Nem sacerdote, nem anjo

Como historiador profissional que ao mesmo tempo tem uma intervenção pública regular enquanto cidadão e não separa com um cordão electrificado as duas qualidades, de tempos a tempos encontro sempre alguém que, ao discordar de uma opinião que possa ter expresso, justifica essa discordância associando, a razões ou desacordos inteiramente legítimos, uma frase que integra um juízo de valor inaceitável: «parece impossível um historiador escrever isto». Não porque eventualmente tenha expresso algo de errado ou de impreciso do ponto de vista do conhecimento do passado, mas porque a pessoa que emite esse juízo chama à colação uma certa ideia de historiador que o desqualifica se ousar sujar as mãos na realidade do mundo em que vive. Como se fosse um sacerdote, um etéreo oficiante do passado, que teria o dever de se desvincular inteiramente do presente, ainda que muitas das opiniões que neste campo emita o possam ser na sua qualidade de cidadão, não de profissional do «métier».

É claro que não posso senão discordar deste juízo, até porque, para além da sua necessária dimensão de objetividade e de rigor, a história, enquanto saber analítico, integra igualmente uma forte componente de inevitável subjetividade ou de relativa imprecisão. Sempre, mesmo que com ela recuemos até aos sumérios, aos incas ou à Grécia antiga, supostamente purificados pela distância temporal. Além disso, a história, tanto aquela que diz respeito a eras mais recuadas, quanto a mais próxima do presente, apenas faz sentido como instrumento de interação com o mundo e com a cidadania. E o historiador não é um anjo que vive lá em cima, nas nuvens. Todavia, esta realidade também não o liberta para dizer o que lhe vier à cabeça, uma vez que, tendo um conhecimento especializado sobre determinados temas, tem por isso o dever de sobre eles não proferir certas barbaridades – da ordem do negacionismo ou em abono de teorias da conspiração, por exemplo – quando sabe, ou pelo menos deveria saber, que elas não têm ponta por onde se lhes pegue em termos da objetividade possível.

    Apontamentos, Etc., História, Olhares.