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A Grande Traição

Socialismo

A pergunta parece gasta, mas não excedeu ainda o prazo de validade. Poderemos continuar a integrar, como instrumento do combate social e da representação contemporânea do mundo em mudança, o binómio esquerda-direita? A melhor forma de responder à questão talvez seja pensá-la colocando de lado os apriorismos que transformaram «esquerda» e «direita» em ídolos ou em meras etiquetas. Porque a identificação da «esquerda» e da «direita», e a actualização do seu perfil, são tarefas bem mais complexas que o simples enunciar de profissões de fé apoiadas na invocação de símbolos ou de tradições.

E são-no ainda mais neste presente fluido que relativiza práticas e valores, perturbando o universo mais simples no interior do qual as duas categorias historicamente se separaram. Afinal, Bush e Blair contestam a restrição dos direitos humanos e apelam à redução das desigualdades, ainda que tenham contribuído para as aprofundar. Ao mesmo tempo, Castro e Chávez praticam o autoritarismo e o silenciamento daqueles que se lhes opõem, apesar de serem apresentados por alguns como paladinos da democracia. O CDS fala de liberdade de expressão, enquanto o PCP relativiza constantemente o conceito. Os partidos socialistas e social-democratas permanecem erráticos, com programas repletos de expressões vagas utilizadas para fins eleitoralistas, rapidamente substituídas por atitudes pragmáticas na gestão do quotidiano, de acordo com aquela que consideram ser uma «perspectiva moderna» da política.

Foi-se, de facto, o tempo das barricadas, quando as bandeiras pareciam cravadas nas mãos certas e no seu lugar natural. Mas devemos fazer a crítica desta ambiguidade recorrendo a um processo de separação que nos ajude a compreender onde se distanciam ou começam a confundir-se a defesa dos princípios essenciais dos programas políticos e a prática da mais sórdida demagogia. Colocando o problema no campo do que é essencial, Norberto Bobbio considerava que, em última instância, a distinção entre direita e esquerda acaba sempre «por se converter na distinção entre sagrado e profano», dentro da qual se inserem outras diferenças, como «a que existe entre ordem hierárquica e ordem igualitária, e entre comportamento tradicionalista, favorável à continuidade, e comportamento voltado para o que é novo ou progressista, favorável à ruptura, à descontinuidade». Esta é, no fundo, a sobrevivência da tradição divisória que vem da Revolução Francesa e que, sem coagir em demasia a procura de novos caminhos, nos pode ajudar a separar as águas e a encontrar uma alternativa, questionando a traição aos princípios fundadores sem deles fazer territórios inamovíveis.

Procurarei abordar aqui – num conjunto de posts obrigatoriamente diferidos no tempo – o modo como, no campo da esquerda, essa grande traição se tem vindo a afirmar. Viajarei pelo processo de perversão de alguns dos seus fundamentos, apoiados nos ideais de liberdade, de tolerância, de igualdade, de laicidade, de emancipação ou de progresso. Justamente aqueles que, permanecendo marmóreos nas declarações de princípios, têm vindo a ser subvertidos pelos movimentos e pelas experiências que continuam a reivindicar a parte mais substancial da sua herança.

    Opinião

    Bocejo em horário nobre

    Um dos pequenos dramas domésticos mais comuns consiste em desejar ardentemente cortar o som da televisão, ou mudar o canal, e não se saber onde raio poisámos o telecomando. Foi o que me aconteceu ontem, obrigando-me a ouvir em alta gritaria, durante alguns minutos, Notas Soltas, a entrevista de Judite de Sousa a António Vitorino que a RTP transmite todas as segundas-feiras. Calculo que este seja um dos programas com mais baixo nível de audiências da televisão portuguesa, apesar de ir para o ar em horário nobre, de anteceder o popular concurso Um Contra Todos, e de muitos cidadãos, em função do título da rubrica e do nome do entrevistado, poderem legitimamente pensar que a conversa verse os meandros da música erudita. A previsibilidade absoluta das ideias, que apenas repetem em modo afável o discurso oficial do governo, a incapacidade para ser-se convincente, mobilizador ou sequer, como Marcelo Rebelo de Sousa, um bom entertainer, transformam aquela meia hora num suplício a requerer medidas céleres de higiene doméstica. E é aí que entra (ou deveria ter entrado) o bendito telecomando.

      Opinião

      Um livro contra a fé

      Sam Harris

      Não é fácil defender a importância de uma obra como esta. Quando se multiplicam os livros, discursos, colóquios, debates e números de revistas que pretendem colocar em diálogo islamismo e cristianismo, ou que intentam provar «cientificamente» que se completam, e quando a defesa da laicidade parece confinar-se à teimosia de uns quantos excêntricos fora do tempo, não é fácil declarar, e tentar demonstrar, que ambos são males transportando consigo, em quaisquer das suas múltiplas formas, a opressão e a guerra. Mas é isso que procura fazer o filósofo americano Sam Harris em O Fim da Fé. Religião, Terrorismo e o Futuro da Razão, recém-editado pela Tinta da China.

      Um dos argumentos centrais deste livro aponta para o carácter negativo de um novo dogma, do qual são portadores os «crentes moderados» e também aqueles que, não sendo pessoas de fé, entendem a religião como uma área intocável e essencialmente positiva da experiência humana: uns e outros «imaginam que o caminho para a paz só será desbravado quando cada um de nós tiver aprendido a respeitar as crenças injustificadas dos outros». O que leva Harris a declarar, e a propor-se mostrar, que, ao invés, «o próprio ideal de tolerância religiosa (…) é uma das principais forças que nos arrasta para o abismo».

      Numa recente entrevista ao suplemento Babelia, Fernando Savater afirma, reciclando o velho aforismo de Marx, que «mais do que ópio, a religião é cocaína». Isto é, ela não se limita a anestesiar, a entorpecer, mas é capaz de produzir estados psicóticos produtores de uma suspensão do tempo e de ilusões com um elevado potencial de violência. O livro de Harris parte também, de alguma forma, do entendimento da religião como uma doença, e como uma doença perigosa, cujo alastramento é favorecido por dois mitos que procura desarmadilhar: o primeiro associado ao facto da maioria de nós acreditar «que é possível retirar coisas boas da fé», o segundo vinculado à crença de que as coisas terríveis que por vezes se cometem em nome da religião «são produto, não da fé em si mesma, mas da nossa natureza mais ignóbil (…) em relação à qual as crenças religiosas constituiriam o melhor (senão mesmo o único) remédio».

      Todo o volume se constitui então como um tentativa de destruição do mito da «moderação» religiosa e, ao mesmo tempo, como um enunciado do grau de inadequação ao mundo contemporâneo de todas as religiões do «Único Deus Verdadeiro», as quais, aliás, pressupõem sempre «uma ignorância enciclopédia da história, da mitologia e até da própria arte» e impelem o outro, a todo o instante, para um lugar, tolerado ou combatido, de menoridade política e de inferioridade cultural. Se ele se afirmar como apóstata, então a solução será a exclusão ou a morte.

      Particularmente examinados são, para além dos traços essenciais da matriz judaica, os fundamentos e as práticas, passados e presentes, do islamismo e do cristianismo. E aqui a crítica é impiedosa, procurando provar o seu carácter arcaico, o potencial de violência que integram, e a periculosidade das posições daqueles que buscam compreender, quando não aceitar, os seus mais terríveis excessos. A argumentação, que recorre constantemente aos textos sagrados, bem como aos discursos e às práticas dos líderes políticos que procuram na religião os fundamentos das suas opções, é verdadeiramente esmagadora, embora, frequentes vezes, bastante perturbante para aqueles que foram educados num universo laico mas tolerante em matéria de religião. Ao mesmo tempo, o recurso constante a factos do passado recente integra o debate em volta dos antigos mitos na discussão sobre os acontecimentos contemporâneos que os invocam e com os quais nos temos visto, e continuamos a ver, constantemente confrontados. Afinal, pergunta o autor, «quando será que nos iremos aperceber de que a indulgência do nosso discurso político em relação às crenças religiosas nos impede de mencionar, quanto mais de erradicar, a fonte de violência mais prolífica da história?»

      A presença dos cristãos fundamentalistas na administração americana é mostrada em muitos dos seus assustadores detalhes, mas a crítica do Islão é, sem dúvida, a mais agreste. Tendo em linha de conta a tese proposta, afinal, de que outro modo poderia ser, se, como se sabe, é neste campo que as coisas têm agora ido mais longe? As palavras são duras: «Ao reflectirmos sobre o Islão e sobre o risco que ele representa para o Ocidente, deveríamos imaginar o que seria preciso para vivermos pacificamente com os cristãos do século XVI. Com homens ainda desejosos de perseguir as pessoas por crimes como a profanação da hóstia ou a bruxaria. Estamos hoje na presença do passado. Conseguir estabelecer um diálogo construtivo com estas pessoas, convencê-las dos nossos interesses comuns, incentivá-las a seguir o caminho da democracia e a celebrara diversidade mútua de ambas as nossas culturas, é tudo menos uma tarefa simples.» Tarefa esta que o autor não enjeita, ainda que não se mostre muito optimista em relação aos seus possíveis resultados.

      O argumento de Harris faz também cair por terra a ideia de acordo com a qual, resolvidas as desigualdades ao nível da distribuição da riqueza e do desenvolvimento económico, as contradições religiosas desapareceriam, ou, pelo menos, os extremismos que actuam neste campo ver-se-iam isolados e reduzidos a uma expressão residual. O autor mostra como estes aspectos pouco interessam às massas ignorantes de crentes e como os líderes religiosos que lhes alimentam a credulidade e a ferocidade frequentam um universo quase invariavelmente protegido, informado e próspero.

      No final do livro, dois capítulos mais densos mas não menos polémicos debruçam-se sobre a essência do fenómeno religioso e sobre o valor positivo de uma espiritualidade liberta da religião. Outro tenta enunciar uma posição positiva no sentido da definição e alargamento de um grande campo de combate cultural à presença e à influência das religiões. Um interessante posfácio procura ainda rebater algumas das principais e previsíveis críticas, muitas delas com um recorte de grande violência, que foram feitas após a saída da primeira edição deste livro, vencedor do Pen Award para a não-ficção de 2005 e grande êxito de vendas. No mundo onde é possível editar livros destes e debater estes temas, evidentemente.

        História, Opinião

        O mascarado e o da triste figura

        Os novos moinhos

        Tendo-lhe sido perguntado, em entrevista da revista Sábado, se se identificava com o Zorro ou com D. Quixote, José Sá Fernandes, o protagonista da «candidatura alface» do Bloco de Esquerda à Câmara de Lisboa, afirmou, como era de prever num candidato partidário a alguma coisa, «com o Zorro porque tinha os pés na terra». Sendo grande a minha simpatia pelo herói mascarado – mais ousado até do que Sá Fernandes o pinta (sobretudo na versão de Isabel Allende) – sinto principalmente a falta de Quixotes. Um dos problemas de algumas das forças que a dada altura pretenderam renovar a política activa e a participação dos cidadãos talvez advenha mesmo destas não lhes darem grande atenção. O espectro gélido de Lenine paira ainda em muitos horizontes.

          Apontamentos, Opinião

          Voz no deserto

          Admito que a afirmação do ministro Mário Lino a propósito do «deserto» situado abaixo do habitat das senhoras tágides tenha sido, para além de politicamente controversa, uma valente gaffe. Mas já deu para entender que ML habita, ele próprio, um outro deserto: o dos «homens públicos» com sentido de humor e alguma propensão para a introdução de critérios de subjectividade no sempre previsível discurso de Estado. Considero isso extremamente saudável e até lhe agradeço a singularidade. E, claro, não deve pedir desculpa coisíssima nenhuma por ter dito aquilo que disse e como o disse. Será bom até, para a saúde mental da Lusitânia, que o faça mais vezes. Ainda que depois se veja forçado a corrigir o tiro. Se mais políticos agissem com este estilo, talvez a opinião pública lhes prestasse uma maior atenção. A maioria deles, porém, simplesmente não é capaz de o fazer. Ou então vive de mãos atadas e de língua presa.

            Atualidade, Opinião

            Liberdade de expressão

            Nunca vi uma emissão da Radio Caracas Televisión (RCTV). Sei apenas que se opõe ao populismo chavista, o que, não sendo em si necessariamente bom ou mau, jamais deveria ser crime punível por lei. Também não gosto das posições públicas de muita gente, da linha política de determinados partidos, do perfil e da publicidade de certas empresas, da cara de certos sujeitos que me entram em casa através do ecrã, e jamais me passaria pela cabeça tirar-lhes a voz ou mandá-los prender apenas porque me desagrada aquilo que dizem. Prefiro ignorá-los, mudar de canal, assobiar uma marchinha de Santo António ou dar um passeio de bicicleta. Acredito aliás – pelo menos desde quando dizê-lo poderia custar a liberdade ou a carreira a qualquer cidadão – que a aceitação integral da diferença, ou mesmo da afronta, é um elemento essencial da democracia. E que, quando elas colidem com os nossos direitos, existem tribunais próprios para tratar o assunto. Ou uma opinião pública livre para exprimir o seu próprio juízo. Por isso, considero inaceitável o encerramento do canal pioneiro da televisão venezuelana pelo simples motivo deste ser contra o governo legítimo do país e de o assumir de viva voz.

            Sabe-se como grande parte da esquerda populista sul-americana é, no que toca ao respeito pela democracia, herdeira apenas levemente espúria de alguns dos princípios que alimentaram a triste experiência das «democracias populares», mas deveria esperar-se que a portuguesa, num contexto cultural e social muito diferente, e com a experiência de luta pela liberdade que detém no seu lastro, mostrasse outra atitude e, independentemente de defender uma ou outra das partes, assumisse uma posição de princípio sobre a censura imposta na Venezuela. Mas assim não é, como se pode ver: o Partido Socialista fecha-se em copas (diplomacia oblige, dizem), o Partido Comunista exulta e o Bloco de Esquerda limita-se a tomar nota. Afinal quem poderia, entre nós, defender a liberdade de expressão, a verdadeira, aquela sem adjectivos, se tal um dia fosse preciso? A «direita moderna»?

            Nota: Fica prometida uma série de pequenos textos sobre a grande traição da nossa esquerda aos seus valores fundadores.

              Atualidade, Opinião

              O caso DREN

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              1. Nos sistemas de poder centrados na lógica dos aparelhos, esta tende a projectar para lugares de responsabilidade não aqueles (e aquelas) que são os melhores, mas aquelas (e aqueles) que melhor se movimentam por entre as suas complicadas engrenagens. Em Portugal a situação tem piorado na medida exacta em que o currículo político, em termos de filiação a causas, a convicções ou a programas, deixou de ser critério de valorização. Promove-se principalmente quem se movimenta melhor dentro dos organismos partidários e possua uma pequena «competência» adequada às funções. Se possuir alguma visibilidade mediática, tanto melhor.

              2. Não existindo partido de poder inocente, o PS é, sem dúvida, aquele que melhor dá corpo a esta realidade. Existem no Partido Socialista lugares de responsabilidade intermédia sistematicamente atribuídos a gente incapaz de fundamentar politicamente o seu «socialismo», ou mesmo a sua formação democrática, e que por isso mesmo, fora das mais ou menos hábeis proclamações retóricas, jamais os levam em grande consideração. Com a agravante de, dada a origem social e a formação de muitos dos seus quadros, ser este o partido com mais condições para – ao lado da honestidade e da dedicação de muitos dos seus militantes – albergar o pior arrivismo e a mais abjecta arrogância. Os de gente que sobe porque precisa mesmo subir e que se apanhou a mandar de um momento para o outro. Depois dá no que dá.

              3. Ainda ninguém foi capaz de explicar como é que a senhora directora soube da «insultuosa» frase do professor afastado. Existem no edifício da DREN microfones nas paredes? Ou será que a única pessoa que estava com o mesmo professor, e que este declarou ontem ser «um grande amigo», ouve vozes e fala sozinha? A delação também pode ser um critério de promoção pessoal. Vem nos livros. É feio, mas eles não se importam. It’s part of the game.

              Escrito depois [25/5]: A coluna de Vasco Pulido Valente no Público de hoje refere-se também ao assunto. Nela se incorpora uma informação, diferente daquela dada de viva voz pelo professor visado, e que aponta para a existência de múltiplas testemunhas. Num caso ou no outro, o papel do denunciante é o mesmo. E o do sistema que o aceita também.

                Atualidade, Opinião

                A grande traição

                Turca

                Fora das iniciativas que não possam fracturar o «domínio imperial», um sector significativo dessa velha esquerda que se presume remoçada esquece ou despreza muitas das causas que, afinal, poderiam integrar o lado mais nobre e essencial da sua própria tradição. Aquela que não sucumbiu aos crimes sem remissão do estalinismo e dos seus substitutos mortos-vivos. O combate pela liberdade de expressão e de pensamento, pela justiça social como valor indiscutível, pela efectiva aproximação entre povos e nações, a luta pela emancipação face à opressão e ao obscurantismo, tornam-se assim «bons» ou «maus» apenas na medida em que se revelem úteis no cerco à América ou possam servir para enfraquecer aqueles que a combatem. Tudo o mais é irrelevante e pode ser manipulado, como acontece quando se procura transformar seres agressivos e autoritários como Mahmoud Ahmadinejad ou Hugo Chávez em paladinos mundiais da justiça entre as nações.

                Um último exemplo desta atitude hipócrita é-nos oferecido pelo silêncio diante do actual avanço dos islamitas na Turquia, na sua tentativa para destruírem os fundamentos do estado laico que Kemal Ataturk fundou em 1923 e instalarem um poder teocrático, inevitavelmente repressivo e, claro, «anti-imperial». As enormes manifestações de cidadãos comuns com uma aparência educada e moderna, de mulheres que se batem para preservarem direitos que não querem perder debaixo do véu islâmico, o medo e a revolta que se instalam entre eles, aqui mesmo às portas da Europa, não parece colher grande simpatia, nem ímpetos solidários, nem palavras emocionadas, desse lado de uma esquerda esclerosada que, cada vez mais, tende a deixar para a nova direita os combates por essa «coisa relativa» que é liberdade individual e o direito à diferença. A alma intolerante e autoritária de muitos dos órfãos de Lenine, o legado da sua matricial obsessão com a dimensão estritamente táctica da iniciativa política, sobrepõem-se à capacidade de indignação diante da iniquidade e às velhas bandeiras da liberdade e do laicismo, pelas quais tantos dos seus, num passado agora longínquo, um dia se bateram. Acontece que «isso agora não interessa nada.»

                  Opinião

                  Sermos solidários

                  1º de Maio

                  Na generalidade dos países industrializados, fora de algumas organizações sindicais e dos militantes e simpatizantes dos partidos e movimentos tardo-marxistas, já poucos descem à rua no 1º de Maio para gritarem palavras de ordem. Longe das áreas nas quais as contradições sociais ainda inspiram, compreensivelmente, a consagração simbólica da luta de classes, por aqui trata-se apenas, para a imensa maioria, de mais um feriado. Dia de passeio que outrora foi pelo campo e hoje segue a passo pelos grandes centros comerciais, tempo para dormir uma sesta sem ninguém que incomode, às vezes para namorar um pouco, para acertar umas almoçaradas, para um jogo de futebol entre amigos. Quando se liga a televisão, podem ver-se os horríveis cortejos militares de Pequim ou de Pyongyang, a sombra de Fidel na Praça havanesa da Revolução, os velhos moscovitas saudosos do império que cantam a Internacional ao lado de uns quantos adolescentes de comportamento duvidoso. Um pouco mais de intensidade, talvez, em Beirute, Caracas ou Manila.

                  Por aqui, desfiles de rua com os mesmo sindicalistas (ou os seus clones) que há mais de 30 anos, inamovíveis nos seus lugares protegidos, gritam as mesmas palavras de ordem («U-ni-da-de-Sin-di-cal!», «Go-ver-no-Pará-rua!») que já ninguém sabe muito bem que coisa significam ou para que servem. Poucos são os trabalhadores sem enquadramento e quase não vejo jovens desempregados, imigrantes, contratados a prazo, tarefeiros, diplomados sem expectativa de emprego, ecologistas, gays, lésbicas, prostitutas, deficientes, mulheres em defesa dos seus direitos, membros de ONGs: largas centenas de milhar de pessoas, em breve muitas mais, situadas completamente fora do aparelho produtivo, e que o velho sindicalismo não sabe (ou não quer? ou não pode?) mobilizar. Não pagam quotas, não militam, não votam, não desfraldam bandeiras vermelhas, mas esperam por algo mais do que a compreensão da sociedade em que vivem. Ninguém lhe poderá dizer que «depois da revolução» os seus amanhãs cantarão. Mas também não está no seu horizonte que um dia, quando estivermos todos longe «da cauda da Europa» e a viver riquíssimos num país «de excelência», as oportunidades lhes sejam concedidas.

                    Apontamentos, Opinião

                    Let’s dance!

                    Apenas 25 por cento dos trabalhadores da função pública poderão ter um nível de avaliação de desempenho relevante, dos quais cinco por cento poderão ter excelente. É esta a proposta de lei que desenha o novo Sistema Integrado da Avaliação de Desempenho da Administração Pública, aprovada hoje em conselho de ministros. Os restantes 75 por cento dos trabalhadores, naturalmente, não precisam esforçar-se muito: façam aquilo que fizerem, a «tal de excelência» será para eles uma eterna miragem. Talvez possa usar-se como mote para um fado, um vira minhoto, a letra de um rap.

                      Apontamentos, Opinião

                      O vício esplêndido

                      Vicio esplêndido

                      Escrito em Outubro de 2003 para a extinta revista Periférica

                      Senti alguma simpatia por Vaclav Havel no dia em que o vi, numa fotografia a preto e branco tirada na Praga nocturna dos dias da Carta 77, durante um concerto dos Plastic People of the Universe. Nada ali fazia supor que Havel seria um dia o último presidente da Checoslováquia e o primeiro da República Checa. Naquela imagem não se notavam ainda os retoques cosméticos do homem de Estado: a camisa desapertada mostrava a pele muito clara, na mão direita segurava uma enorme caneca de cerveja, o suor escorria pela cara, um cigarro acesso mantinha-se entre os lábios, enquanto o escritor conversava com alguns companheiros de ocasião. O fumo de tabaco saturava o ambiente, sublinhando o carácter pouco convencional do momento, humanizando os rostos, afastando-os das máscaras gélidas da velha guarda no poder, que a essa mesma hora dormitava em casas repletas de retratos medalhados, tirados nos desfiles do 1º de Maio.

                      Relembro essa imagem em plena fúria legislativa antitabagista, que começou a ser barbaramente imposta quando os maços de cigarros, as cigarrilhas e os charutos passaram a ostentar aquele selo horrível, acusador, proclamando a negro que «Fumar Mata». Trata-se de um óbvio caso de exagero e de abuso de confiança, mas é também a expressão de um falso moralismo escrutinador dos costumes, imposto pelas autoridades que, ao mesmo tempo, permitem o fabrico e comercialização de automóveis que atingem velocidades absurdas, ou, para não ir mais longe, fecham os olhos diante das enormes responsabilidades poluentes dos escapes e das indústrias químicas. [continua aqui]

                        Opinião

                        Chovendo no molhado

                        Aceito que não deva atribuir-se, às iniciativas do Partido Nacionalista Renovador, uma importância maior do que aquela que os seus militantes, nos seus melhores sonhos (se é que não têm apenas pesadelos), alguma vez puderam ter. Não se deve atiçar sobre os seus militantes uma matilha de cães raivosos ou mandar a polícia de choque de bastões levantados e gritos de intimidação, coisa que, obviamente, apenas ajudaria aquela gentinha a sair por instantes do gueto dentro do qual vai vegetando. Mas, tal como acontece com qualquer quadrilha de criminosos, a polícia e os tribunais devem agir sobre quem viola a lei. Neste caso, aquela que se encontra inscrita na democrática e tolerante Constituição da República Portuguesa. Tão só e nada mais.

                          Opinião

                          Um soco

                          Portugal, um retrato social, de António Barreto, com a realização de Joana Pontes, é um programa sobre as mudanças ocorridas na sociedade portuguesa ao longo dos últimos 40 anos, do qual a RTP1 transmitiu hoje o primeiro de sete episódios. Um soco no estômago dos esquecidos e dos ignorantes – os verdadeiros salazaristas, esses são duas dúzias e meia e já não contam muito – que se não recordam ou não sabem do que falam. Uma série que o mesmo «serviço público de televisão» poderia e deveria ter começado a passar, pelo menos, um par de semanas antes da lamentável petite finale dos Grandes Portugueses.

                            Opinião

                            Comunismo descartável

                            A Assembleia Nacional Popular chinesa aprovou, após 14 anos de debates, uma lei que garante idêntica protecção à propriedade privada e à pública. Nada de surpreendente, tendo em conta que a primeira – para Proudhon e Marx, a essência da desigualdade social – passou a ser considerada, desde os tempos de Deng Xiaoping, um instrumento fundamental para o desenvolvimento e uma fonte legítima de enriquecimento individual. O problema é que a política externa da China também se adaptou a uma espécie de realpolitik, tendo desde há muito atirado os sempre obscuros «inalienáveis princípios internacionalistas» para umas quantas notas de rodapé nos livros de história. A dúvida que fica é apenas esta: o que resta então, no «Império do Meio», do socialismo e da utopia comunista? A repressão brutal do pluralismo político e da diversidade cultural em nome do proletariado e do Estado? O sistema penal feroz e inflexível «ao serviço do povo»? A inexistência de sindicatos e de uma comunicação social independente? As coreografias mecanizadas dos desfiles militares e dos espectáculos desportivos? As recepções cerimoniais às delegações dos «partidos irmãos»? Os stands na Festa do Avante? A igualitarização pelo silêncio?

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                              Canto gregoriano

                              Canto Gregoriano

                              Acabava de ler o recém-publicado livro documental e autobiográfico de Joana Lopes sobre a experiência dos «católicos progressistas» durante os últimos quinze anos do Estado Novo (Entre as brumas da memória. Os católicos portugueses e a ditadura, da Ambar). O livro – falarei dele mais adiante – transpira optimismo, por vezes algum humor, tanto mais modelares quanto se sabe dos «tempos difíceis» aos quais se refere. No entanto, fecha com uma espécie de balanço, através do qual a autora nos dá a entender o quanto a falência de um conjunto de propostas que mobilizaram tantas pessoas, de tão diversas gerações, criara em milhares de consciências um sentimento de desilusão, de desesperança e, de certa maneira, de desistência.

                              Posso, por isso, dizer que me fez bem encontrar no DN as palavras do Padre Anselmo Borges, declarando ser a teologia a «teologia das religiões empenhadas na libertação» e que «o horizonte do diálogo inter-religioso é a libertação-salvação enquanto experiência radical de sentido frente ao sem sentido dos explorados, dos humilhados, das vítimas e da morte.» Relembrou-me Anselmo Borges que, afinal, permanecem entre alguns sectores católicos os horizontes da esperança e da identificação com as causas que aspiram a um mundo melhor e mais solidário. E que, se deles já não faz parte a maioria das pessoas que Joana Lemos recorda no seu livro, outras existem que mantêm algo dessa utopia humanizada que, contaminada pelo espírito da época, instigou tanto entusiasmo durante os anos 60 e 70. Permito-me acreditar que, muitas delas, terão tomado, quase com horror, conhecimento do recente texto de Bento XVI (Sacramentum Caritatis), no qual este renova a desafectação da Igreja em relação ao problema do celibato dos padres (uma velha luta dos sectores «progressistas»), acentua a exclusão dos divorciados da comunidade eclesial, sugere uma complexificação da liturgia e propõe o regresso em força do latim, ou ainda, pasme-se, do canto gregoriano.

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                                Um estranho rosto da paz

                                Ian Paisley

                                Nos anos sessenta, a larga maioria das pessoas que, neste país, se importava com aquilo que acontecia para lá das fronteiras marítimas e terrestres – a oposição de esquerda, mais atenta e politizada – acompanhava o conflito na Irlanda do Norte tomando, sem pestanejar, o partido dos «bons» e dos pobres, que eram necessariamente «os católicos». É, aliás, interessante verificar hoje como a maior parte da imprensa portuguesa da época, indefectivelmente católica mas avessa, acima de tudo, à guerrilha urbana do IRA, tomava o partido dos «maus». Isto é, dos ricos «protestantes». Ninguém, de um lado ou do outro, falava então do rosto simpático do Sinn Féin. Como não se falava de um comportamento civilizado dos unionistas.

                                De entre estes destacava-se, nas primeiras páginas, o perfil rude e colérico do reverendo Ian Paisley, hoje com 80 anos de idade e desde há décadas a voz mais conhecida dos partidários de um Ulster sob o domínio da coroa britânica. Paisley, o inflexível provocador, era, para a esquerda europeia, o arqui-vilão irlandês, a figura do demo em traje de pastor presbiterano, uma chaga na ilha de S. Patrício. Por este motivo, é ainda quase impossível, para muitas das pessoas que possuem uma «memória à esquerda» desse tempo, imaginá-lo agora como o chefe de um governo da Irlanda do Norte capaz de partilhar o poder com Gerry Adams, Martin McGuinness e os antigos «iristas» reconvertidos ao fato e à gravata. Mas parece que é isso mesmo que vai acontecer. Mudam-se os tempos e também as vontades.

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                                  Busca Fidel

                                  No

                                  Tanto ou mais eficazes que os processos de censura directa, a manipulação e a sonegação da informação representam dois dos instrumentos centrais utilizados pelos regimes autoritários para controlarem a circulação de uma opinião livre e dos projectos capazes de os contrariarem. Impede-se deste modo o aparecimento e a afirmação de políticas ou de modelos culturais alternativos, criando-se as melhores condições para que a ordem das coisas possa ser perpetuada. Os Estados totalitários do século XX levaram ao limite essa tarefa de apagamento da diferença e de imposição do pensamento único, chegando ao ponto – tal como, de forma extrema, aconteceu no Camboja dos khmers vermelhos ou acontece ainda na Coreia do Norte – de se esforçarem por apagar do horizonte visível pela população toda a realidade não-controlada, situada para lá das fronteiras de um território insulado, vigiado, aterrorizado. Tivemos uma experiência desta natureza no Portugal de Salazar, que algumas vozes têm nos últimos tempos procurado descrever como moderada, e até, de certa forma, benigna.

                                  Será este olhar benigno sobre o controlo das consciências que mantêm aqueles que insistem em conceber a Cuba actual como uma experiência de «democracia possível», de algum modo perfeita pois apenas exclui aqueles que dela não possuem uma perspectiva positiva, ou então que, pela via dessa mesma descrença, implicitamente servem o inimigo americano. A censura existe e os prisioneiros políticos também, mas estes seriam apenas aos «contra-revolucionários», aqueles que se atreveriam a questionar um governo de indiscutível bondade e de irrepreensível perfeição. Só que o pior, o mais duro e sufocante para quem se atreve a sentir-se desalinhado, ou, pior ainda, para as pessoas que não têm a possibilidade de conhecer o mundo para além do canal único de televisão e dos dois jornais controlados pelo Estado, é a omissão da informação. E mesmo a Internet, de acesso circunscrito e vigiado – como acontece também na «moderníssima» China – tem sido integrada neste processo de silenciamento e de controlo. Lembra-o hoje o Público, no novo suplemento Digital, ao revelar-nos o Buscador 2por3 (www.2por3.cu), o Google cubano, que apenas pesquisa nos sites patrocinados pelo Governo de Havana ou pelos media oficiais. Que mantém uma secção que se ocupa apenas com os discursos de Fidel. E que, por exemplo, tem como dez primeiros resultados, se digitarmos «Portugal», duas referências a movimentos de solidariedade portugueses pela libertação dos «cinco heróis cubanos» detidos nos EUA, três à actuação de Portugal no Mundial da Alemanha e cinco a discursos de Castro durante a sua última visita ao nosso país, ocorrida no já longínquo ano de 2001.

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                                    Colunex

                                    Não poderia estar mais de acordo com aquilo que Eduardo Pitta escreveu a propósito das pobres credenciais de muitos dos nossos colunistas «de referência». Também me tenho questionado sobre as razões do destaque atribuído, em respeitados jornais da nação, a pessoas que se limitam a alinhar «de carreirinha» os lugares-comuns dos directórios partidários. Pois se eu, que sou tímido, distraído e bastante caseiro, conheço dezenas de cidadãos que escrevem melhor, têm ideias mais originais, possuem uma capacidade crítica superior à daquelas baças e previsíveis pessoas, porque motivo os sociáveis e sempre bem informados directores desses jornais lhes têm continuado a garantir a intangibilidade do direito de admissão? Suponho que por inércia não será.

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