vidros na areia
na medida da espuma
contorna-os
sem a margem do olhar
escapam os vidros
com medo do sangue
África deles
Jamais saberemos aquilo que resultará menos humilhante para a relação entre uns e os outros: se a antiga definição como exemplar do olhar ingénuo e predador dos exploradores da primeira vaga, se a exibição de frio calculismo do corpo de cavalaria empresarial por intermédio da qual a gerência da república procura agora promover o retorno das lusas gentes à África dos africanos.
Cliché Itália
A história da Itália – seja ela a da península conquistada pelos romanos, a da grande nação pulverizada durante séculos ou a do Estado ressurgido ao longo de Oitocentos – encontra-se, tal como a história de todos os povos, manchada tanto pelo excesso e pelo crime quanto pelo heroísmo e pela crença. Apesar deste grau de normalidade, a imagem estereotipada que transmite e com a qual envolve os seus naturais, é em regra simpática e positiva. A beleza panorâmica e a da maioria dos seus habitantes – apenas comparável, para um certo padrão de gosto, à da Croácia e à dos croatas – é associada a um património artístico e monumental esmagador, a uma literatura ágil e envolvente, a um cinema eternamente dinâmico, a prodígios de design, ao bom-gosto das roupas e do calçado, à comida e aos vinhos inesquecíveis. Bem como a uma certa bonomia das atitudes que foi até capaz de amaciar a dureza fascista (se a compararmos com a rigidez nazi-alemã), de integrar como parte do folclore os crimes mafiosos, de combinar o catolicismo dominante com a licenciosidade da moral e dos costumes. Os próprios comunistas italianos sempre foram, aliás, comunistas suaves. O sistema político, tradicionalmente moralista, incorporou sem se desmoronar figuras como a pornstar Cicciolina ou o travesti Vladimir. O futebol ganha títulos jogando à defesa, na combinação de uma irritante falta de coragem com souplesse e incríveis golpes de sorte. O «italiano» que imaginamos tem sempre qualquer coisa de capitão Bertorelli, da série Allô! Allô!, falando alto, sorrindo cúmplice, não se levando muito a sério. A «italiana» que concebemos é sempre uma Lollobrigida, morena, esbelta, sensual. Não será pois estranho que, entre tanto estereótipo, seja fácil encaixar o diálogo do anúncio no pobre debate político em curso, com Berlusconi dizendo «mas é a pasta!» e Prodi retorquindo «mas não, é o molho!». Pode ser que de tudo isto irrompa uma manhã qualquer coisa de menos previsível.
Selva manual
Apesar dos inevitáveis erros e do grau de incerteza que uma escolha entre diferentes leituras pode sempre conter, a decisão do governo no sentido de centralizar a escolha dos manuais escolares – atribuída nas últimas décadas a cada uma das diferentíssimas escolas, à competência sempre irregular de muitos dos seus docentes, às todo-poderosas influências comerciais das editoras – será positiva. Desde que não se aproxime da velha prática estado-novista do livro único, o que, bem vistas as coisas, a pluralidade essencial do tempo neste lado do planeta por certo impedirá. Permitindo um mais criterioso reconhecimento dos conteúdos e da qualidade pedagógica dos materiais, a medida poderá corrigir assim um dos efeitos nefastos da «regionalização no terreno». Ou, pelo menos, espera-se que assim aconteça.
Uma noite em Xangai
As autoridades da República Popular da China, que a maioria dos governos ocidentais constantemente bajula apesar dos graves e constantes ataques às liberdades fundamentais e aos direitos dos trabalhadores – tal como lhes admite a prática ininterrupta de crimes económicos e ambientais em escala planetária – acabam de proibir os Rolling Stones de incluirem algumas das suas canções no concerto que vão dar em Xangai. Brown Sugar, por exemplo. Ou Honky Tonk Woman. Ou Let’s Spend the Night Together. Os nossos relativistas baterão palmas, claro, venerando as respeitáveis condições da especificidade cultural chinesa. Sir Mick Jagger, sabendo muito bem que na China os Stones não são propriamente um fenómeno de massas, foi apenas irónico: «”I’m pleased that the Ministry of Culture is protecting the morals of the bankers and their girlfriends that are going to be coming.»
Crença
«A manhã», disse, «é um estado de espírito».
As pedras da calçada, ainda
Força já o bocejo a lengalenga sobre a impossível analogia que podemos estabelecer entre a rebelião estudantil francesa que se desenrola «sem horizontes definidos», e aqueles combates em redor de 1968 «que invocavam utopias futuras» (palavras de um daqueles invariavelmente seguríssimos textos dominicais de Mário Mesquita). Claro que a distância entre os dois momentos é enorme, como enorme é a separação abissal – ou «abismal», tal qual escreve e vulgariza a novilíngua jornalística – que distingue o actual meio estudantil daquele que existia há quatro décadas atrás (distância muito maior, sem dúvida, do que aquela que separa actualmente as realidades e as expectativas dos estudantes universitários franceses, portugueses ou mexicanos). Mas parece continuar sem se reconhecer a existência de um estado juvenil de «prontidão para a revolta», que, sendo historicamente recorrente a partir do pós-guerra, tem funcionado sempre como expressão de um profundo mal-estar e sinal de uma vontade de mudança tão intensa quanto mobilizadora. E que não é um simples caso de polícia.
Aconteceu em Montego Bay
Folclore regional
Fala-se de novo em regionalização e vale a pena reparar nas tentativas para, aqui ou além, devagar ou mais apressadamente, às claras ou recorrendo a subterfúgios, reerguer aquilo que em referendo, num fugaz assomo de colectiva sageza, a maioria dos portugueses recusou. Porque a regionalização da qual nos falam não é a necessária descentralização, mas sim a criação de novas centralidades regionais. Com a agravante de, num país em estado de óbvia indigência na qualificação política e técnica dos quadros políticos locais, essa eventualidade reforçar os poderes de quem nem para gerir convenientemente uma pequena junta de freguesia – com todo o respeito para com as pequenas juntas de freguesia – possui muitas vezes visão e capacidades. Naquela que se imagina ainda a terceira cidade do país – contando com a concentração urbana e o crescimento demográfico, talvez seja, de forma optimista, a oitava ou a nona – sente-se particularmente esse drama. Há anos, muitos, que uma cidade triste e deprimida como Coimbra – cujo amor-prórpio é apenas ciclicamente reiventado por scholars e estudantes à procura de referências identitárias – se vê gerida de forma autista, kitsch e, num certo sentido, esquizóide. Autista porque, cidade de fortes tradições democráticas e de abertura ao mundo, tem sido governada de forma essencialmente anti-cosmopolita e fora de uma efectiva cultura da participação. Kitsch porque lhe definem constantemente horizontes culturais a partir do mais provinciano mau-gosto. Esquizóide porque a todo o momento lhe indicam a repetição ad infinitum, visível sinal do seu atraso, como prova provada da grandeza do mundo. Seria então com gente responsável por tais desvarios, ou por aquela que preludia outros, na eventualidade com acrescidos poderes, que seguiria avante a regionalização de todos os perigos. Na «cidade dos doutores» como em muitos outros locais mais ou menos plebeus deste país de magnos problemas e tão distraídos cidadãos.
Que é diferente dos outros
Tenho um problema com o desaparecido blogue Barbané idêntico ao que certa vez tive com os extintos sabonetes Nordika. Quando descobri o seu suave cheiro a pinho, a forma como me levantavam a moral sob o duche da manhã, já estes haviam deixado de ser comercializados. Percorri então, um tanto desesperado, pequenas mercearias de bairro, lojas vende-tudo de ignotas aldeias, dispensas esquecidas de familiares, conseguindo reunir um stock que me permitiu dois anos extra de saponácea felicidade. Ao Barnabé, a esse comecei a segui-lo tardiamente, quando os seus autores estavam já para «descontinuá-lo». Felizmente, andam por aí, nas livrarias, alguns títulos de Rui Tavares, talvez aquele dos barnabitas que, por assim dizer, mais me sussurrava ao sentimento. D’O Pequeno Livro do Grande Terramoto tem-se falado bastante: um livro de história que devia servir de exemplo para a desgraçada escrita – e, certas vezes, desbaratada investigação – que domina ainda a tribo dos historiadores a que pertenço. Vou recomendá-lo aos meus alunos, claro, para lhes reacender o interesse (e a admiração) pelo conhecimento do passado e as mil formas de o contar. Sai agora Pobre e Mal Agradecido, ainda na Tinta da China, que inclui, entre outros textos imperdíveis do RT, da melhor e mais inclassificável prosa que alguma vez percorreu a blogaria lusitana. Tenho, para uns tempos, o meu suplemento de Barnabé.
A poesia também pode ser terrível
La
technique
dans la période
de reconstruction
décide
de
tout
De Magnitogorsk: Louis Aragon, 1932
Entretanto em Minsk
O Avante! considerou ser muito relevante «o facto da Bielorússia manter um sistema de auscultação popular alargado» e de no início do mês se terem «reunido pela terceira vez, milhares de delegados na Assembleia Popular de Toda a Bielorússia, na qual foram aprovadas as linhas de orientação socio-económica até ao ano de 2010». Mais adverte que, recentemente, o Presidente Lukashenko afirmou que «o nosso país segue com confiança na via do desenvolvimento escolhida pelo povo, na base da qual estão os ideais legados por Outubro: a paz, a liberdade, a igualdade e a justiça social». E assim sucessivamente.
Da servidão
Começa assim O Homem Revoltado: «Há crimes de paixão e crimes de lógica. Com uma certa dose de comodidade, distingue-os o Código Penal pela premeditação. Vivemos no tempo da premeditação e do crime perfeito. Os nossos criminosos já não são aquelas crianças desarmadas que invocam o amor como desculpa. Hoje, pelo contrário, são adultos, e o seu álibi irrefutável é a filosofia, que pode servir para tudo, até para transformar os assassinos em juízes». Publicado em 1951, o livro de Albert Camus marca a sua ruptura com Sartre, vinculando o ideal existencialista de liberdade à afirmação da autonomia individual e não tanto à integração do sujeito no movimento do colectivo, a qual ele acreditava conduzir ao estado de servidão. Por este motivo, Camus foi acusado de se haver passado para «a direita». As posições no interior de uma esquerda de matriz maioritariamente leninista omitiam, à época, a possibilidade da existência uma tirania do colectivo. Quase vinte anos depois da queda do Muro, os sucessores dessa tradição procuram ainda fugir à questão, vitimizando, se preciso for, alguns dos piores algozes da liberdade de opinião. Ou relativizando o valor da sua acção.
Medidor de paisagens
Somos protagonistas da paisagem, que é sempre uma representação única para cada um de nós. Por isso ela pode ser tão sublime quanto terrível, tão desolada quanto tranquila, impressionante ou monótona. Desaparecidos de vez os territórios selvagens e inexplorados do passado, sucedem-se agora as áreas desflorestadas, preenchidas com culturas intensivas, as manchas irregulares da urbanização, as estradas que se prolongam, alargam e multiplicam. Como as paisagens industriais, os parques de diversões, os subterrâneos por onde a vida humana continua, os campos de batalha. Somos aí actores e espectadores, voyeurs da nossa própria existência. Filmamo-nos e fotografamo-nos apenas para não nos perdermos no labirinto que nos serve de consolo.
A Monte
De repente, seis anos depois, o regresso feliz de Marisa Monte. E logo com dois cêdês, simultâneos e híbridos. Um, Infinito Particular, em fala pop que não é bem pop. Outro, Universo Ao Meu Redor, anunciado como disco «de samba» sem o ser propriamente. Em ambos, a música brasileira fora dos clichés habituais que nos chegam a cada mês. Bela, pujante e criativa – e inequivocamente contemporânea, sem todavia perder a identidade – tal como ela deveria sempre ser. Para ouvir sobretudo «quando a névoa toma conta da cidade».
Estado da arte
Do Mausoléu de V.M. Molotov (1890-1986), erguido em 1975, ainda em vida do falecido, por Hans Magnus Enzensberger*:
O seu traseiro de ferro também já não é
o que era. Só o apara-lápis pendurado
da corrente do relógio relembra ainda os anos dourados
no politburo. Medita, dá estalos com os dedos.
* Trad. de João Barrento
Sinofilia
No princípio da década de 1970, entre Lisboa e Viena, uma horda de jovens sedentos de justiça deixava-se seduzir pelas imagens edénicas de um mundo que presumia igualitário. A revista Nouvelle Chine – a edição em francês era aquela que chegava a boa parte de uma Europa maioritariamente francófona – mostrava cenários coloridos que pareciam de papel pintado. Operários trajados de forma sóbria, que se presumia honesta. Raparigas de cabelos uniformemente curtos e olhares luminosos. Camponeses esquálidos mas sorridentes, as pernas mergulhadas no lodo em prol do socialismo. Os maoístas ocidentais – que o próprio Mao, sabe-se hoje, se esforçava por manipular – mimavam, ainda que sem idênticos meios, os inflexíveis Guardas Vermelhos. Sonhavam acordados com a sua Grande Revolução Cultural Proletária. A mesma que ergueria na terra o Paraíso do uno. Sem passado ou divergências, sem o indivíduo fora do colectivo, sem ricos e também sem riqueza. Fait accompli: a felicidade ali à mão, indestrutível e para sempre. O reverso da visão cinematográfica de uma China contemporânea, desafortunada, aberta, mesmo que de forma condicionada, ao múltiplo e ao incerto, ao conflito e à mudança, à transposição das fronteiras, que emerge de O Mundo (2004), o filme de Jia Zhang-ke agora nos cinemas.
Voz do povo
Numa nota de imprensa escrita em 1947 pelo SNI de António Ferro, proclamava-se ser pelo folclore «que um povo reencontra o potencial poético característico da sua raça na sua forma mais cristalina e pura». O regresso em força, aos ecrãs televisivos, aos palcos das praças, aos desfiles alegóricos, às políticas culturais de alguns municípios, do folclorismo mais artificial, das cantadeiras mais aberrantes, do azedo arroto a chouriço, caldo verde e «boa pinga», assusta. Já repararam nele? Na forma como estão de volta o acordeão, os ferrinhos, a pandeireta? Como se insinuam outra vez, mostrando ao povo que o povo existe e, a cantar e a dançar, não deve querer ser senão povo? É provável que este retorno ao passado tenha alguma coisa a ver com uma recuperação da rusticidade – e do kitsch que lhe é frequentemente associado – consubstanciada na presidência saloia que agora se inicia.