Patriotismo bacoco e pedra na mão

Que fique bem claro: estes dois parágrafos não são sobre um futebolista ou sobre futebol. Justamente um dos três temas, a par da existência de deus e do policiamento da língua, sobre os quais seja onde for eu evito escrever ou mesmo falar muito, dado facilmente transformarem pessoas pacíficas em animais irracionais e de dentes aguçados. Tem como motivo, todavia, um episódio recente que com a referida modalidade se relaciona. Liga-se com a situação vivida no final do desafio Sérvia-Portugal, quando, após erro notório e com consequências para o resultado da responsabilidade do árbitro da partida, Cristiano Ronaldo se irritou bastante, atirando ao chão a braçadeira de capitão enquanto abandonava o relvado. Foi o que bastou para que meio país agarrado às redes se indignasse. Não tanto com o holandês Danny Makkelie, o descuidado juiz da partida, mas com o conhecido craque, por alguns acusado de «ter insultado um símbolo nacional» (sic). Relevo a ideia estúpida que leva a considerar uma tira de pano azul com um C de capitão bordado a branco como um «símbolo nacional» e penso antes numa situação bastante doentia que é recorrente nas redes sociais.

Esta prende-se com o facto de se poder considerar que alguém que num certo momento detenha notoriedade pública – um governante, dirigente partidário, jogador de futebol, músico, ator, mesmo um vencedor de um concurso de Mr. Músculo ou do Avental de Chita (eles ou elas, naturalmente) – não tenha o direito a alguns excessos à frente de toda a gente, ainda que de uma maneira ocasional. Uma irritação momentânea, uma alegria desbragada, uma deixa que não deveria ter saído com o microfone ligado, um momento de riso sem controlo, um olhar mais insolente, um arroto inadvertido, uma ventosidade descuidada, uma frase que poderia ter sido mais bem pensada, um gesto brusco, distraído, ou mesmo uma óbvia alarvidade. Na verdade, devemos desconfiar é de quem, estando nesses lugares, jamais o faz, vivendo uma vida inteira a medir, a sopesar, a compulsar, a escolher, a omitir, a filtrar cada palavra que pode dizer ou cada pequeno gesto que calhe exibir. E ainda desconfio mais de quem, por um momento ocasional e eventualmente menos feliz, se dedica, por tão pouco, a fazer julgamentos absolutos sobre a ou sobre b, exigindo a sua punição sem apelo.

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