verdade também que o que acontece bem mais longe, com pessoas com outra cor de pele, costumes ou religiões bem diferentes, vindas de histórias e de trajetos humanos distantes, não tem o mesmo impacto público. O que não deveria acontecer, mas acontece.

Não será por este motivo, todavia, que iremos – já tenho visto por aí sugeri-lo – menosprezar estes refugiados ou desviar a atenção para outros. Qualquer de nós, sobretudo se tiver uma perceção mais reduzida do mundo, se sente, na verdade, mais solidário com pessoas bem mais próximas, e aquilo que com elas acontece de mau na nossa aldeia, na nossa rua, no nosso prédio, com a nossa família, motiva-nos mais a agir logo em sua defesa. Não deveria ser assim, mas assim é, pelo menos enquanto alguém não inventar outra humanidade.

Estar «manchado pela branquitude» – sim, li esta expressão há poucos dias num texto de um «cientista social» que me veio parar às mãos – não pode representar uma condenação à morte, ao exílio, ao sofrimento, ao desprezo, à pobreza, ao esquecimento. Como não o pode representar para qualquer outra pessoa, seja qual for a cor dos seus olhos ou da sua pele. Cuidemos, pois, de quem precisa ser cuidado.

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