O que fazer com esta espécie de gente?

Com a derrota dos principais fascismos na Segunda Guerra Mundial, começou a instalar-se em grande parte do mundo, e de forma mais rápida e acentuada na Europa e nas Américas, uma experiência de civilidade democrática e cosmopolita que, apesar das desigualdades e dos conflitos, envolveu um setor cada vez mais amplo da população, moldando a sua forma de viver e de olhar o mundo. É verdade que em Portugal e Espanha subsistiam ditaduras, mas estas começavam a recuar face a uma crescente resistência. E a Leste do continente, onde regimes autoritários procuravam impedir qualquer abertura, emergiam também sinais de mudança. A viragem democrática na Península Ibérica, materializada entre 1974 e 1978, e as rápidas mudanças nos países do «socialismo real» que ocorreram após a queda do Muro de Berlim, não emergiram do nada.

As mudanças resultaram de fatores variados, desempenhando um papel crucial, além do crescimento da classe média associado à expansão das economias, a iniciativa das forças políticas e dos grupos sociais que se foram batendo por sociedades mais justas e abertas. Todavia, a qualidade e a ampliação dos processos de democratização dependeram também, em grande medida, das condições criadas pela expansão do sistema educativo e dos meios de comunicação. Foram eles, em associação com a melhoria gradual das condições de vida, que viabilizaram a disseminação da cultura e do saber, uma compreensão alargada da história e das suas conquistas, a valorização dos direitos humanos, a consideração da liberdade, da tolerância, da cordialidade e da justiça como vetores imprescindíveis de uma existência melhor e mais digna.

Um melhor conhecimento do mundo e da sua diversidade, um grau mais amplo de empatia pelo outro, uma ideia de felicidade e de emancipação que conciliava o individual com o coletivo, mas também mais livros, mais filmes, mais notícias, mais música, mais arte, mais cultura crítica, foram alimentando esse alargamento dos horizontes. Foram também estes fatores que permitiram a criação de melhores condições para o exercício do direito de voto, da reivindicação e mesmo do direito à resistência. E tudo isto convergiu de uma forma transversal aos credos políticos, permitindo o diálogo entre um amplo leque ideologias e programas, da esquerda ao centro-direita, numa cidadania integradora a que apenas estreitas franjas escapavam, sendo a sua conduta em regra desprezada.

Entretanto, na viragem para este século, esse panorama otimista, mobilizador da convivialidade cívica e da democracia, começou a mudar de forma rápida e profunda. Alterações associadas à crise e às contradições da economia global, mas sobretudo a uma degradação ética de boa parte da comunicação social e à explosão caótica das redes sociais, deram voz a grupos até então culturalmente irrelevantes, tornando padrão e disseminando uma degradação do conhecimento, da informação sustentada, da aceitação do outro, da paz como ideal, da empatia como fator humano decisivo. Há muitos anos, referindo-se à expansão do nazismo na Alemanha, escreveu Hannah Arendt que «a morte da empatia humana é um dos primeiros sinais de uma cultura prestes a cair na barbárie»: neste sentido, um certo padrão de realidade presente parece testemunhar esta queda.

No belo discurso proferido em Lagos no último Dia de Portugal, afirmou Lídia Jorge que «por alguma razão os cidadãos, hoje, regrediram à subtil designação de seguidores e os seus ídolos são fantasmas». É uma constatação do recuo em relação àquele tempo marcado pelo reconhecimento do mundo e pelo apreço pelo outro, que nos faz ver agora afirmar-se uma espécie de gente que, enquanto tenta apagar as conquistas do último século, dá voz ao egoísmo, ao rancor, à grosseria, à ignorância, à opressão, reproduzindo-se como um vírus. O que fazer então com ela? A solução não está em normalizá-la ou em desculpá-la, mas em combater com firmeza, por todos os meios que a democracia oferece, incluindo um amplo investimento no campo da cultura e da informação, essa barbárie que procura impor.

Rui Bebiano

Publicado no Diário As Beiras de 14/6/2025
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