Sim – um bom exemplo

«Todos os participantes neste blogue concordam com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado. E votarão “sim” no referendo de 11 de Fevereiro. Os argumentos de cada um são da sua exclusiva responsabilidade e não vinculam os restantes participantes.» Um bom exemplo, e um exemplo raro entre nós, daquilo que pode a recusa civilizada do sectarismo. Aqui por uma causa justa e absolutamente prioritária.

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    Pigarrear

    tosse colectiva
    Gosto de escrever sobre irrelevâncias. Mas, desta vez, prefiro abordar um assunto sério. O tema ocorreu-me quando lia O Anjo Pornográfico, a extraordinária biografia do extraordinário Nelson Rodrigues, publicada em 1992 por Ruy Castro e agora reeditada pela Companhia das Letras. Fala o autor, a dado passo, da chegada da família de Nelson ao Rio, provinda do Recife, e do ambiente com o qual esta deparou na Aldeia Campista, distante subúrbio da cidade que então ainda se não autoproclamava «maravilhosa». Estamos em 1919:

    «Era também uma vizinhança que tossia em grupo. Não que fosse uma comunidade de tísicos. O brasileiro é que tossia muito naquele tempo. Qualquer agrupamento numa sala era um pânico. Começava por um solitário pigarro. alguém aderia. Logo se juntavam as tosses secas, os chiados de asma, os assovios de bronquites e, num instante, a sala inteira era um festival de expectorações. Por isto, em todas as salas, em lugar de honra, entronizava-se a escarradeira. Uma escarradeira “Hygea”, branca, de louça, com o caule que se abria em lírio ou copo-de-leite. No resto, a vida era simples.»

    À data, convirá que se saiba, eu não tinha nascido ainda. Digamos, porém, que quarenta anos depois já por cá andava. Ora minha memória recua a um tempo no qual ainda por aqui sobrevivia o hábito, ao que se vê transatlântico, de tossir em sociedade. Em casa ou na rua, nas missas e nas procissões, nos velórios também, como no teatro, no cinema, nos corredores e antecâmaras dos edifícios públicos ou privados, pigarreava-se muito mais do que hoje. Ao ponto de as repartições do Estado, como os cafés e até alguns restaurantes, possuírem, em regra, um vaso de porcelana ou de ferro esmaltado idêntico aquele que Castro descreve. Perguntei a pessoas em condições de partilharem a minha memória se o confirmavam: «É verdade, nunca tinha pensado nisso! Mas lembro-me, sim, daqueles momentos de convulsão incontrolável!»

    Se retirarmos os espectáculos de ópera e os concertos para quartetos de cordas, ou as tomadas de posse, agora já em momento algum se encontram com facilidade acessos colectivos dessa natureza. Especulando um pouco, que é para isso que aqui estamos: presumo que se trataria de uma moda, de uma «prática costumeira», como dizia alguém. Ou então de uma forma subliminar de dar a volta ao apertado controlo social e às limitações impostas pela censura. Em democracia, felizmente, só pigarreia quem precisa. E quando lhe apetece. Ou pelo menos deveria ser assim.

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      Xarope Carla

      Carla Bruni é uma mulher bonita. Bom, não o será para todos os gostos, mas dará certamente nas vistas onde quer que possa dar quatro passos seguidos, sentando-se de seguida e cruzando as pernas. Faz parte daquela franja do mundo das top-model que, num estalido de dedos, passou do veludo carmesim para as capas de revista. Agora que aquela voz e aquela música são débeis e repetitivos, não tenho a menor dúvida. Eu quero lá saber da fotogenia da mulher, que ela seja amiga do Paco Rabane e do John Galliano, que se tenha envolvido com o Mick Jagger ou o Kevin Costner, que agora cantarole textos de Wiliam Butler Yeats, Emily Dickinson ou Dorothy Parker! Tal como o anterior, o álbum No Promises é um bocejo e uma porcaria. E não digam, honra lhe seja feita, que ela não nos avisou: o aviso está mesmo ali, no título.

        Coentro, cúrcuma e tal

        Nem seria preciso dizer, mas o presidente confessou a uma jornalista que não gosta da comida indiana. Com os seus sabores intensos e exorbitantes temperos deixam-lhe a língua em chamas, a testa liquefeita, o pescoço afogueado. E um presidente não deve. Ninguém o pode forçar ao suplício, naturalmente, embora, por dever de representação de um povo de antepassados façanhudos e epopeicos, lhe ficasse bem provar um pouco daquilo que, pela medida grossa, decerto Almeidas e Albuquerques provaram. E a Scientific American até acaba de revelar que o caril – como se sabe, uma mistura destrambelhada de gengibre, coentro, cúrcuma, noz moscada, pimenta-do-reino, cravo-da-índia, açafrão e eu sei lá o quê mais – pode produzir efeitos terapêuticos no tratamento da doença de Alzheimer, do cancro e de outras maleitas igualmente ruins. Mas uma vida inteira de comedimento e de morigeração deixa as suas marcas no que toca ao confronto com os excessos. Há, pois, que soerguer as virtudes de um arroz modesto e imaculado. De uma bolachinha de água e sal. De lusíadas sem canto nono, que apenas desorbitam com uma fatia de bolo-rei.

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          Da resistência das mulheres-leitoras

          leitora

          A deixa de Alberto Manguel tomada aqui como «frase do mês» («Ler será, no futuro, um acto de rebeldia») serviu de mote para um post do Rui Ângelo Araújo que me agrada desde logo pelo título. «Literatura, mamas e rabos» é assunto que me levanta sempre a moral, e verificar que não me encontro sozinho nos gostos mais profundos – a inveja será mesmo o único dos sete pecados mortais que não pratico – é coisa que sinceramente me apraz.

          Comentar a frase de Manguel pode ser um exercício complicado. Até porque – não está ali mas está em tudo aquilo que o argentino diz ou escreve (e também na entrevista ao El País de sábado da qual a retirei) – ele se reporta a um tipo de leitura considerada pelo ex-guru do digital Nicholas Negroponte, há mais ou menos uma década atrás, como exercida no domínio dos «átomos». Em papel. Na forma de livro, de revista ou jornal. Será pois no território de sobrevivência deste género tendencialmente minoritário de leitura que Manguel parece conceber a constituição gradual de ilhotas de resistentes. Sobranceiros, eventualmente conservadores, estranhíssimos sem dúvida alguma, mas resistentes.

          Mas o post dos Canhões de Navarone parte daqui para um outro assunto que fez soar em mim uma campainha. Para o poder referir, vou-me travestir por brevíssimos instantes de um daqueles simpáticos jovens que, a troco de alguns euros, efectua inquéritos para sondagens públicas. Pela parte do mundo que vou cruzando, e da qual vou mentalmente procurando anotar as práticas e costumes, sou levado também a concluir que as mulheres lêem mais que os homens. Ou melhor, lêem muito mais que os homens. Não sei se será por uma questão de sensibilidade, de distribuição mais racional dos horários, de inteligência, de concentração nas coisas essenciais, mas parece-me ser assim. E assim sendo, se o cenário se não alterar, um papel decisivo na condução da futura resistência dos humanos-leitores estará necessariamente nas mãos delas. Parece-me um belíssimo cenário e, se puder, cá estarei, junto com as minhas dioptrias, para nele partilhar a resistente existência.

            Devaneios

            Duas noites com Scorsese

            De Sica Rossellini Fellini

            A tecnologia do digital permite agora um retorno sistemático à memória do cinema. Pelas mãos de Martin Scorsese, uma pequena caixa com quatro dvd que acaba de ser editada conduz-nos assim através de duas viagens por uma época decisiva da história dos cinemas americano e italiano. Aquela que mais indiscutivelmente marcou, ainda que apenas como um eco, a formação essencial de grande parte dos realizadores contemporâneos, bem como a sensibilidade e a «recordação fílmica» de sucessivas gerações dos amantes da arte.

            A possibilidade de uma recuperação dos filmes dos anos cinquenta é, aliás, tanto mais importante quanto a televisão quase deixou de os passar. Hoje, a generalidade dos canais interessa-se mais por filmes dotados de uma visualidade capaz de se impor de maneira imediata a um público nivelado por baixo, e isso significa, desde logo, o recurso incontornável à cor, a argumentos providos de «acção», a um erotismo contemporâneo e a todo o tipo de efeitos especiais. O entretenimento comanda a programação do cinema televisivo, deixando implícito que quem não gostar deverá procurar alternativas por sua própria conta e risco.

            Estes filmes apontam, porém, numa outra direcção. Enquanto uma parte do público revê neles imagens e enredos que para si serão matriciais, a outra pode descobrir por seu intermédio um universo que actualmente se encontra quase compulsivamente afastado das salas de projecção. É esse o exercício para o qual nos convida Scorsese, colocado aqui na posição do rapaz italo-americano de classe média-baixa que, pela década de 1950, na sua casa familiar de Little Italy, descobria, através do pequeno monitor de cantos curvos de uma televisão a preto e branco – por vezes em cópias cortadas e de baixa qualidade, inevitavelmente dobradas em inglês – a magia e a veemência dramática do grande cinema.

            A caixa transporta dois dvd duplos: o primeiro deles com Uma Viagem com Martin Scorsese pelo Cinema Americano (1995), que ainda não pude ver, e o outro A Minha Viagem a Itália (1999), que me ocupou em duas intensas noites. A partir do fundador Roma città aperta (1945), de Roberto Rossellini, o autor de Taxi Driver percorre ali algumas das referências do cinema italiano do pós-guerra e o seu imediato desenvolvimento, centrado nas diversas fases dessa revolução neorealista que, tanto no domínio dos processos da realização quanto no que respeita ao impacto junto da sensibilidade do espectador, redefiniria para sempre a arte do cinema. Um trajecto de revisitação sentimental, através de filmes-documento, considerados centrais nas obras do mesmo Rossellini, de Vittorio De Sica, de Luchino Visconti, de Federico Fellini ou de Michelangelo Antonioni, que nos ensinam e, ao mesmo tempo, nos deixam algo ébrios de uma beleza antiga mas muito bem conservada. Rendidos, durante 246 minutos, ao puro prazer de ver contar histórias – e de ver correr a história – tendo a câmara por confidente.

            Adenda – Como é sabido, o bom conhecimento de uma língua não faz um bom tradutor. Em Portugal, a tradução de livros tem vindo a melhorar nos últimos anos, mas a televisão e o cinema continuam a aceitar tradutores que, por vezes, não possuem um background cultural mínimo para a tarefa que lhes foi destinada. Neste caso, o trabalho executado parece bastante razoável, mas aqui e ali tropeçamos com palavras em relação às quais teria sido conveniente o recurso a algumas leituras. Exemplo: os omnipresentes partigiani (plural de partigiano) repetidamente convertidos em partidários! Além do mais, incomoda.

            Publicado também em Passado/Presente

              Cinema, Olhares

              Da sabedoria 7

              Schopenhauer

              Schopenhauer, 1788–1860 (A Arte de Ser Feliz)

              «A nossa felicidade depende sempre daquilo que somos, da nossa individualidade, embora, na maioria das vezes, não tomemos em linha de conta senão o nosso destino e aquilo que possuímos. O destino pode ir-se melhorando, e a frugalidade não reclama dele grande coisa: mas um idiota não deixa de ser um idiota e um indivíduo grosseiro permanece sempre um indivíduo grosseiro, ainda que se veja rodeado de belas mulheres. Eis o motivo pelo qual, segundo Goethe, “a felicidade suprema é a personalidade”.

              Para falar com propriedade, aquilo que para ele é essencial, a verdadeira existência do homem, consiste manifestamente naquilo que acontece no seu interior, e que é o resultado daquilo que ele sente, vê ou pensa. Dentro do mesmo ambiente, cada um vive num mundo à parte, e os mesmos acontecimentos exteriores afectam cada um de maneira particular. A diferença que nasce destas disposições íntimas é maior do que aquela que as circunstâncias exteriores estabelecem entre diferentes seres humanos.

              De resto, de maneira imediata, cada um deve preocupar-se principalmente com as suas representações, as suas sensações, a expressão da sua vontade; as coisas exteriores não têm influência senão na medida em que as estimulam. Cada um vive, efectivamente, através das suas disposições íntimas, sendo elas que tornam a sua vida feliz ou infeliz.»

              Conclui-se aqui a tradução de alguns dos «Dez Textos Fundamentais da Sabedoria», enunciados no dossier «La Sagesse» publicado no Le Monde des Religions.

                Recortes

                A Gestão segundo T.S.

                walking
                Em tempo de crise generalizada, resolvi meter alguma ordem nas finanças domésticas. Tal como muitos outros desajeitados em quaisquer assuntos que envolvam dinheiro, sempre tive o hábito de pôr imediatamente de parte os suplementos de economia dos jornais. Abri uma excepção para o Dia D, talvez por este conter uma secção sobre gadgets de informática e por ser escrito de forma simples, como convém ao leitor completamente leigo nas matérias versadas. Porém, procurando assumir uma nova atitude, resolvi numa destas manhãs olhar no quiosque para as publicações que tratam o dinheiro por tu. Reparei então na capa da Executive Digest, contendo a cara familiar da principal personagem de The Sopranos, com uma chamada de atenção para um livro no qual o boss mafioso de New Jersey surgiria como exemplo para algumas lições elementares de gestão.

                Entrei na livraria mais próxima e procurei o livro. Afinal, o autor de A Gestão segundo Tony Soprano não era James Gandolfini, nem Tony himself, mas sim um tal Anthony Schneider, publicitário e fabricante de videogames. Pensando que estava a dar os primeiros passos na direcção de uma boa gestão do meu dinheiro, resolvi não comprar o livro e lê-lo ali mesmo, apenas com o dispêndio de algum tempo livre e a complacência das empregadas (e poupando 12 euros e 48 cêntimos). A espécie de leitura demorou uma meia-hora. Claro que não li tudo, mas julgo que percebi a ideia: propor, com recurso a numerosos exemplos práticos, a adequação das práticas de gestão de uma associação de criminosos à direcção de uma qualquer actividade empresarial lucrativa. Afinal, a Gestão é uma Ciência, com direito a publicações especializadas, prestigiadas escolas superiores e professores catedráticos de obra assaz consagrada, pelo que deve situar-se acima de qualquer parcialidade ou suspeita.

                Acabei por copiar um parágrafo, que me pareceu resumir o tom geral da obra:

                «Tony Soprano é um líder eficaz porque cada faceta do seu estilo de liderança responde às necessidades do seu negócio, responde aos desafios postos pelos concorrentes e reflecte o modo como a sua gente trabalha. Como o seu ambiente de negócios está em constante mutação, Tony é rápido, flexível e directo. Como a sua empresa se estende por diversas áreas e repousa em parcerias complexas, é decisivo e rápido a implementar mudanças. Como o seu negócio tem tudo a ver [sic] com pessoas, ele valoriza a confiança, o respeito e a responsabilidade, e sabe como delegar. Como a sua indústria é difícil e os tempos são duros, tem uma visão clara da sua vida e do seu trabalho e pressiona os subordinados e os parceiros para tirar o melhor dessa visão. Como quer que a sua equipa tenha êxito, instila confiança e ama a sua gente. quando há acordos, negoceia rapidamente e bem. quando surgem conflitos, resolve-os. (…) A atitude de Tony Soprano é ideal para os negócios e a economia global de hoje.»

                Fiquei pois a saber que para se ser um bom gestor não é necessário ter elevados princípios morais e é inteiramente proibido o exercício da franqueza. Aquilo que conta são os objectivos e, como se diz ultimamente a propósito de tudo e de nada, «as competências». Admitindo a ausência de jeito, desconfio que ainda não seja desta que me converto a uma mini-carreira de gestor.

                  A múmia

                  O Mausoléu de Lenine, onde habita o fundador da extinta União Soviética, foi reaberto hoje ao público, após 59 dias fechado para obras, informou Serguei Deviatov, porta-voz do Serviço Federal de Segurança do Kremlin. Em declarações à agência russa RIA Novosti, Deviatov informou que todos os trabalhos dos cientistas responsáveis pela múmia concluíram que o túmulo pode ser visitado novamente pelo público. O director do Centro de Tecnologias Biológicas e de Medicina da Rússia, Valeri Bikov, afirmou que a múmia do fundador do Estado soviético se encontra em perfeito estado de conservação. Segundo Bíkov, o trabalho dos cientistas «permitirá conservar o corpo de Lenine por um tempo indefinido». O culto do mórbido prevalece: o Museu Britânico terá de esperar.

                    Etc.

                    Calar-se de vez

                    calar-se
                    Em artigo no L’Espresso, Umberto Eco aborda o medo de falar, e até de rir, com o qual somos hoje confrontados. Lembra que «os tabus não são todos imputáveis aos fundamentalistas muçulmanos» – os quais, aliás, considera não brincarem em serviço no que toca à susceptibilidade –, tendo começado, antes da vaga desencadeada pelos islamitas radicais e aceite complacentemente pelos órfãos de causas do ocidente, «com a ideologia do politicamente correcto». Inspirada, como se sabe, por um sentimento de respeito para com o outro e para com todos, ela limita-nos agora na prática de um dos melhores exercícios para a aceitação da diferença. Refiro-me ao humor, aquele humor capaz de jogar com as peculiaridades, manifestas ou caricaturadas, de cada pessoa ou de cada grupo. Quem tem mais de trinta e cinco anos recordar-se-á, com toda a certeza, da forma desinibida como no princípio da década de 1980 os simpatizantes portugueses da Frelimo contavam «anedotas do Samora» de mesma maneira terna e cúmplice utilizada por um tanoeiro de Vila Pouca de Aguiar para contar «anedotas do Bocage». Hoje isso seria muito difícil sem conflitos e autocensura pelo meio. E nos EUA, o constrangimento chega ao ponto de não apenas se evitar contar piadas sobre negros, loiras, gays, lésbicas, judeus, muçulmanos ou deficientes, mas igualmente de cada um isentar de tais brincadeiras, nota ainda Eco, «escoceses, genoveses, belgas, bombeiros, varredores do lixo e esquimós» (ou inuit, para não ofender ninguém). Tratar tudo com gravidade – o que não significa, obviamente, levar tudo a sério – passa cada vez mais por medir as palavras, algumas vezes até ao limite do caricato, por desviar a conversa, omitir, ou simplesmente calar-se. Mesmo em questões de princípio, uma vez que, acima de tudo, importa nesta lógica não ferir com qualquer insinuação a condição ou os valores de quem não pensa como nós. Num mundo cada vez mais colorido pela variedade das culturas e pelas formas de mestiçagem, poderemos por um dia destes, paradoxalmente, ver-nos forçados a deixar de contar anedotas e a falar apenas de vacuidades (o tempo e o piso das estradas são temas seguros, mas já a comida, o sexo ou o desporto, não sei…). Ou então a calar-nos de vez, não vá um telemóvel – provido de gravador de voz ou de câmara de vídeo – tramar-nos bem tramados.

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                      A notícia podia ser igual a outras que periodicamente aparecem nos jornais. Num hospital do norte, uma troca de identidades desencadeara os rituais da morte na família errada, trazendo o luto e graves transtornos aos filhos de uma mulher que, afinal, ainda irá comemorar os 95 anos de vida. Tudo ficaria esclarecido pela intervenção do agente funerário entretanto contratado, mas, como vem sendo habitual, sem uma frase de explicação ou um pedido de desculpas da parte do hospital. Os familiares sentiram mas calaram: «Quem é pobre nunca tem razão e sei lá se ainda se vingam nela», dizia a filha à jornalista, «os pobres têm de comer e calar». Poderia ser a atitude típica dos filhos do salazarismo que dele herdaram sobretudo a mudez e a desprotecção. Parece-lhes preferível engolir em seco: «houve um senhor que se ofereceu para escrever o que se passou num livro amarelo, mas eu recusei-me a assinar», explica a mulher, «pois a gente nunca sabe quando vai voltar a precisar deles». Hoje sou capaz de entender os seus temores.

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                        Bloco de notas

                        Uma chamada de atenção para «Blogging, the nihilist impulse», um longo e excelente artigo do holandês Geert Lovink, teórico da comunicação, crítico e activista, publicado – em neerlandês, mas, descansem, também em inglês e com uma versão printable em pdf – no igualmente excelente e sempre estimulante Eurozine. E outra para as breves respostas do autor deste blogue ao inquérito acerca da blogosfera que tem vindo a ser revelado, no Miniscente, por Luís Carmelo.

                          Etc.

                          Pena capital

                          A irritação crescente das actuais autoridades iraquianas, e a preocupação dos seus extremosos patronos, perante a gravação-pirata da execução de Saddam, provêm, essencialmente, do facto daquilo que se presumia ser o registo de um mero apagamento da história haver dado lugar a um manifesto contra o horror e a desrazão da pena capital. As autoridades chinesas também devem ter ficado um tanto ou quanto agastadas com o ruído à volta do tema. Resta saber se, nos assépticos corredores da morte das penitenciárias do lado de lá do Atlântico, as coisas se passarão dessa forma tão branca, sedada e silenciosa que costumam descrever-nos.

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                            Da sabedoria 6

                            Montaigne

                            Montaigne, 1533–1592 (Ensaios)

                            «Não deverá surpreender, afirmou certa vez um antigo, que o acaso possa exercer tão grande influência sobre nós, uma vez que vivemos justamente do acaso. A quem não tenha dedicado toda a sua vida a um único objectivo, torna-se impossível dispor convenientemente das acções individuais. Quem não disponha de uma concepção única do todo jamais poderá ordenar rigorosamente as partes.

                            Para que servirá afinal fornecer a alguém a paleta de todas as cores, se esse alguém não souber o que pintar? Ninguém será capaz de prever toda a sua vida e somos incapazes de viver de outra forma que não seja por parcelas. Afinal, o archeiro deve conhecer primeiramente o seu alvo e só depois acomodar a mão, o arco, a corda, a flecha e os movimentos.

                            Nunca existirá um vento favorável para aquele que não sabe a que porto se dirigir. Somos todos apenas pedaços, e de uma textura tão informe e diversa que cada peça e cada movimento fazem o seu próprio jogo. Por isso encontramos, na relação com os outros, uma distância tão grande quanto aquela que os outros encontram na sua relação connosco.»

                              Recortes

                              Ano Novo de novo

                              Podemos, como sempre, repetir a receita de Carlos. Ou adiar. Só por mais um ano.

                              Para ganhar um ano-novo
                              que mereça este nome,
                              você, meu caro, tem de merecê-lo,
                              tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
                              mas tente, experimente, consciente.
                              É dentro de você que o Ano Novo
                              cochila e espera desde sempre
                              .

                                Recortes

                                O silêncio

                                Sem a expectativa de uma surpresa, mas esperando intimamente enganar-me, percorri hoje as páginas oficiais na Internet do PCP e do Bloco de Esquerda. Tão empenhadas na denúncia da política americana para o Iraque, nenhuma das organizações inclui ali uma palavra sobre a execução de Saddam Hussein, sobre a infâmia absoluta da pena de morte, sobre as consequências negativas para a paz na região – e para o próprio ajuste de contas com a história – que este acto bárbaro irá inevitavelmente suscitar. Preocupadas quase exclusivamente com o seu lugar simbólico na política autárquica e na actividade legislativa, ambas mostram, também por este indício, como para além da previsibilidade das suas agendas e das bandeiras do momento habitam hoje um deserto de causas. Como outras, igualmente esquecidas ou apenas ignoradas, até a campanha pelo sim no referendo sobre o aborto permaneceu no seu discurso, durante anos, em estado de semi-hibernação. O drama é que esse deserto tem secado tudo aquilo que poderia crescer fora dele. A indignação profunda perante a iniquidade, aquela que se não pode deixar atar pela lógica da oportunidade política, da contabilidade miserável das sondagens ou da ficção do pequeno poder, vive abandonada. Este caso é apenas um indício.

                                Pós-nota: tomo como minhas as palavras directas do Luís Mourão

                                  Opinião

                                  Porquinhos e censurados

                                  Segundo o Yorkshire Post, a directora de uma escola inglesa da região, preocupadíssima com a sensibilidade religiosa dos seus pequenos alunos, maioritariamente provenientes de famílias muçulmanas, resolveu retirar da biblioteca os livros que mencionavam a história de Prático, Heitor e Cícero, os conhecidos Três Porquinhos. Sempre achei as peripécias destes bichos humanizados – concebidas no século XVIII mas definitivamente popularizadas, a partir de 1843, com as Nursery Rhymes and Nursery Tales de James Orchard Halliwell-Phillipps – uma coisa desenxabida, piorada depois na versão moralista e um tanto apatetada de Walt Disney. O mais interessante da história era sem dúvida o seu vilão, o Lobo Mau, que surgia como referente simbólico de um dos grandes medos que durante séculos afligiram os europeus. Mas aquilo que terá incomodado a senhora foi antes a referência subliminar – que deveria ser omitida em nome de uma maneira servil, e um bocadinho patológica convenhamos, de entender a diversidade cultural – a qualquer coisa de comestível. Como carne de porco, por exemplo.

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