Early Morning games

Com os netos a brincar um pouco adiante, dois homens – «feitos», como se dizia antes – inventam à minha frente uma vida trepidante. Por alguns minutos não percebi bem do que falavam eles, assim com todo aquele entusiasmo. Apenas o final de uma frase me ofereceu a chave: «Vais pela estrada e paras junto à casa amarela. Sais do carro e entras na floresta. E segues por ali dentro, mas com muito cuidado, por causa dos índios. Mas atenção, que nem todos eles são de evitar! Pelas pinturas de guerra percebes logo que alguns são diferentes. São os da tribo Tanduí, dos quais te deves fazer amigo. Se conseguires, eles integram-te na tribo e, depois de alguns rituais, oferecem-te o anel Mankala. E será com esse anel no dedo que conseguirás aceder ao nível seguinte.»

    Devaneios, Etc.

    Vítimas e «mártires»

    Franco

    Em Espanha, a Igreja católica contra-ataca numa altura em que se discute a Lei da Memória Histórica, a qual propõe a reparação póstuma das vítimas do franquismo e da Guerra Civil. Prepara-se assim, para o próximo Outono, a beatificação em massa de 2 bispos, 24 padres, 462 religiosos, um diácono, um subdiácono, um seminarista e sete leigos, eufemisticamente designados pela hierarquia eclesiástica como «mártires da perseguição religiosa dos anos trinta». Os fantasmas do passado parece quererem retomar o seu lugar. Algumas das suas causas também.

    Adenda: Vale a pena conhecer o edificante caso da beata Eusébia Palomino, patrona dos adivinhos.

      Apontamentos, História

      Blogues: (9) Um território amoral

      Ódio

      Existe um «lado negro da Internet» que passa principalmente pelos blogues. Nele sobrepõe-se a voz do mais forte (aquele que sabe produzir engodos, que dispõe de tempo e de estrutura para investir na agressividade). Não se trata apenas de caminhar por subúrbios perigosos pisando ou atravessando a fronteira do delito (o terrorismo, a pornografia, o extremismo político e religioso, a economia paralela, a fraude), mas de comunicar sem um código ético perceptível. Aqui a utilização do anonimato (não do pseudónimo consistente), associada à utilização parasitária das caixas de comentários, favorece o insulto, a calúnia, a provocação, a instalação da dúvida em relação à fala do outro. Quando alimentado, este ambiente torna-se insuportável, empurrando leitores e criadores para diferentes destinos.

      [De um conjunto de doze posts usados durante uma conversa sobre blogues que teve lugar na livraria Almedina-Estádio, Coimbra]

        Cibercultura, Etc.

        A tradução como crime

        Comprei Um Olhar Sobre o Holocausto, livro já com alguns anos da historiadora e antropóloga australiana Inga Clendinnen editado agora pela Prefácio (Reading the Holocaust, Cambridge U. Press, 1999), onde esta examina testemunhos de sobreviventes como Primo Levi ou Charlotte Delbo. Não conhecia a edição original e, reconheço agora que um pouco ingenuamente, confiei no facto de a qualidade das traduções de livros editados em Portugal ter vindo nos últimos anos a melhorar bastante. O volume tem 302 páginas, mas abandonei-o num instante. É que não tinha assim tanta necessidade de o ler que justificasse o tormento que foi seguir a tradução assinada por A. Mata. E foi praticamente impossível descortinar um parágrafo que não contivesse frases inteiras absolutamente incompreensíveis ou vertidas para um português inenarrável, quase ilegível, desprovido do mínimo exigível de cuidado literário ou mesmo de sentido. Ao acaso: «Eu estava especialmente aterrorizada com os alemães porque eles claramente glorificavam a sua perversidade»; ou «apesar da similaridade dos motivos, as duas experiências estudadas [as duas Guerras Mundiais] tiveram resultados diferentes»; ou ainda «sobre o Holocausto eu não tinha nenhum sentimento de compreensão acumulada». Isto só nas primeiras duas páginas de texto. Continuando: «Experimentei opiniões académicas correntes», «face a uma catástrofe destas dimensões, tão propositadamente infligida, a perplexidade é uma indulgência», «os ciganos eram classificados como insociáveis», «os ciganos fizeram do esquecimento uma arte», «há um mistério principal sobre a compreensão», etc., etc., etc. Já agora: como pode alguém que simplesmente leia livros com alguma regularidade referir-se aos Romani (os ciganos do leste europeu) como Romanos? E parei na página 48, final do capítulo I, pois toda a paciência tem os seus limites.

        Também em Passado/Presente

          Homem-sanduíche

          Uma rapariga com um sorriso atraente olha-me e considera, talvez pelo meu aspecto aparentemente asseado e pelo telemóvel de que me sirvo enquanto caminho, que deverei possuir «um automóvel recente e em bom estado». Parece-lhe-á que também tenho ar de quem «não utiliza parques de estacionamento». Entrega-me então um panfleto com uma proposta objectiva: deixo que o meu carro seja decorado com publicidade – «a imagem de grandes marcas» – e serei remunerado por isso. Em breve, alguém me sugerirá que cole um anúncio da Sony ou da Gillette na mochila e passeie em lugares públicos com ele bem visível. Depois que tatue o logótipo da BMW na testa e sorria com ar cool a quem quer que por mim passe na rua. Serei remunerado por isso, coisa que faz sempre jeito a um funcionário público presumivelmente honesto.

            Apontamentos, Devaneios

            Surpresas

            Gosto, gosto muito, dos blogues que me surpreendem com uma fala que nada tem a ver com a minha, com nomes que nada me dizem. Pensar como jamais poderei pensar, escrever como não sei escrever nem conheço quem saiba. E ler pelo prazer simples de ler.

              Etc.

              Blogues: (8) Lugares da memória

              Lugares da memoria

              A facilidade e a informalidade do acesso incorporam aqui um número cada vez maior de pessoas que transportam consigo uma experiência de vida e um acumular de referências capazes de se materializarem no fio da história. Tal como acontece com o testemunho oral ou com as cartas e os diários projectados no papel, são, por vezes, vestígios que contêm uma grande dose de erro, imprecisão ou subjectividade, mas nem por isso perdem necessariamente o interesse. Emergem então enquanto «lugares da memória» – territórios de materialização do passado colectivo, seguindo a expressão proposta por Pierre Nora – que servem para declarar informação, testemunhar representações, alimentar referências perdidas ou desfiguradas. Por vezes aproximam também as gerações.

              [De um conjunto de doze posts usados durante uma conversa sobre blogues que teve lugar na livraria Almedina-Estádio, Coimbra]

                Cibercultura, Etc.

                Voz da resistência

                Carmen

                Em ambiente rarefeito de clube de gangsters, num pub irlandês do século passado, gingando suado entre tabacaleras. Com João Bénard da Costa na crónica do Público de hoje [visível aqui].

                «Um dia suprime-se a cabeça do profeta do Idomeneo, de Mozart. O outro, os cigarros da Carmen. Ainda fica muita coisa para nos entretermos: as fogueiras de O Trovador, que jamais serviram para acender cigarros, o túmulo da Aida, onde não consta que nem ela nem Radamés fumassem, o quarto onde Otelo estrangulou Desdémona e onde o perfume do lenço era o único odor que ambos respiravam.»

                  Recortes

                  Que povo era esse?

                  Povo-MFA

                  O velho cartaz de um tempo raro, criador, agora antigo e quase proscrito, desperta uma incógnita. Que povo era esse que se nos apresentava na figura de um lavrador oitocentista arruinado pelo jogo, de um Zé do Telhado em dia de festa, de um jagunço sertanejo, de um Sandokan fora-de-horas viajando incógnito pela margem esquerda da Europa? O imaginário do 25 de Abril e do PREC tem ainda pistas por achar, expectativas por revelar, caminhos (se calhar, um dia talvez calhe) por retomar.

                    Devaneios, História

                    Limbo

                    A Igreja Católica acaba de eliminar o limbo – a morada das almas que, não tendo cometido pecado mortal, se encontram afastadas da presença de Deus – onde a tradição colocava todas as crianças que morriam sem antes haverem recebido o sacramento do baptismo. Considera agora que aquele reflectia «uma visão excessivamente restritiva da salvação». Em documento acabado de publicar, a Comissão Teológica Internacional, que depende da Congregação para a Doutrina da Fé (ex-Tribunal do Santo Ofício), declara-se finalmente convencida de que existem «sérias razões teológicas para crer que as crianças não baptizadas que morrem se salvarão e desfrutarão da visão de Deus». Resta saber se esta decisão terá efeitos retroactivos e para que servirão as instalações até agora ocupadas por aquele serviço.

                      Etc.

                      Let’s dance!

                      Apenas 25 por cento dos trabalhadores da função pública poderão ter um nível de avaliação de desempenho relevante, dos quais cinco por cento poderão ter excelente. É esta a proposta de lei que desenha o novo Sistema Integrado da Avaliação de Desempenho da Administração Pública, aprovada hoje em conselho de ministros. Os restantes 75 por cento dos trabalhadores, naturalmente, não precisam esforçar-se muito: façam aquilo que fizerem, a «tal de excelência» será para eles uma eterna miragem. Talvez possa usar-se como mote para um fado, um vira minhoto, a letra de um rap.

                        Apontamentos, Opinião

                        Retrovisor

                        Emigrantes

                        Não, não se trata de um grupo de romenos, moldavos ou ucranianos emigrados que confraternizam numa noite de sábado. São portugueses, homens apenas, à espera de um comboio para França durante os nossos anos 60. A imagem – de grande utilidade para aqueles que padecem de amnésia – é retirada de Portugal, Um Retrato Social. Todos os episódios já emitidos desta notável série televisiva de António Barreto e Joana Pontes podem ser vistos, na íntegra, aqui mesmo.

                          Apontamentos, História

                          Format C:

                          Coreia do Norte

                          «Aqui É o Paraíso! foi a frase mais ouvida, durante toda a sua infância, pelo pequeno Hyok (…). A rádio, os altifalantes nas ruas, os próprios professores, repetem-na à saciedade: fora da Coreia do Norte, a vida é um inferno; mas lá, graças ao Grande Líder cujo culto é obrigatório, tudo corre da melhor forma.»

                          Os visitantes ocidentais mais honestos e descomprometidos têm mencionado o cenário catastrófico e a brutal repressão que se encontram instalados naquele lado do planeta. Os raríssimos testemunhos que nos chegam daqueles que conseguiram fugir e descobrir que, afinal, existia vida para além do silêncio, da servidão e do universo concentracionário, têm relatado, anos após uma custosa aprendizagem dos rudimentos da liberdade, o processo de formatação integral dos cidadãos norte-coreanos. É um testemunho desta natureza que surge em «Aqui É o Paraíso!». Uma infância na Coreia do Norte (Ulisseia), revelado pelo escritor e jornalista Philippe Grangereau a partir das conversas tidas em Seul com o jovem Hyok Kang. Que carrega consigo um factor suplementar de sofrimento: quando o convidam para ir a escolas falar sobre a sua experiência às crianças sul-coreanas, elas não acreditam nele.

                            Apontamentos, Novidades

                            Blogues: (7) Oficina das palavras

                            Teclado e Cha

                            Um dos reparos que os puristas da língua fazem à escrita através da Internet centra-se no seu funcionamento como pólo agregador dos processos de destruição do seu próprio ideal de «pureza». A simplificação, a rapidez e a mistura de registos serão factores decisivos de contaminação. Mas se este risco existe – e fica por discutir se ele é necessariamente negativo – também é verdade que uma boa parte daquilo que de melhor e de mais original se tem escrito nos últimos tempos tem, pelo menos em Portugal, começado por aqui, só depois migrando para outros suportes. Incluindo-se nestas contas a prática de muitos jovens bloggers, capazes de treinar aqui a agilidade da escrita e a capacidade para pensarem de forma autónoma. Há poucos anos, por falta de meios e de um estímulo, a maioria deles jamais escreveria com regularidade. Reescrever, rasurar, remeter, são práticas partilhadas que podem aqui apurar a forma, a clareza, a fala.

                            [De um conjunto de doze posts usados durante uma conversa sobre blogues que teve lugar na livraria Almedina-Estádio, Coimbra]

                              Cibercultura, Etc.

                              O DN bate na avó

                              Senti hoje de manhã que alguém me agarrava pelos colarinhos e me dava duas bofetadas. Havia já alguns dias que não comprava o Diário de Notícias – o jornal que me ensinou a ler e a perceber que existiam mais mundos que o mundo – mas de facto não há como ver para acreditar. O velho e respeitado diário transformara-se, de um momento para o outro, numa espécie de tablóide, com os maiores destaques concedidos ao crime e à desgraça, notícias espremidas e sem tutano, colunas minguadas e colunistas que desapareceram, e, à traição, sem um aviso sequer aos seus fiéis leitores, o suplemento cultural 6a. completamente evaporado (e substituído por um anódino caderninho com a programação da televisão subordinada ao prometedor título «Mariana está a dar a volta à minha vida»). Chama-se a isto cuspir na sopa. Ou, talvez mais propriamente, bater na avó. Então adeusinho, DN, até qualquer dia!

                              O Daniel Oliveira e, sob um ponto de vista particularmente preocupante, o Luís Januário, chamam também a atenção para este triste episódio.

                                Apontamentos