Sem vontade de escrever uma autobiografia, incluo por vezes, em textos vários, alguns detalhes autobiográficos, tendo desde há anos o projeto de lembrar, sem nomes ou números de porta, momentos vivenciais sobre o sectarismo que dominou boa parte da oposição ao regime durante o período marcelista. Em particular no meio estudantil, onde uma vírgula num manifesto poderia bastar para criar cisões e alimentar inimizades entre pessoas de diferentes grupos maoistas, gente que se agrupava num dos trotskismos, e de todos ele em relação ao PCP. E vice-versa, claro, não sendo por acaso que Cunhal escreveu diatribes contra o «radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista». Existem episódios deste conflito, de certa forma fratricida, que dariam um livro bem curioso, alguns associados a desconfianças ainda não superadas.
Um encontro casual ocorrido este domingo fez-me recordar uma situação dessa natureza, por sinal bem curiosa, que apenas compreenderá minimamente quem naquela altura tenha vivido algo parecido. Aqui vai ela, contada de maneira muito breve. Terá acontecido no final de 1971, quando tive, por curtos meses, uma ligação com uma namorada hippie – ela, como eu, ainda a viver a transição para o maoismo –, moradora num apartamento maioritariamente ocupado por estudantes comunistas. O razoavelmente estranho, e bom exemplo daquele sectarismo extremo, é que dormíamos, num mesmo quarto de duas camas, com um casal admirador da URSS, cada casal em sua cama, e jamais dirigimos a menor palavra uns aos outros. Como titulava uma secção das Seleções do Reader’s Digest, «acredite se quiser».