Os perigos do presentismo

O presentismo é uma categoria de análise do tempo, criada pelo historiador francês François Hartog, segundo a qual passado e presente desaparecem como referentes da experiência humana, seja esta pessoal ou coletiva, dado passarem a valer apenas pela forma como são compreendidos no momento. Nestas condições, o próprio futuro desvincula-se de toda a construção utópica, sendo visto como mais do mesmo e deixando de suscitar esperança nos indivíduos e nas comunidades. Resta única e exclusivamente o presente como instância de orientação no tempo: tudo é apresentado como se passado e futuro fossem realidades incertas, que não têm lições a dar-nos, nem projetam a nossa vida para horizontes de progresso. Para os presentistas, vivemos um eterno presente e só este é real.

Dizer isto na atualidade parece um paradoxo, pois na aparência fala-se muito, como nunca se falou, do passado e do futuro. Todavia, eles não são apresentados como diferentes do mundo em que vivemos, surgindo antes como algo que hoje apenas repete o que aconteceu ou que antecipa o que pode vir a acontecer, sem que exista uma atitude crítica e uma manifestação de conhecimento em relação a acontecimentos ou a momentos do passado nos quais ocorreu uma viragem profunda. Por exemplo, das revoluções esconde-se muitas vezes a violência, a mudança das atitudes sociais que provocaram, a criação de uma nova ordem política e cultural por elas impostas. Por sua vez, dos projetos para o futuro desaparece a possibilidade de transformações profundas e duradouras, como se não fossem possíveis os momentos de significativa viragem. Passado, presente e futuro são assim colocados numa linha de continuidade, esquecendo que não é esta, mas sim a mudança profunda e acelerada, e a criação de alternativas, que fazem mover a História e que criam o novo.

Boa parte desta vertigem presentista fica a dever-se à expansão muito rápida dos meios de comunicação, aliada a muitos dos novos movimentos pela recuperação da memória socialmente partilhada. No primeiro caso, a constante e acelerada proliferação de informações sobre o passado nos jornais, na televisão ou na Internet faz com que muitas vezes este seja demasiado «normalizado», ou mesmo banalizado, não se percebendo a diferença que existe entre situações vulgares e momentos excecionais. No segundo caso, a obsessão pela memória faz com que inúmeras vezes se misture o que a tradição diz como tendo sido a realidade dos acontecimentos ocorridos noutro tempo com o que hoje realmente acontece, como se o hoje fosse uma mera repetição do ontem e um prelúdio do amanhã.

Um bom exemplo disto é a «normalização» do modo de observar o período revolucionário que Portugal viveu em 1974-1975. Quando observamos os discursos comemorativos ou aquilo que dizem os manuais escolares sobre aquele tempo, tudo parece simples, linear, como se o que aconteceu fosse apenas uma perturbação ocasional da ordem política, determinada pela iniciativa de algumas pessoas mais ousadas, e não um movimento profundo, com passado e futuro, que abalou profundamente a sociedade e marcou para sempre a vida das novas gerações. A estas é-lhes dito que vivem em democracia, sem que se lhes mostre que esta nasceu de um parto difícil e é algo que precisa ser exercido, defendido, pensado e desenvolvido todos os dias.

Neste sentido, o presentismo pode levar-nos, como está já a acontecer em vários países da Europa, a um regresso a situações de autoritarismo, intolerância e violência que no passado já causaram tantos danos e tão graves conflitos, entre eles as duas guerras mundiais e as experiências totalitárias. Falando tantas vezes em nome do passado, ou da história das nações e dos povos, os novos fascismos alimentam-se do excesso de presente, como se os direitos sociais e políticos que estruturam a vida coletiva não tivessem sido conquistados gradualmente, a pulso, com lutas e sacrifícios vividos por tantos homens e tantas mulheres ao longo de décadas ou mesmo de séculos. Como se eles fossem algo descartável da memória de um presente vivido na indiferença, sem causas e ideais mobilizadores. Este é um perigo que deve ser enfrentado, pois não podemos viver sem passado e sem futuro, sob pena de retornarmos ao estado de barbárie do qual um dia partimos.

Rui Bebiano

Fotografia: Chittakone Baccam
Publicado originalmente no Diário As Beiras de 23/2/2019
    Atualidade, Democracia, História, Opinião.