«Essa não é a minha especialidade»

Incomoda a fuga ao debate sem fronteiras e com ideias próprias, justificando quem o faz a recusa em abordar certos temas com a afirmação de que «essa não é a minha especialidade». Mesmo no meio universitário, por definição agregador e disseminador de saberes plurais, ela é a atitude dominante, fechando-se quem o afirma no seu estrito espaço de estudo e evitando tratar de forma dinâmica tudo o resto. Todavia, sendo impraticável o ideal iluminista de um saber enciclopédico, que tudo alcance, e sabendo-se que jamais alguém, ou máquina alguma, será omnisciente, é sempre possível, sobretudo em democracia, falar do que nos aprouver, aliando conhecimento, capacidade crítica e experiência pessoal. 

De onde vem essa recusa de debater temas que extravasam o reduto de saber que dominamos melhor? Possui múltiplas origens, por vezes combinadas, identificando-se aqui as quatro decisivas: a cobardia, o desinteresse, a falta de inteligência e a ausência de um sentido social do conhecimento. Comecemos então pela cobardia, por regra associada ao medo de errar, como revela a conhecida frase «eu não falo para não dizer asneiras», mas também ao insistente receio de tomar posição, enfrentando se necessário o contraditório. Sendo o medo uma marca comum a todos os humanos, já a cobardia é mais um traço pessoal, uma vez que depende sempre da vontade de cada um.

Em segundo lugar vem o desinteresse. Não decorre da ignorância – podemos até saber pouco, mantendo-nos ainda assim atentos à variedade do mundo –, mas da ausência de atenção, curiosidade e interesse pelo que transcende o universo pessoal e imediato. Neste sentido, ele impede-nos de alargar horizontes e de atender à novidade, reduzindo o nosso campo de entendimento e de atuação. Limitando-nos ao papel de meros observadores, de «mirones» da atividade dos outros. Vem depois, como terceiro fator, a ausência de inteligência ativa, associada à falta de ginástica da mente, mas igualmente à da alma, bloqueando à nascença a capacidade de abertura a diferentes prismas.

Por último, em quarto lugar, vem a rejeição de tudo debater de uma forma aberta a diferentes áreas advém da ausência daquilo a que Tony Judt chamou «o peso da responsabilidade». Ela parte de uma incapacidade, particularmente inaceitável e incompreensível entre quem, possuindo meios para interpretar o real passado e o presente, e indagando o futuro, sobre eles tendo condições para discorrer de forma pública, decide fugir ao que Judt identificou como «uma atitude de permanente compromisso perante a vida pública e as circunstâncias sociais». Quem a reconhece e valoriza não hesita, apesar dos fatores de risco, a abordar qualquer tema que se relacione com o interesse coletivo.

Concluo com uma nota pessoal. Chegou agora às livrarias, lançado pela editora Afrontamento, o meu último livro, Incertezas da Razão, composto por 118 crónicas e textos de intervenção, selecionados entre os milhares escritos entre 2000 e 2025. Nele encontrará o leitor, deparará a leitora, como motivação do conjunto e nos múltiplos conteúdos, com a abordagem prospetiva de temas e de interesses sempre alargados e combinados. Jamais com a afirmação defensiva, «especializada», de um qualquer pequeno mundo. Nos tempos que correm, de ataque ao conhecimento e à cultura crítica, ele tende a tornar-se um lugar fechado e perigoso.

Rui Bebiano

Fotografia de Clay LeConey
Publicado no Diário As Beiras de 1/11/2025
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