O beijo como agressão e um combate necessário

Num dos mais perfeitos filmes de François Truffaut, Baisers Volés (Beijos Roubados), de 1968, estreado entre nós três ou quatro anos depois, Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud), o protagonista, vive obcecado com a sua incapacidade para perceber se aquilo que sente por Christine (Claude Jade) é amor ou apenas desejo. Muitas das pessoas que na época viram o filme andaram semanas a debater apaixonadamente a compatibilidade parcial ou a incompatibilidade total entre estes dois conceitos. O papel figurado do beijo – o título saiu de um verso da canção «Que reste-t-il de nos amours», de Charles Trenet – é ali fundamental, dado este deter uma qualidade quando é clandestino. de certa forma «roubado», e outra quando é público e consentido. 

Ressalvando a distância de contexto e de sentido, não pude deixar de viajar até esta memória a propósito do debate sobre a agressão e o consentimento que rodeia a situação envolvendo Luís Rubiales, o presidente da Federação espanhola de futebol, e a jogadora Jenni Hermoso, recém-campeã do mundo. Um episódio que adquiriu rapidamente projeção global, alimentando um debate tão incómodo quanto necessário a propósito da prática do assédio sexual e do lugar do machismo no mundo do desporto, em particular no do futebol, onde as mulheres têm vindo a ocupar um lugar cada vez mais destacado.

É claro que o beijo na boca não consentido foi intolerável. Aliás, uma vaga de testemunhos e de imagens divulgados tem permitido constatar que não se tratou de caso único de abuso de autoridade e de postura grosseira por parte de Rubiales. Mas o pior veio depois. Desde logo, com a realização de uma assembleia-geral federativa, apenas destinada a ilibá-lo, para a qual as mulheres funcionárias do organismo foram expressamente convocadas e colocadas na primeira fila, de modo a parecer estarem ali para o apoiar. Depois, ainda pior, em intervenção onde recusou qualquer culpa e se apresentou como vítima, incluiu uma inaceitável retórica – que, como escreveu em editorial David Pontes, diretor do Público, decalca a da extrema-direita do Vox –, através da qual procurou apontar o feminismo como um meio de coação e não de emancipação. Tendo sido ovacionado ao fazê-lo.

É verdade que algumas feministas – importa lembrar que não existe um só feminismo, mas vários, e bem diversos – têm errado a pontaria, transformando episódios duvidosos ou menores em situações que, no domínio público, apenas se voltam contra aquilo que proclamam defender. E é verdade também que esta prática tem colocado alguns homens, mesmo entre os que de há muito defendem a igualdade de género e os direitos das mulheres, como suspeitos de gestos ou de crimes que não cometeram. Mas esta imperfeição da luta por esses direitos e pela necessidade de pôr fim aos abusos impostos todos os dias por uma cultura fundada no patriarcado e na subalternização das mulheres, não pode pôr em causa a necessidade absoluta de combater situações abusivas, privadas ou públicas, como esta da qual tanto se fala. 

Perante a onda de choque associada à sua divulgação, basta reparar naquilo que tem sido escrito, nas redes sociais e em alguns jornais, no sentido de desvalorizar o que aconteceu ou, muito pior, de culpabilizar até a agredida e as companheiras que com ela se solidarizaram, para percebermos como este é um combate difícil, que tem ainda muitas e longas batalhas para travar. Um combate indispensável também.

Rui Bebiano

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