A dificuldade da confluência

Em vários locais do país, como noutros lugares da Europa e do mundo, realizaram-se ontem manifestações de protesto contra a brutal invasão da Ucrânia imposta pelo tirano e oligarca Vladimir Putin. Como acontece nos momentos mais críticos da vida social, e assim deve ser, essas manifestações foram amplamente unitárias, reunindo, na convocatória, um amplo leque de partidos e movimentos políticos, e depois, na rua, um grande número de homens e mulheres seus apoiantes ou, na larga maioria dos casos, sem partido. Em Coimbra participaram Bloco de Esquerda, CDS, Cidadãos por Coimbra, Iniciativa Liberal, Nós Cidadãos, PAN, PPM, Partido Socialista, Partido Social Democrata, RIR, Somos Coimbra e Volt Portugal. Só não estiveram Livre (acredito que por falta de contacto, pois este partido participou em Lisboa e no Porto), Chega (que não foi convidado por não ser defensor da democracia) e Partido Comunista Português (que a par do chamado Partido Ecologista Os Verdes tem «compreendido» e justificado a invasão).

Como se pode ver, uma causa justa e humanitária reuniu pessoas com posições muito diferentes, opostas até em quase tudo, mas que coincidiram na oposição à agressão inaceitável a um Estado soberano e democrático, e na defesa da paz. E assim deve ser: a história dos últimos dois séculos tem mostrado repetidamente como, em certos momentos, o que é essencial se coloca à frente do acessório na expressão de escolhas coletivas de uma natureza mais dramática. Para não ir mais longe, e porque se trata do exemplo mais conhecido, basta recordar a luta contra o nazismo, e, em Portugal, o combate contra o salazarismo, que reuniram pessoas de ideologias, estratos sociais, sensibilidades e escolhas muito diversos. Mais recentemente, pode também evocar-se o combate contra a troika e os seus cúmplices internos, que juntou, toda a esquerda e mesmo alguns setores que habitualmente votam no centro-direita. Traço comum a estes movimentos unitários é a escolha de uma causa urgente e comum, e o provisório recuo de tudo aquilo que separe e diminua o impactodessa unidade.

Por este motivo, considero de reprovar que, no momento em que a prioridade da iniciativa de ontem foi salvar vidas humanas, exigir o fim a invasão ignóbil de um país colocado a ferro e fogo, forçar ao recuo o ditador Putin e o fantoche Lukashenko, e forçar ainda a construção de vias seguras para uma paz duradoura, se coloquem rigorosamente no mesmo plano esses objetivos e o combate contra a NATO, a União Europeia e o governo dos EUA, que não são de momento os invasores, embora as suas escolhas em matéria de política internacional possam e devam, obviamente, ser relacionadas com a situação em causa. É isto que pode observar-se em tomadas de posição individuais e pôde ver-se mesmo em algumas das manifestações de ontem, produzindo formas de divisionismo que reduzem o impacto público da iniciativa. Apenas, numa exibição de infantilismo político, para tentar «marcar a diferença» em relação a um todo que excecionalmente fez por se aproximar. Seria como se, na manhã do desembarque da Normandia, alguém se manifestasse numa ravina da praia de Omaha com cartazes proclamando «nem Hitler, nem Roosevelt». As políticas de confluência tática são sempre difíceis e requerem concessões, mas em determinados momentos são indispensáveis para consolidar a confiança e produzir algum efeito.

Rui Bebiano

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