Completa-se este mês meio século sobre a revolta de Maio de 68 em França. Sensivelmente pela mesma altura, no próximo ano decorrerá o cinquentenário da crise académica de 69 vivida em Coimbra. São temas dos quais, como professor de história contemporânea, costumo falar em aulas e seminários, e por isso estou habituado à confusão recorrente – compreensível entre quem pouco ouviu falar dos dois momentos, ou deles retém apenas vagas e imprecisas ideias –, estabelecida entre um tal «Maio de 69» e uma certa «Crise de 68». De uma coisa tenho a certeza: esta confusão alimenta-se da ideia de que uma (a crise) e o outro (o movimento) se encontram estreitamente interligados. Tenho más notícias para quem partilha desse mito ou se ocupa a alimentá-lo: não é de todo verdadeiro que essa ligação tenha acontecido. Existe um equívoco a propósito da influência imediata do Maio de 68 em Portugal.
Quem viveu o movimento estudantil dos anos do marcelismo ou o estudou sabe que chegaram, sem dúvida, ecos e notícias de efeito mobilizador dos acontecimentos de Paris, mas eles foram ainda pouco assimilados e cingiram-se à vivência dos poucos que tiveram a possibilidade de os acompanhar no local. A experiência de António José Saraiva, por exemplo, vertida no polémico «Maio e a crise da civilização burguesa», um testemunho ainda fresco e emotivo de quem acompanhara os acontecimentos, foi a de um estrangeirado no exílio. Mais importante: a realidade da intervenção estudantil universitária era entre nós substancialmente diversa, definindo-a de início ainda uma dimensão de protesto «corporativo» de pendor reformista. Demonstram-no os importantes momentos da «crise académica de 69» em Coimbra, que perturbaram os governantes e a modorra universitária e coimbrã, e foram cruciais para ampliar a desafetação de muitos estudantes em relação à autoridade do Estado Novo, mas mantiveram um registo paciente, combatendo o regime sem o pôr diretamente em causa.
De facto, só por volta de 1971 em Coimbra e no Porto, talvez um pouco mais cedo em Lisboa, começaram a notar-se, rapidamente ampliadas nos anos imediatos, algumas das caraterísticas que identificaram o movimento estudantil francês e aquele que se estava a disseminar pelas universidades das regiões mais industrializadas da Europa e da América. Verificou-se então uma rápida e acentuada politização do movimento que visava superar a etapa reformista, em parte associada à presença mais ampla, diversa, hiperativa e organizada da extrema-esquerda, até aí residual. Ocorreu também a integração de metas e formas de luta de natureza claramente anti-sistémica e pelo derrube imediato do regime, um alargamento a novos patamares da luta ativa contra a Guerra Colonial, o crescimento em flecha da presença das mulheres na vida associativa e no ativismo, a assunção de formas de luta mais espontâneas e até violentas, a inscrição de uma importante vertente vivencial libertária associada à cultura juvenil internacional dos anos 60, e o extravasar da luta para fora dos espaços das escolas e das associações, com a introdução de alguma ligação ao movimento operário e popular. Tudo isto tornou possível, agora sim, uma aproximação ao modelo do movimento francês, determinando um salto qualitativo que perturbou o regime e fez elevar muito o nível da repressão policial sobre o ativismo estudantil.
Esta aproximação não deixou, porém, de ser relativa, dado existirem condições políticas, sociais e culturais muito específicas da sociedade portuguesa, onde até ao 25 de Abril a dimensão fraturante da iniciativa dos estudantes e dos intelectuais foi sempre limitada pela intervenção poderosa da polícia política e da censura, pelo caráter ainda sociologicamente elitista deste setor e pela predominância, na organização e na luta das oposições, de programas mais vocacionados para os interesses da classe média e dos trabalhadores. Mas ao mesmo tempo a luta estudantil foi muito importante na construção de uma consciência coletiva associada à possibilidade, não apenas de protestar contra o regime, mas de o fazer cair, projetando em simultâneo, para o país, um horizonte democrático e aberto ao mundo. Tornando real o que parecia impossível. O nosso Maio, na verdade, aconteceu com Abril.
Crónica publicada no Diário As Beiras de 4/5/2018.