A Sociedade Portuguesa de Graxas dedica-se, hoje como outrora, à nobre arte da «fabricação de graxas, pomadas, cremes e outros artigos similares». E tem, no seu passado de labor em prol do calçado luzidio, anúncios tão eloquentes como este (datado de 1963 e que tomo de empréstimo ao blogue Às duas por três). Que me perdoem os amigos benfiquistas que virem na exibição deste documento qualquer insinuação um tanto dúbia e despropositada relativa a actos menos gloriosos. Estão enganados. História é história.
Chega às livrarias um livro de entrevistas a activistas estudantis dos anos 60. Organizado pelo autor deste blogue e por Maria Manuela Cruzeiro, e editado pela Afrontamento, Anos Inquietos – Vozes do Movimento Estudantil em Coimbra (1961-1974) integra sete conversas com sete pessoas diferentes, com experiências diferentes, que permitem ampliar o olhar contemporâneo sobre uma época tantas vezes abordada a partir de ideias-feitas, de recordações filtradas ou de experiências contadas para legitimar um certo presente. Sendo também histórias de vida, estas entrevistas – a Eliana Gersão, Fernando Martinho, Carlos Baptista, Pio de Abreu, Fátima Saraiva, José Cavalheiro e Luís Januário – viajam um pouco pelo passado de cada um, pela imagem que dele preservam ou que sobre ele foram construindo, preenchendo, como documentos a confrontar com outros documentos, áreas da nossa história recente que têm permanecido na penumbra.
Neste caso a memória permanece estranhamente presente. Tudo se esquece com facilidade, menos aquelas imagens cintilantes de aviões sob um céu azul, que sabemos lotados de passageiros em pânico, a colidirem em fogo contra as enormes torres de cimento, vidro e aço atulhadas de pessoas distraídas com a sua vida. Tudo se esquece menos o momento no qual soubemos que jamais voltaremos a jurar, onde quer que nos encontremos, que estamos em completa segurança. Menos perceber, como sugere Slavoj Žižek, «a ideia da existência de um agente Maligno que faz pairar constantemente sobre nós a ameaça de uma destruição total». A certeza, por mais debates que se façam sobre o conflito ou o entendimento das religiões – com todos os mulás, rabis, padres e demais pastores jurando sobre o seu livro, pelas barbas ou pelo sangue de um qualquer profeta, a benignidade essencial da sua -, de que podem as simples palavras, ou as boas intenções, não servir para nada.
Apareceram no blogue Branco Sujo alguns posts, reunidos com o título comum «INDYvagações amadoras sobre Imprensa», a propósito do fim do Independente e da importância desse jornal na imprensa (e na sociedade) portuguesa dos últimos vinte anos. Sublinho algumas ideias que me interessaram mais.
Dizendo estranhar que na sua área política, com pouquíssimas excepções, se não tenham apercebido daquilo que o semanário trouxe de novo, José Quintas afirma ali que «dessa ignorância resultou a aceitação generalizada que o discurso típico da esquerda é aborrecido, escrito de modo seco, limitado à enumeração inócua dos pés de barro do capitalismo». E adianta: «Admita-se publicamente: há muito mais pessoas conotadas com a direita a escrever bem». Para depois acrescentar: «Para quem detém um edifício ideológico coerente (…), a ‘graça’ pode parecer ‘graçola’ inconsequente de miúdos’», lamentando ainda que «a esquerda, de um modo geral, nunca tenha entendido essa particularidade da natureza humana». São afirmações que me parecem lúcidas, mas levantam questões difíceis de tratar em três ou quatro dúzias de linhas. Ficam pois algumas anotações, com a intenção de voltar ao assunto.
Reconheço também o facto do discurso-padrão da esquerda ser, por via de regra, não só desprovido de humor como militantemente resistente a quem tente perturbar esta orientação. Existe uma base histórica para este facto, uma vez que ele parte da tradição de um verbo protestativo, que fala em nome do injustiçado, do sofredor, do oprimido – herdeiro de um outro, recolhido no romantismo, que falava em nome do «homem» e da história – e que não tem motivo algum para se rir deste (e neste) mundo. Produziu-se, desde o início, um «fundamento de classe» que determinou a aridez da fala matricial da esquerda. A grande dificuldade em superá-lo mantém-se na mesma medida em que também se verifica, por parte desta, uma enorme dificuldade em superar a tradição das suas experiências, mesmo as mais negativas, que sempre se fundaram na consideração de uma escusa ao combate «em estado de ódio» como forma de traição. Entre nós, a linguagem do PCP funciona como testemunho duradouro desta característica, mas a fala, principalmente a mais recente, do Bloco de Esquerda, não me parece substancialmente diferente. E até a generalidade dos «independentes» situados à esquerda a conserva no essencial. Mesmo no interior do pequeno universo dos blogues, naturalmente mais aberto a alguma desenvoltura nas ideias e nas maneiras de falar.
A constatação de que existe agora um número maior de pessoas conotadas com a direita a «escrever bem» põe outra hipótese que parece fazer todo o sentido. Principalmente, porque tempos houve, há três ou quatro décadas atrás, nos quais a direita era um deserto de ideias mais do que gastas, de linguagens esclerosadas, de fortes bloqueios, enunciando os seus discursos um certo agastamento, e uma clara incompreensão, em relação às transformações profundas que ocorriam no mundo. Quase todos os melhores escritores, os jornalistas mais capazes, os artistas mais originais, as pessoas mais cultas, activas e optimistas, integravam-se então – em Portugal era essa, sem dúvida, a tendência dominante – inequivocamente na área da esquerda. Hoje, porém, a esquerda continua a pensar-se essencialmente a mesma, continuando tolhida na posição meramente defensiva do discurso exclusivo do protesto – apenas temperado, ocasionalmente, por alguns sinais de marketing eleitoral – sendo por isso facilmente ultrapassada por sectores menos complexados, por vezes conotáveis de facto com uma certa «direita», que passaram as últimas duas décadas a reformular as suas causas, a ensaiar uma nova língua para as enunciar, a transportá-la sem complexos por todos os meios de comunicação, incluindo-se neles, e com um grande peso, a Internet.
A resistência «tenaz» da esquerda face a uma criatividade sem entraves, que passe pela falta de humor, pela fuga ao uso da ironia, pela desconfiança diante da dimensão lúdica do acto de comunicar, é uma das peças obsoletas de um discurso dirigido a um «grande ghetto» e que, por isso, dificilmente rompe o isolamento (acto no qual, por vezes, nem interessada parece estar). Reduzindo – tal como, inversamente, o Independente dos melhores tempos o demonstrou pela positiva – as vias de empatia com sectores sociais cultos e informados, que já não partilham de uma consciência essencialmente colectivista e sofredora da vida e do próprio combate social. A direita, com muito menos traumas e complexos, vai aproveitando.
Revi há dias, com alguma nostalgia mas também o distanciamento crítico que na altura não era capaz de ter, a beleza ficcionada das aulas de uma excelente professora da faculdade. Um dos últimos e interessantes números dos Cahiers Science et Vie despertou essa recordação. Tinha como tema a travessia do tempo protagonizada por seis heróis gregos: Prometeu, Orfeu, Édipo, Teseu, Hércules e Sísifo. Porém, mais do que a habitual informação enciclopédica, colocava dúvidas e problemas sobre a forma como todos eles, e as suas respectivas lendas, foram apropriados ao longo do tempo por escritores, filósofos, cientistas ou pessoas comuns. Uma conclusão geral parece-me agora alguma coisa de óbvio: ao contrário daquilo que uma leitura ingénua ou entusiástica dos heróis gregos por vezes nos faz crer, os monstros, os milagres, os gestos heróicos e salvíficos, tal como aconteceu na sua posteridade, jamais foram tomados à letra pelos antigos. Como nós, como aqueles que se colocaram entre eles e nós, serviram-se dos mitos, das lendas, das narrativas, para produzirem imagens reflectidas do seu próprio mundo. Para proclamarem a recuada origem das suas cidades, a legitimidade das formas de poder nelas estabelecidas, a variedade dos problemas por resolver, dos enigmas por inquirir, dos medos por apaziguar.
A cada vez mais rápida transmutação do presente em memória, e logo em esquecimento, obriga-nos a viver tudo como se da primeira vez se tratasse. Este sintoma de atracção pela velocidade detecta-se dramaticamente em parte substancial da prática jornalística. A mesma que, pelo menos do ponto de vista ético, deveria perspectivar o presente sem ignorar os «presentes» que o antecederam. A sedução da rapidez, a par, em muitos casos, de uma ignorância crassa – ou, pior, da completa incompetência – produz assim situações de confrangedora ausência de rigor. Segundo o Público, o papa Bento XVI saiu ontem à rua com um chapéu inteiramente «novo» e «inovador», o Saturno, o qual, de acordo com a mesmíssima notícia, foi também… utilizado muitas vezes por João XXIII e por João Paulo II, nos primeiros anos de pontificado. Acrescento: pelo menos Bento XV e Pio XII usaram-no também. Tem, aliás, um corte tradicional, muito ao estilo do cura de aldeia dos finais do século XIX, naturalmente em versão carmesim, que será do agrado de um papa objectivamente retrógrado como o actual. Este tipo de imprecisão pode parecer uma irrelevância. Repetida, como tem sido, é acima de tudo um sintoma.
Num conjunto de textos publicados no Auto-Retrato sob a comum designação «O mal dos blogues», Sérgio Lavos refere-se – com ecos no Esplanar – a um conjunto de problemas e perplexidades aos quais provavelmente devemos ficar atentos.
Enuncia-se ali uma contradição entre os limites colocados ao funcionamento dos blogues, sempre dependentes do seu imediatismo e efemeridade, e a insistência no grande salto que eles representaram em relação ao período dos e-zines, nos quais era possível produzir um nível de discurso mais complexo e elaborado (se alguns deles foram fanzines com outro rosto, muitos outros foram bem mas do que isso). Concordo por completo com os limites apontados a estes e-zines em termos de capacidade para se manterem actualizados e de facilidade de manipulação, mas já não concordo – e posso dizer que conheci bem o meio pois estive mergulhado nele durante seis ou sete longos e exaltantes anos – com a referência à sua vinculação aos «tiques e defeitos das publicações académicas tradicionais». A verdade é que – terei, com mais meia dezena de pessoas, configurado a excepção – durante mais alguns anos os académicos e o seu mundo mantiveram-se, em Portugal, completamente alheios a esse espaço aberto. Projectos tão originais como o Top 5% Webzine , a Babel, o Código de Barras ou a Alface Voadora – de José Couto Nogueira, meu saudoso parceiro e amigo – seguiram por caminhos e linguagens bem diferentes.
Por outro lado, parece-me importante introduzir na reflexão quatro tipos de blogues sempre algo marginalizados pelos «grandes cruzadores» do debate político, aqueles que somam e multiplicam um número muitíssimo maior de page views. Ainda que tenham uma visibilidade inferior, eles têm pontuado muito do que neste domínio existe de melhor, de mais criativo, e, num certo sentido, de mais profundo. Refiro-me aos blogues mais directamente preocupados com a criação, com o «comentário cultural», com causas e interesses mais específicos, assim como aos, inúmeros, de natureza intimista. Permitindo todos eles – os que conservam uma regularidade e uma qualidade acima da média, para não falar do inevitável lixo, bem entendido – a pluralidade e o encontro de interesses absolutamente ímpares. E permanecendo também enquanto notáveis espaços para o treino de escrita e dos próprios processos de reflexão e de crítica.
A leitura dos blogues tem, além disso, permitido a definição de modalidades de democracia informal e a visibilidade de posições que os grandes jornais e as estritas organizações da democracia representativa costumam silenciar ou ignorar. O que valerá a pena sublinhar ainda é que eles tem contribuído também, e de uma maneira sem dúvida crescente, para colocar problemas que de outra forma nem sequer se teriam posto sobre a agenda dos meios de comunicação social, dos órgãos de soberania e dos partidos. SL reconhece-o ao fazer notar que os blogues «seja qual for a forma tomada no futuro, irão ser um meio fundamental de produzir, acima de tudo, opinião». Por isso mesmo é que se torna necessário não aceitar como inevitável, e via única para a sua sobrevivência, a completa integração comercial deste meio. É que foi precisamente por aqui que começaram a morrer os e-zines, substituídos por «portais» incaracterísticos, estandartizados, frívolos até. Por isso também é necessário resistir à apropriação completa e às tentativas de aniquilamento deste espaço de liberdade. Felizmente que, para o fazer, não é preciso muito mais do que vontade e inteligência.
Tenho alguma dificuldade em falar nas aulas do amor romântico. Quando tento revelar, em primeira mão, as quatro características que distinguem esse estado de espírito ocidental e único – o facto de nascer sempre de um encontro fortuito, a impossibilidade de desaparecer por um simples esforço de vontade, o sexo como algo de longínquo e não essencial, a presunção de que aquele estado de plenitude durará «para sempre» – parece-me entrever alguns sorrisos cínicos. Se sugiro a leitura de Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, ou de O Vermelho e o Negro, de Stendhal, sinto cruzarem-se alguns olhares trocistas. E preciso desdobrar-me em explicações. Afinal, o amoroso romântico – sonhador, nostálgico, capaz de ir até ao fim do mundo, ou de morrer, pelo seu amor – é acima de tudo um personagem literário. Paradoxalmente, são muitos daqueles que nada lêem que mais acreditam nele.