Author Archives: Rui Bebiano

A voz do silêncio

Budapeste
Memorial ao Holocausto em Budapeste

No epílogo a Pós-Guerra, o seu grande livro sobre a história da Europa a partir de 1945 (Edições 70, 2006), Tony Judt revolve as últimas décadas da nossa vida comum para sublinhar que a reconstrução se fez caminhando sobre as cinzas do Holocausto. Nos anos que se seguiram à derrota do nazismo e à percepção da dimensão do genocídio cometido sobre os judeus europeus, o silêncio tornou-se a atitude corrente. Havia muito para esquecer e a evocação da experiência dos deportados ou dos sobreviventes dos campos de concentração transformara-se rapidamente em qualquer coisa de incómodo, que convinha arrumar com discursos de circunstância e meia dúzia de lápides em mármore. Até porque, durante a guerra, se tinham desenvolvido teias de cumplicidade e de conivência com as perseguições, as quais conviria pôr de lado. Além disso, muitos dos honestos cidadãos dos países ocupados pelos nazis – como a Holanda ou a Polónia – haviam tomado conta das propriedades dos judeus em fuga ou desaparecidos, não tendo vontade alguma de as devolver aos legítimos proprietários ou aos seus herdeiros. De leste a oeste, de facto, o anti-semitismo continuou instalado por muito tempo, sendo o silenciamento uma das suas armas.

A informação à qual acedemos hoje, é preciso que se diga, não estava disponível, ou pelo menos não era divulgada de uma forma tão eficaz quanto o foi mais recentemente, e foram precisos acontecimentos como a Guerra israelo-árabe dos Seis Dias, em 1967, o assassínio de atletas israelitas nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972, e, principalmente, a partir de 1978, o impacto mundial da série televisiva «O Holocausto», para que o «problema judaico» ganhasse uma nova visibilidade. Colocando-se as coisas no seu devido lugar, a caça aos criminosos nazis desencadeada em 1947 pelo grupo de Simon Wiesenthal deve ser entendida como uma resposta a esse clima de impunidade que viria a permitir, menos de vinte anos mais tarde, que na própria Alemanha «desnazificada» antigos nazis como Kurt Kiesinger e Heinrich Lübke, tivessem chegado, respectivamente, a chanceler e a presidente da república.

Talvez por este motivo se possa tornar preocupante a forma como a generalidade dos meios de comunicação a ocidente, muitos dos herdeiros políticos do antifascismo e até uma boa parte do universo académico, têm aceitado, com relativa indiferença, os tenebrosos esforços de revisionismo histórico patrocinados pelo actual governo do Irão, no sentido de negar a dimensão do Holocausto e de transformar os herdeiros das suas «putativas» vítimas – os judeus, qualquer judeu que defenda a sua identidade étnica e histórica – em terríficos algozes. A crítica dos processos de instrumentalização do passado continua a confrontar-se com a voz do silêncio.

Publicado originalmente em Passado/Presente e no Diário As Beiras

    História

    Evidência

    Sublinho duas frases de Giuseppe Granieri que chegam com a Geração Blogue: «Os blogues, no seu conjunto, são a parte habitada da Rede». Por detrás deles, sempre «um indivíduo e o seu ponto de vista sobre o mundo». Fora deles, neste território, nada de tão livre, simples e imprevisível.

      Apontamentos

      Da sabedoria 3

      Mencius

      Aristóteles, 384–322 a.n.e. (Ética a Nicómaco)

      «Dado ser o espírito um atributo divino, uma existência de acordo com este espírito será, na sua relação com a vida humana, verdadeiramente divina. Não devemos, pois, escutar aqueles que nos aconselham, sob o pretexto de sermos homens, a não reflectir senão sobre as coisas humanas, e, sob o pretexto de que somos mortais, a renunciar às coisas imortais.

      Contrariamente, devemos fazer todo o possível para nos tornarmos imortais e para vivermos de acordo com a melhor parte de nós mesmos, uma vez que o princípio divino, por mais pequena que possa ser a sua dimensão, se sobrepõe a tudo o mais, tanto pelo seu poder como pelo seu valor.

      O mais próprio humano é, de facto, a vida espiritual, uma vez que o espírito constitui o essencial do homem. Uma tal vida é, por esse motivo, inteiramente ditosa.»

        Recortes

        Esses não morreram na cama

        Pinochet
        Quando soube da notícia apenas lembrei aqueles a quem atiravam nas pernas, depois arrancavam os olhos à faca, de seguida os dentes com um alicate, e, ainda vivos, empurravam para dentro de helicópteros Puma para serem lançados ao Pacífico. Esses não morreram na cama.

          Apontamentos

          Presságio

          Conversa numa manhã de Dezembro, entre cachecoles, quispos e bonés de xadrez. «Estás melhor, pá?» «Quase fino. Ao menos morro de boa saúde.» A piada domingueira, antiga, resulta sempre. Já que não podemos fintar a morte, fazemos pouco dela.

            Etc.

            Ao sorriso, camarada!

            Ségolène
            Do encontro do Partido Socialista Europeu, no Porto, ficará um recanto da nossa memória visual. Uma tribuna na qual se destacava um tom de vermelho entremeado de fatos completos. Os participantes que se aproximavam em francês na segunda pessoa do singular. Uma vaga lembrança, presa na fala, da velha canção de Ferrat («C’est un joli nom Camarade / C’est un joli nom tu sais»). Ségolène Royale simpática, coqueta, coberta de flores, de mais flores e de muitos beijinhos. Da substância não me recordo muito bem: afinal já passaram dois dias.

              Apontamentos

              Da sabedoria 2

              Mencius

              Meng Zhu, latinizado como Mencius, c.372-c.289 a.n.e. (Livro dos Livros)

              «Todo o homem possui um coração que reage ao intolerável. Suponham que algumas pessoas vêem uma criança prestes a afogar-se num poço: elas terão todas uma reacção de medo e de empatia que não será motivada apenas pelo desejo de se manterem de boas relações com os pais dessa criança, pela vontade de adquirirem uma boa reputação junto dos seus vizinhos e amigos ou pelo incómodo que lhes possam causar os gritos que ela solta.

              Parece pois que, sem um coração que se compadeça dos outros, não se é humano; da mesma forma, sem um coração capaz de determinar a vergonha de uma má acção, não se é humano; sem um coração marcado pela humildade e pelo respeito, não se é humano; sem um coração que distinga o verdadeiro do falso, não se é humano.

              Um coração que se compadece é o germe do sentido do humano; um coração que reconhece a vergonha é o germe do sentido do justo; um coração capaz da humildade e do respeito é o germe do sentido do religioso; um coração que distingue o verdadeiro do falso é o germen do discernimento. O homem possui nele estes quatro germes, da mesma forma que possui os seus quatro membros.

              Porém, possuir estes quatro germes e dizer-se incapaz de os desenvolver é fazer mal a si mesmo. E todo aquele que seja capaz de os desenvolver ao máximo será como o fogo que abrasa ou como a fonte que jorra. Seja ele capaz de os desenvolver e poderá ver-lhe confiados os destinos do mundo; mas se for incapaz, nem mesmo os nomes do seu pai e da sua mãe poderá honrar.»

                Recortes

                Little Groucho

                Depois de ver na NBC a entrevista de Jay Leno ao Borat (na pele de Borat) mais convencido fiquei de que o último «fenómeno de bilheteira» do cinema americano procura vender aos amnésicos uma cópia barata de Groucho Marx (sem o charuto, naturalmente). Embora para muita gente que nunca foi apresentada a Mr. Marx possa de facto parecer uma novidade, sente-se na boca o sabor de uma refeição requentada.

                  Etc.

                  Passados ausentes

                  Não é nada saudável viver uma realidade que do passado apenas recolhe as referências mais assépticas e manipuláveis. Aquelas capazes de ilustrarem consensuais mitos fundadores, ou então de servirem de mote para actividades que qualquer autarquia gosta de apoiar para relevar o património, assim relevando também a sua própria existência. Ou ainda, como acontece tantas vezes, para incentivar o espírito de paróquia. A importante intervenção do movimento cívico «Não Apaguem a Memória!» contraria esta tendência, chamando a atenção para um lastro de combate e de resistência que marcou o nosso passado recente e sem o qual, muito provavelmente, não conheceríamos há mais de trinta anos esta democracia incompleta mas benévola. Um passado que uma geração mais recente de políticos dos mais diversos escalões, e outros mediadores de opinião consciente ou inconscientemente «desmemoriados», tem feito por esquecer. Como se nada lhe devesse. Não parece saudável, porém, reduzir essa luta pela preservação da memória aos espaços, aos eventos ou às pessoas que lhe foram definindo as matrizes dominantes, deixando de lado aqueles, malditos ou minoritários, que à esquerda ou à direita têm permanecido omissos dentro das diversas «histórias oficiais». O que José Pacheco Pereira (de novo) relembrou hoje no Público.

                    História

                    Da sabedoria 1

                    Buda
                    O número de Novembro-Dezembro do Le Monde des Religions integra um dossier sobre a construção de uma «espiritualidade laica» que emergiu, a partir da década de 1970, da decadência das ideologias de matriz política ou religiosa. Dele consta uma lista comentada e cronologicamente disposta de «dez textos fundamentais da sabedoria», acompanhada de fragmentos dos mesmos que me arrisco a traduzir. Capturando algumas pequenas pistas para um trajecto que poderá revelar-se luminoso. Ainda que longe do divino.

                    Buda, séc. VI a.n.e. (Cûla Mâlunkiya Sutta)

                    «Supõe tu, Mâlunkyaputta, que um homem tenha sido ferido por uma flecha fortemente envenenada. Os seus amigos e parentes chamam um cirurgião. E o homem diz: “Não deixarei que me retirem esta flecha sem primeiro saber quem me feriu: qual é a sua casta; qual é o seu nome, qual a sua família; se é grande, pequeno ou de média estatura; de que aldeia, vila ou cidade veio ele; não deixarei que me retirem esta flecha antes de saber com que espécie de arco me alvejaram; antes de saber que espécie corda foi usada nesse arco; antes de saber que pluma enfeitou a flecha; antes de saber de que material foi talhada a sua ponta.”

                    Mâlunkyaputta, este homem homem morreu sem saber aquelas coisas. Da mesma forma, se algum de nós disser “não seguirei uma vida virtuosa, na direcção do Bem-aventurado, sem que possua respostas a perguntas sobre se o universo é ou não eterno, etc.”, ele morrerá e esses problemas serão deixados sem resposta.

                    Qualquer que seja a opinião que possamos deter a respeito de tais questões, existem o nascimento, a velhice, a decrepitude, a morte, a infelicidade, as lamentações, a dor, a aflição, pelo que eu afirmo que deveremos ser capazes, nesta vida, de nem tudo pretender saber.»

                      Recortes

                      Inacção

                      O lugar-comum sugere a repetição, o movimento que se ausenta. «A ideia de se instalar nos lugares, lugares tranquilos», escreveu uma vez Olivier Rolin. Vales sombrios de longo cativeiro e de torpor. Distantes de outros vales, de margens nunca vistas, de hábitos ignorados, de horizontes que permanecerão por descobrir.

                        Devaneios

                        Amigos da Floribella

                        Já passaram alguns dias desde que saiu, mas aponto ainda para a crónica de José Pacheco Pereira editada no Público de 30 de Novembro (e acessível aqui em versão revista). Falava ela dos «Sentimentos Misturados» que lhe parecia poder partilhar com Jorge Silva Melo. Sobre as franjas juvenis, urbanas e insatisfeitas que se movimentavam nos nossos anos 60 e das quais possui uma perspectiva que contrasta abertamente com o habitual discurso auto-celebratório dos seus sobreviventes: «Havia muita paranóia, mas, descontada toda a obsessão pela perseguição, sobrava um grão imenso de realidade violenta, bafienta, claustrofóbica, mesquinha e provinciana, que contaminava tudo».

                        Por sobre esse cenário pairava, inabalável, a crença na capacidade salvífica do povo. Crença que hoje, sem dúvida, a ambos deixará cépticos: «os filhos dos deserdados das cheias, os filhos dos operários do Barreiro, os filhos das criadas de servir, os filhos dos emigrantes de Champigny, os filhos da “canalha” anarco-sindicalista e faquista de Alcântara mandam no consumo e o mundo que eles querem é muito diferente». E, de novo, o desencanto: «Queríamos que “eles” tivessem voz e agora que a têm não gostamos de os ouvir (…) Queríamos que eles desejassem Shakespeare e eles querem a Floribella, os Morangos e o Paulo Coelho. E depois? Ou ficamos revoltados ou pedagogos tristes e ineficazes, ou uma mistura das duas coisas». A diferença, fica implícito, está na pertença a uma esquerda incapaz de o reconhecer. Ou que, quando o faz, tende a desculpabilizá-los dizendo que a culpa não é deles. Nem dela.

                          Recortes

                          Kramer vs. Bin Laden

                          Cosmo Kramer
                          Não terão sido as tiradas de Michael Richards numa sessão de stand-up comedy na Laugh Factory, no mínimo «politicamente incorrectas», a condicionarem a mudança. A decisão já estaria tomada. Mas existe algo de intrigante no facto de a TV-Cabo se preparar para, no pacote de canais que entra em vigor no próximo Janeiro, trocar a SIC-Comédia – que até ocupava a décima posição nas audiências – pela Al-Jazeera. Não acredito que seja a previsão de audiências a justificar a medida. E ficamos, literalmente, com menos razões para rir.

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                            A luz da noite

                            Quase deixámos de usar a expressão «triste como a noite», confinada à métrica das chulas e dos fados vadios que resistem. Longe das aldeias despovoadas, fora das vielas onde já só dormem mendigos, bêbedos e drogados, a noite deixou de ser apenas silêncio, breu, território de caça para imitadores de Bela Lugosi e de Christopher Lee. Como um tempo para a melancolia e para a depressão. É o dia que agora nos atemoriza e entristece.

                              Devaneios