1917: o céu, o inferno e a esperança


Devido à passagem do seu centenário, a Revolução de 1917 – a de Fevereiro, que derrubou a autocracia czarista e implantou um regime democrático incapaz de solucionar os graves problemas e conflitos que atravessavam a Rússia, e principalmente a de Outubro, que abriu caminho, através da intervenção dos bolcheviques, para a primeira grande experiência socialista da História –, está a ser objeto de uma atenção particular. Acontece por todo o lado, dada a repercussão histórica do acontecimento, das alterações políticas que determinou, e das hipóteses que projetou e continua a projetar. Aqui também, naturalmente.

Uma grande parte dos artigos de jornal, dos textos de opinião, das comunicações académicas, dos suplementos de revistas, das intervenções em sessões de evocação, observa-a, porém, a partir de posições extremas. Sejam aquelas marcadas por uma rejeição absoluta, de pendor fortemente anticomunista e, de caminho, voltadas contra toda a esquerda – veja-se o que aconteceu em Portugal com as insólitas acusações de «bolchevismo» lançadas a propósito da constituição da atual maioria parlamentar –, ou inversamente, numa posição puramente celebratória e muitas vezes nostálgica das experiências do antigo «socialismo real», cantando panegíricos e omitindo erros colossais. Retomando até leituras ultrapassadas, sem um esforço crítico de análise ou atenção à investigação histórica recente.

Em ambos os casos, a mentira, a deturpação, a simplificação, e sobretudo o silenciamento e a omissão, constituem a regra. Oferecendo, de um lado, uma visão essencialmente negativa, quando não catastrófica, da Revolução de Outubro, da sua história e das suas experiências mais importantes, ou então, do lado contrário, projetando olhares mitificados e simplistas, que apenas a glorificam e identificam como exemplo irrepreensível de uma tentativa que não falhou, apenas teria sido traída. Essas propostas tratam a experiência soviética, a da Revolução e a da construção do Estado, bem como aquelas que nela de algum modo depois se inspiraram, como lugares do Inferno ou projeções do Céu.

No entanto, e apesar de se mostrarem mais «mediatizáveis», estas duas perspetivas não são únicas. Nos últimos anos têm saído publicados excelentes estudos sobre o tema, ou com ele diretamente relacionados, e muitos investigadores têm produzido um esforço de compreensão e de divulgação de uma imagem mais completa, melhor informada e, por isso mesmo, mais verdadeira. Por motivos políticos, mas também profissionais, tenho acompanhado este tipo de abordagens, que mostram também a riqueza de projetos, a diversidade de possibilidades, a aquisição de conquistas, onde em regra as tendências simplificadoras apenas encontram o uno e o unívoco, desvalorizando, afinal, uma etapa crucial – tão inovadora e plena de utopia, quanto imperfeita ou povoada de percursos interrompidos – no caminho para a emancipação da humanidade.

A Revolução de 1917, em particular a sua dimensão que foi projetada a partir da experiência fundadora de Outubro, configura, no trajeto da história humana, apesar dos fracassos e até das sombrias perversões que o seu trajeto consentiu, uma possibilidade única, que remete para processos de transformação no sentido de um ideal humano de justiça social e de emancipação. Karl Marx via em Prometeu, o titã da mitologia grega, um símbolo da capacidade de rebelião contra o poder divino. Ela representou um momento histórico, um momento de esperança na possibilidade desse grito, capaz de descer dos céus para a vida humana, libertando-a da prisão que é viver sem a perspetiva da felicidade e da liberdade que vem com esta. É, pois, como sinal de uma hipótese que constituiu um momento memorável. Os males que também trouxe são só pedras no seu caminho.

Cartaz de Aleksandr Rodchenko

Publicado no Diário As Beiras de 4/11/2017.

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