O que fomos e o que somos

Existem muitas situações e escolhas, vividas no presente, que dificilmente se podem comparar com outras, ocorridas em momentos do passado e só na aparência análogas, que as mesmas pessoas experimentaram. As alterações da realidade social, das práticas culturais e dos direitos políticos, a diferença dos códigos éticos e jurídicos vigentes a cada momento, determinam sentidos muito diversos. É importante entender isto num tempo em que, dada a maior exposição da privacidade, a mais ágil circulação da informação e uma compreensão mais crítica de escolhas e direitos, é fácil responsabilizar-se alguém pelo que defendeu há trinta ou há quarenta anos, sem se ter em conta a transformação pessoal e a do todo. Não me refiro a crimes, cuja prescrição é sempre complexa e muito discutível, mas a valores e a escolhas. Quem tem um curto trajeto de vida, ou reduzido conhecimento da história, pode não entender esse processo, julgando com um olhar de agora o que ocorreu num mundo diferente. Ao contrário, as pessoas mais velhas ou que não se deixam cegar pelo momento, estão em regra mais aptas para atender às circunstâncias. 

Seguindo a lição de Montaigne, para quem «somos incapazes de viver de outra forma que não seja por parcelas», não é preciso olhar para a vida os outros para discorrer sobre este difícil trabalho de compreensão da diversidade centrada no indivíduo e na sucessão de tempos pelos quais este passa. Tendo nascido nos anos cinquenta, bastam-me a distância e o uso da memória para dar conta, num breve registo autobiográfico, de muitas posições que assumi e que, mais tarde, aos meus próprios olhos se revelaram erradas, ou exageradas, ou apenas compreensíveis quando inscritas nas lógicas do momento e do lugar. Mesmo sem grande esforço, recordo bem escolhas de política nacional, posições face a conflitos contemporâneos, atitudes perante as mulheres, formas de encarar a homossexualidade, modos de olhar a diversidade e de encarar o problema do racismo, que hoje não partilho, ou que vejo mesmo de uma forma muito diferente, mas que a certas alturas fizeram parte do meu mundo. No interior do qual, aliás, eram naturalizadas e vividas como se não existisse alternativa possível. 

Recordo, por exemplo, a forma de construção da minha masculinidade, que no final dos anos sessenta partilhava com os seus amigos um rapaz comum de uma pequena vila de província. Ela incorporava atitudes que podem hoje ser facilmente interpretadas como socialmente conformistas, e era sem dúvida pautada por um sexismo que então dominava as regras de conduta hegemónicas e generalizadas. Não que alguma vez tivesse sido um agressor de mulheres – nem mesmo verbal, pois a educação e a sensibilidade sempre me impediram de o fazer, ou até de o imaginar como uma possibilidade –, mas comportava-me, com frequência, de acordo com as regras dominantes que as colocavam num lugar passivo e de subalternidade. Atitude que ainda vejo hoje manterem muitos homens mais ou menos da minha geração, incluindo-se neste grupo muitos dos que se consideram e até proclamam politicamente progressistas, alguns até como feministas, mas que na realidade não o praticam no espaço próximo e privado das suas relações familiares ou de grupo. 

O mesmo sobre o racismo. Desde a adolescência me senti e fui agindo como um antirracista militante, mas tenho a perfeita consciência de que, em dado momento do passado essa escolha tomou a forma de um certo paternalismo de pendor eurocêntrico, que só mais tarde compreendi ser uma outra forma, encapotada e diluída, mas de modo algum benévola, de racismo. O mesmo ainda sobre amigos homossexuais, em relação aos quais, na minha insegurança e incompreensão da época, cheguei mesmo a guardar alguma distância, uma vez que de certo modo a sua identidade me perturbava. O mesmo até sobre escolhas políticas, certas delas bastante extremas e eticamente discutíveis, nas quais acreditei profundamente, às quais entreguei de livre vontade e por convicção uma parte da vida, do meu trajeto profissional e até do bem-estar, mas que mais tarde revi e hoje não olho do mesmo modo. Ainda que compreenda o seu contexto pessoal e histórico, e então as tenha tomado na mais absoluta boa-fé. 

Será por isto, sem dúvida, que, tal como não apago passados, nem por muito que agora os rejeite faço por encobri-los, jamais aceito fazer no presente, a respeito dos outros, juízos de valor absolutos, a aplicar nesta altura, baseados naquilo que essas pessoas, em dado momento de um tempo que ficou para trás, definiram como escolhas sinceras ou naturais, à escala dessa época. Todos os homens e mulheres carregam um passado; todavia – salvo em caso de reconhecidos e graves crimes sociais – nenhum deles, nenhuma delas, tem de responder a vida toda por essa parte do vivido, tendo sempre direito a um trabalho de desenvolvimento ou mesmo de redenção. Eles e elas valem principalmente pelo que hoje são e pelo que hoje defendem. Isto é, por aquilo em que se transformaram e pelas escolhas que assumem ou não. Não pelo que outrora fizeram, ou pensaram, e só mais tarde perceberam como algo a mudar, ou como um efetivo erro.

Rui Bebiano

Fotografia de Igor Demidov
    Democracia, Direitos Humanos, Olhares, Opinião.