Guerra, identidade e aversão ao outro

Sendo uma verdade que a história jamais se repete, pode ter alguma utilidade, na tentativa de compreender momentos complexos da vida dos povos e das nações, ensaiar comparações entre situações históricas situadas em diferentes tempos e lugares. Ao procurar refutar o filósofo Hegel por este ter afirmado que todos os factos e personagens de importância na história mundial ocorriam duas vezes, Marx escreveu no 18 de Brumário de Luís Bonaparte, terminado em 1852, que «ele esqueceu-se de acrescentar: a primeira como tragédia, a segunda como farsa». Vejamos se isto pode ser aplicado a um arriscado exercício de comparação entre o Portugal do século XVII e a atual Ucrânia.

A independência do reino de Portugal foi confirmada pelo papa Alexandre III no distante ano de 1179. Todavia, a efetiva definição de Portugal como Estado dotado de identidade própria e diferenciada, que o conjunto dos seus naturais se encontrasse em condições de reconhecer e de adotar como suas, ocorreu perto de cinco séculos mais tarde, durante a longa Guerra da Restauração da independência travada contra Madrid entre 1640 e 1668. A par da reestruturação do exército para as necessárias operações militares, da reforma das estruturas dos poderes central e local e de uma dinâmica atividade diplomática destinada a conquistar aliados, na qual a própria Igreja católica desempenhou um papel, boa parte do esforço das novas autoridades dedicou-se a iniciativas na área do que pode hoje designar-se a cultura e a comunicação, destinadas a mobilizar a população para o esforço de guerra. 

Numa altura em que o castelhano se tornara já a língua mais usada entre as elites cultas, foi realizado trabalho para autonomizar e dinamizar a língua portuguesa, tendo a edição de livros e a imprensa escrita – o primeiro jornal nacional, a Gazeta da Restauração, surgiu em 1641 – desempenhado um papel crucial. Como exemplo, o escritor, político e militar Francisco Manuel de Melo, hoje figura notável da história literária de ambos os Estados ibéricos, não mais voltou a escrever em castelhano. Foram também de grande importância a publicação de obras de caráter histórico, geográfico e propagandístico destinadas a sublinhar a legitimidade histórica da independência e a dar à população uma ideia sustentada da dimensão e da diversidade do reino. O conhecido anti-espanholismo de que parte importante dos portugueses ainda não se emancipou de todo radica em boa medida nesse esforço.

Um conjunto de medidas adotadas na Ucrânia no atual contexto de guerra com a Rússia evoca, com o devido distanciamento histórico, esta experiência. A resistência armada perante o mais poderoso Estado agressor tem sido acompanhada de iniciativas destinadas a reforçar a legitimidade da sua independência e da sua identidade como nação, bem como a construir um processo de ocultação e recusa da cultura russa. Além de iniciativas destinadas a rasurar personalidades russas da toponímia e a prevenir o uso da língua do inimigo, foram, por exemplo, proibidas a transmissão na rádio e na televisão e a apresentação em espaços públicos de muitos artistas do lado de lá da fronteira – de fora, por terem vivido em períodos anteriores ao contexto pós-soviético, ficaram apenas compositores como Tchaikovsky ou Chostakovich – bem como a distribuição de livros de autores nascidos na Rússia, mesmo de clássicos universais como Tolstói e Dostoiévski. 

Trata-se de uma vertente do esforço de guerra que na atualidade, quando os processos de construção identitária seguem processos bem diversos dos que tinham lugar no século XVII e a liberdade de expressão detém na vida dos povos um valor constitutivo muito mais forte, acaba por ser contraproducente para a própria Ucrânia, dado representar um atentado contra um património que é mundial e fornecer de mão-beijada argumentos aos seus inimigos. Apoiar a resistência dos ucranianos contra a agressão imperial determinada por Vladimir Putin de modo algum pode passar, mesmo entendendo a ira de quem assiste ao espetáculo diário de destruição e morte dentro do seu próprio país, por aceitar medidas tão erradas quanto estas. Capazes, afinal, de juntar a farsa e a tragédia.

Rui Bebiano

Fotografia: UNICEF/Gilbertson
Publicado no Diário As Beiras de 25/6/2022
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