«Cancel culture» em tempos sombrios

Como se sabe, a «cancel culture» (ou «cultura do cancelamento») é uma forma de ostracismo em que uma pessoa é expulsa de uma posição de influência ou fama devido a atitudes consideradas questionáveis – tenham elas ocorrido online ou no mundo real – por parte de quem desenvolve essa operação. Conduz ao boicote dessa pessoa, geralmente alguém prestigiado, de bom nome, que no presente ou no passado, incluindo-se aqui mesmo um passado bastante distante, adotou e compartilhou uma opinião controversa ou teve um comportamento no atual momento considerado errado ou ofensivo. Esta pessoa é então «cancelada», apagada, ignorada ou boicotada por antigos amigos e seguidores, transformados agora em adversários jurados, provocando um grave prejuízo na sua vida pessoal e pública.

O processo não é novo, mas nos últimos anos as redes sociais e a difusão da intolerância no interior de alguns grupos e sociedades potenciaram-no imenso, fazendo com que, muitas vezes, uma escolha ou um simples gesto de determinada pessoa pública – político, pensador, escritor, artista, realizador, etc. – possa servir para apagar uma vida inteira e uma obra complexa e consagrada. Como caraterística adicional, a «cancel culture» toma a ínfima parte pelo todo, ignorando completamente todas as outras escolhas e posições que essa pessoa algum dia tomou, sobrevalorizando apenas uma delas, tantas vezes apreciada de forma ligeira, mas considerada o suficiente para determinar a rejeição de todas as outras e a mais completa exclusão.

Como se depreende, é uma prática profundamente antidemocrática, frequentes vezes desumana, que desvaloriza a crítica e o debate, ou a ponderação de situações, em função de um julgamento e de uma penalização sumários. Ao mesmo tempo, tende a impor determinados valores como absolutos e indiscutíveis, não suscetíveis de um esforço de contextualização histórica ou pessoal. Ela não se aplica, sublinhe-se, a crimes e a ideologias antagónicas e excludentes – onde o combate sem tréguas pode ser compreensível e até necessário –, mas apenas a escolhas pessoais, que ignoram contextos e tendem a produzir condenações a uma autêntica «morte em vida». Trata-se, por isso, de um retrocesso, de uma prática medieval, própria dos novos tempos sombrios que estamos a atravessar, que quem defende a democracia, a equidade e a liberdade de pensamento de modo algum pode aceitar.

Rui Bebiano

    Atualidade, Democracia, Direitos Humanos, Opinião.