Pacifismo seletivo, capitulação e colaboracionismo

Diante de todas as guerras, começando pelas travadas em larga escala sobre as quais circula um volume esmagador de informação e propaganda, importa falar de paz e trabalhar para que esta tenha lugar. Aliás, o objetivo da guerra é sempre a conquista de uma ordem fundada na paz, se bem que seja indispensável distinguir as travadas pela justiça ou contra a opressão, das outras, a maioria, onde a própria «pacificação» impõe uma ordem injusta e dolorosa, ainda que produzida com menor dose de ruído. Fala-se nestes casos de uma «paz podre», fundada na violência e na lei do mais forte. 

A «pax romana», observada nos duzentos anos em que o poderio da Roma imperial se impôs aos povos que subjugou, corresponde a uma «paz» desta natureza, na realidade materializada numa ordem assente no poderio militar. Encontramos algo idêntico entre 1947, data da imposição da «Doutrina Truman» contra o «avanço do comunismo», e 1991, quando a União Soviética se dissolveu. Foram os anos da Guerra Fria, marcados por uma permanente tensão, quando os constantes conflitos regionais, muitos extremamente letais, foram camuflados por um equilíbrio armado, assente no medo, que ditava uma falsa paz.

Na guerra de agressão da Rússia de Putin contra a Ucrânia, como em outras situações recentes – veja-se o caso da Síria, onde o ditador Assad «pacificou» o país com recurso ao apoio militar de Moscovo, provocando centenas de milhares de mortos e milhões de refugiados –, o problema da paz coloca-se também de forma aguda. Não apenas porque todas as partes, mesmo a que lançou a guerra, a invocam, mas também por existirem setores que, retoricamente a favor de uma solução pacífica, defendem soluções que favorecem o agressor. De facto, existe uma parte da opinião que, se não apoia Putin, assimila as suas razões ou não as encara com a necessária frontalidade, menosprezando ou relativizando o imenso drama humano em curso. 

Esta integra dois segmentos. O primeiro é composto pelos que veem na Rússia a continuação dessa antiga União Soviética pela qual continuam a sentir nostalgia, mas também a expressão de uma força capaz de se opor ao odiado imperialismo norte-americano, o único cujos malefícios conseguem enxergar. Herdeiros do «campismo» inventado por Estaline – a política internacional vista como uma luta entre dois «campos» – consideram seu dever estar do lado da Rússia e da China para combater os Estados Unidos, sendo as questões associadas à soberania dos povos, à violência da guerra ou à repressão política nesse contexto irrelevantes. 

Já o segundo segmento, defendendo a paz, condena o caráter tirânico e imperial do regime de Putin e considera intolerável a agressão a um Estado soberano como a Ucrânia. Todavia, entende que existe razoabilidade nos argumentos russos a propósito dos seus objetivos «defensivos» lançados contra os interesses estratégicos dos EUA e da NATO. Este setor apoia acordos destinados a obter a paz, mas ao mesmo tempo compreende que se façam cedências a Putin, nomeadamente o desarmamento do regime de Kiev, a redução da soberania ucraniana e o recuo da União Europeia, que vê como mero peão de Washington. 

Sendo crítico da NATO, o historiador ucraniano Taras Bilous, numa «Carta à esquerda ocidental a partir de Kiev» escrita já sob o impacto dos mísseis russos, refere-se a estas posições como expressão de um «anti-imperialismo dos idiotas», que, em nome da «complexidade», apesar de invocar a paz – pela qual se deve, sem qualquer dúvida, trabalhar com a maior urgência – se opõe sobretudo à interferência ocidental, aceitando conviver com terríveis realidades partilhadas por povos situados do lado «errado» do combate entre Rússia e EUA. Como as que desde 2011 vive o povo sírio e agora o ucraniano.

Perante a agressão de Putin e o colossal drama humano que provocou, esta escolha só pode designar-se, como no passado se fez à indulgência perante Hitler e os fascismos, capitulação ou mesmo colaboracionismo. Para terminar a guerra de invasão da Ucrânia, a negociação da paz que assegurará a soberania do seu povo será a única solução, mas esta não pode ser obtida aceitando ou pactuando com as razões do agressor.

Rui Bebiano

Fotografia: Despedida em Kiev / AP
Publicado no Diário As Beiras de 19/3/2022 (versão um pouco ampliada)
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