Levanta-me uma dúvida a edição pelo Público, a partir de amanhã, de um conjunto de 10 DVD que recordam os 80 anos sobre o nascimento da «eterna jovem e bela Marylin Monroe». Será que a mais famosa falsa loira da história gera ainda o avassalador efeito erótico que produziu na época de O Pecado Mora ao Lado, de Os Homens Preferem as Loiras, ou mesmo de Misfits (que não integra esta colecção)? Sucessivas gerações de homens e de mulheres reconheceram nela um ideal de sensualidade, ou mesmo de ousadia sexual, no limiar – «poo poo pidoo!» –do que era então possível situar entre o publicamente aceitável (para as famílias que iam ao cinema) e o intimamente perturbador (nas capas de revistas para cinéfilos). Apenas comparável ao furor que, num sentido menos clássico, logo de seguida despertou Brigitte Bardot. Sei que em sociedades onde vigora uma ética religiosa muito estrita e o corpo feminino deve mostrar-se velado e submisso, Marylin continua a patrocinar sonhos muito quentes e húmidos. Passar-se-á o mesmo no nosso mundo de modelos anoréxicas, enfeites sado-maso e corpos andróginos? Aposto que o nível etário dos coleccionadores dos DVD do jornal da Sonae vai integrar maioritariamente homens, supostamente heterosexuais e com mais de sessenta anos. Mas gostaria muito de me enganar.
Uma palavra velha no ar, para legitimar a censura. A palavra é «provocação». O encenador Hans Neuenfels é «provocador» porque, no Idomeneo, colocou em cena as cabeças cortadas de Buda, de Cristo e de Maomé. O papa é «provocador» porque argumentou em nome da fé que julga «a verdadeira», confrontando os que consideram a sua como «a única». Lenine «provocou» quando escreveu O Estado e a Revolução. Saramago «provocou» quando criou uma nova leitura dos evangelhos. Stravisnky «provocou» quando produziu A Sagração da Primavera para os Ballets Russes de Diaghilev. Joyce e D. H. Lawrence «provocaram» quando escreveram Ulisses e O Amante de Lady Chatterly. Genet quando redigiu o Diário de um Ladrão. Rushdie quando lançou os Versículos Satânicos. Não constar do Index librorum prohibitorum será talvez, no limite, grosseira «provocação». Mas não existe criação, ou ideia inovadora, ou defesa coerente de uma causa, que vivam sem a suprema «provocação» de confrontarem outras. Dizer que não é conveniente porque, que não agora porque, que se deve silenciar porque, que pode ser chocante porque, é o argumento primeiro de todas as ditaduras e de todos os que desejam, ou admitem – o que é praticamente a mesma coisa -, um controlo «razoável» das consciências. Será que dizer uma verdade assim tão simples e tão essencial constituirá uma «provocação»?
Uma das minhas fantasias inaugurais – viver em ambiente rústico dentro da cidade – jamais a preencherei. Despertar pela manhã com as galinhas da quinta. Adormecer com o ladrar distante de um rafeiro. Sentir, como o ultra-romântico, os ramos da nespereira roçando a vidraça, «empurrados pelo vento». Mas também caminhar quinhentos metros, passar o portão de ferro, e, quase anónimo, poder comprar o diário, a eau de toilette preferida, o livro que saiu ontem, uns sapatos de camurça. Infelizmente terei de me conformar a viver no apartamento periférico, eternamente cúmplice das embraiagens dos automóveis a tentarem estacionar e da gritaria dos desvairados nocturnos. Esta madrugada foi assim que acordei: dois sujeitos que discutiam na rua sob o efeito do sono, do álcool, talvez do ciúme, ou de qualquer outra causa ou sentimento. O mais afirmativo gritava alto, exaltado, repetindo o impropério: «És um enermúgno, tás a ouvir! Um enermúgno, pá! Não passas dum enermúgno, seu enermúgno!» O insultado mantinha-se em silêncio e remoía, com os olhos no chão e incapaz de argumentar. Admitindo o tom de voz do companheiro ou a grandeza do neologismo.
René Magritte: projecto de publicidade para os cigarros Belga (1936)
Se existe leitmotiv certo nas imagens que tenho reproduzido nos blogues, ele pode ser encontrado na presença do cigarro. Não se trata de campanha contra o antitabagismo demencial que tem ocupado governantes de diferentes países. Nem de tique de dandy ou de rebelde, procurando no gesto singular a marca da diferença ou da insubmissão. Fui percebendo que o fazia de forma não-consciente, levado, talvez, tanto quanto pelo gosto do tabaco, pela beleza que detecto na volúpia do verdadeiro fumador. Não o viciado em nicotina, que já não fuma por prazer, mas aquele que sabe esperar o justo momento e se pode rever nas palavras de Richard Klein em Cigarettes Are Sublime (Duke Univ. Press, 1993). Assim: «Fumar um cigarro pode ser comparável a escrever um poema: inalando o fumo quente da própria criação, deixando que as palavras no papel possam arder ao ar visível de uma elocução surda, exalando em espiral figuras de desejo, conduzindo, com gestos modulados pelo fumo, uma conversa que ninguém mais pode escutar.»
Ser benigno, caro Luís Mourão, não é obviamente a mesma coisa que ser sensato. O pior que nos pode acontecer é que em nome da amabilidade, ou do desejo frouxo de permanecermos invisíveis, alguma vez, algum dia, esqueçamos a capacidade de pensar sozinhos e de falar de maneira única. De pronunciar o que pensamos como só nós pensamos e somos capazes de pronunciar. Concordemos pois em dissonância.
Completado o esclarecimento acerca da intenção que o Bruno, a meu ver de forma um pouco equívoca, pôs nas minhas palavras, passo agora a algumas ideias avulsas que se prendem, directa ou indirectamente, com o post dos Avatares.
Parece-me estar muito mais próximo do posicionamento do Bruno do que suposto seria diante de uma questão tão séria quanto aquela que ele coloca ao demarcar-se daquilo que eu possa ter escrito. Essa aproximação advém, principalmente, do facto de, ainda que contaminado por algumas opiniões que tendem a tornar-se mainstream no campo de uma certa esquerda, ele recusar acepções maniqueias a propósito de «bons» e «maus», de «nós» e «eles», de «ser por» ou de «ser contra». Creio, sem qualquer hipocrisia, que só a inteligência, o conhecimento e a honestidade – para mim, reclamo apenas a terceira destas características – permitem, como acontece com o Bruno, o assumir de posições complexas, bem mais difíceis de sustentar do que aquelas que identificam os pastores e orientam os seus rebanhos.
1 – Como nesta altura se terá percebido já, o «discurso do nós e eles» não o partilho, de forma alguma. Mas sei que dificilmente podemos fugir-lhe, uma vez que ele é constantemente avançado sobretudo por uma das partes da contenda (sim, trata-se de uma contenda, e bem grave). E essa parte é precisamente aquela que tomou a ofensiva. Falo, claro, do extremismo islâmico, que não me parece representar uma consequência do embate, ou um sintoma dele, mas ser antes a sua causa mais imediata (embora não a mais profunda). São precisos discernimento e coragem para escapar ao separar das águas.
2 – É inegável, ao contrário daquilo que algumas boas consciências proclamam ou que leituras posteriores têm tentado estabelecer, que o Islão nasceu historicamente como religião de guerra e o cristianismo apareceu como religião de paz (começando ab ovo pelo conhecido distanciamento do próprio Cristo em relação às intenções subversivas dos zelotas). Se a tradição islâmica viveu depois momentos de aceitação e de diálogo – o que, sem dúvida, aconteceu (pelo menos desde o quinto califa Harun al-Rachid, correspondente de Carlos Magno e senhor da ficcionada Scheherazade) – também o cristianismo conheceu, como todos sabemos, o mais atroz estado de barbárie. Mas as matrizes são distintas, independentemente das nossas vontades ou desejos.
3 – Já não sei onde se pode chegar com a recorrente exaltação do «Islão moderado». Admito que essa moderação exista, e sobretudo que existam muçulmanos sensatos e amantes da paz, pelo menos entre sectores da débil classe média dos países islâmicos e entre alguns dos seus intelectuais, mas penso que ela jaz calcada na rua pelos gritos de «Allahu akhbar!» e pela defesa intolerante da jihad como essência do Islão. E, no caso de existir, se não será a compreensão ou a mudez diante dos seus algozes o pior serviço que lhe podemos prestar.
4 – Não me parece que seja ineficaz ou incorrecta, perante o fundamentalismo, uma defesa tenaz e sem concessões de conquistas do género humano, como sejam a liberdade de culto e de opinião, o laicismo, a igualitarização da mulher, o reconhecimento dos direitos e da diferença das minorias étnicas ou sexuais. Argumentar – sei que o Bruno não o faz, mas fazem-nos alguns dos que vivem obcecados com o velho «remorso» ocidental que o marxismo fez florescer à escala planetária – que se devem «respeitar», na sua «diferença», atrocidades e violações de conquistas essenciais apenas porque elas se inscrevem numa tradição cultural outra, parece-me alguma coisa de politicamente inaceitável.
5 – O relativismo cultural permitiu, sem dúvida, grandes passos em frente, como o reconhecimento de um importante espírito de tolerância civil e religiosa. Infelizmente, deixou-se perverter pela impossibilidade de colocar limite à permissividade absoluta que, implicitamente, acabou por integrar. Gostava de saber, assim apenas num parágrafo, o que pensam os seus defensores de um diploma como a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas em 1948. É só uma dúvida que tenho.
Concluo estes parágrafos um tanto dispersos – embora nada vagos, e que já ultrapassaram em muito a pequena divergência com o BSM – com um citação de Samir Kassir, executado em Beirute (veja-se este post) por defender, como «desgraça árabe», a destruição de uma tradição de aceitação, que os regimes teocráticos e antidemocráticos que dominam a generalidade do «mundo árabe» se têm esforçado por apagar da face da Terra. De forma a continuarem a oprimir a grande massa de pessoas pobres, ignorantes e crédulas que dominam sem qualquer controlo.
«Enquanto resistência à opressão, [a ascensão do Islão político] resulta também do fracasso do Estado moderno e do igualitarismo das ideologias do progresso, e, neste sentido, aparenta-se à ascensão dos fascismos na Europa. Com efeito, uma vez despojados do véu religioso que os reveste, os comportamentos sociais dos movimentos islamitas apresentam muitas analogias com as ditaduras fascistas.»
Estaremos nós, aqueles a quem esta possibilidade jamais será indiferente, e ainda que pelo silêncio, ou por tacticismo, dispostos a pactuar com essa emergência?
Embora raros por aqui, de vez em quando lá aparece um ou outro post de puro copy-paste. O que só acontece quando se ouvem palavras fortes. Estas, de Miguel Sousa Tavares, enunciadas hoje na crónica («Regresso às Cruzadas») do Expresso, são-no sem dúvida.
«(…) O que o Papa disse sobre o Islão, fingindo que não queria dizer, é exactamente o mesmo que se poderia dizer sobre qualquer outra religião, incluindo a católica. Se é certo que, em nome do Islão, existem hoje milhões de muçulmanos privados de acesso à educação, à ciência e ao conhecimento, milhões de seres humanos arrastados para guerras que não desejaram e condenados a viver na miséria e no subdesenvolvimento a mando dos seus teólogos, também é verdade que o mesmo se passou durante séculos com os católicos a quem a Igreja ensinou apenas a esperar pela justiça e pelo Paraíso depois de mortos. E não foi a Igreja que mudou, mas a Revolução Francesa que ensinou os homens a mudar, contra a Igreja.»
Nos Avatares de um Desejo o Bruno Sena Martins leu-me de uma forma que merece um reparo. Aproveito a boleia para algumas reflexões complementares.
Começo pelo reparo. O Bruno deixa implícito que uma pergunta minha, introduzida num texto com funções retóricas, corresponderia, explícita ou implicitamente, a uma posição pessoal. Essa pergunta definiria uma certa cumplicidade com aquele que teria sido o gesto de «coragem» materializado por Bento XVI na lição de Ratisbona.
Relendo-se com atenção a frase sublinhada – «Terá sido então um acto de coragem, uma forma de enfrentar o recuo das democracias perante um lado do Islão que exige cada vez mais, que aspira ao pagamento do tributo e à humilhação do infiel?» – parece-me claro que o futuro do indicativo, seguido de uma interrogação, coloca uma possibilidade, não produz uma afirmação. Porém, importam-me mais outras coisas que o Bruno diz no seu comentário.
Não vou fazer aqui considerações sobre a forma como considero a figura de Ratzinger ou a identidade profunda de um Islão que ele pretenderia, de acordo com as leituras apressadas feitas por alguns dirigentes islâmicos, diabolizar e combater. Aquilo que o papa fez – leia-se, na íntegra, a tradução de «A Fé e a Razão» que saiu ontem na edição portuguesa do Courrier International – foi, de facto, algo que teve muito menos de enfrentamento do que de recolocação, embora de forma conservadora, da necessidade imperiosa de um diálogo de religiões.
Bento XVI, que jamais pretendi «defender» – aliás, nem católico sou, e muito menos «ratzingueriano» – argumentou ali, principalmente, contra a impossibilidade da conversão pela violência, afirmando que «agir de maneira não racional é contrário à natureza de Deus». Se tal contraria alguns princípios corânicos, ou algumas intenções actuais dos islamitas, isso já é outra questão. No exercício das suas funções, aparentemente, o papa pode não ter sido oportuno. Mas lendo com rigor aquilo que ele disse, parece-me um texto coerente com uma posição não-defensiva, por parte da Igreja católica, perante a agressividade que, como o Bruno reconhece, transparece de certas leituras, actualmente dominantes, dos textos corânicos. Como gostava de dizer um velho professor meu, «são dois mil anos de manha».
A «perigosa deriva civilizacional de confrontação totalizante», da qual sou acusado, não estava, pois, presente no meu texto. O meu ponto de vista é muito mais equilibrado – como, embora diferente, me parece ser também o do Bruno Sena Martins – e isso pode ser percebido em outros textos que aqui tenho escrito sobre o problema do confronto que tem vindo a ser requerido pelo islão «fundamentalista» e ao qual, em regra, o «ocidente» tem respondido de forma atabalhoada e quase sempre profundamente criticável.
Neste caso, teria preferido que a frase citada tivesse sido aquela com a qual fechei o parágrafo onde se encontrava a interrogação: «No fundo, aquilo que me importou não foi propriamente o que disse Bento XVI, os motivos pelos quais o disse naquele lugar e naquele momento, mas antes a tenebrosa consideração de ele não ter o direito de o dizer.»
Num comentário aparecido no Esplanar sobre a breve conversa que por interpostos blogues tenho mantido com Luís Mourão, Carlos Leone faz notar que ela enuncia um «desentendimento incurável, mas amigável». E liga esta benignidade com aquilo que pode, de facto, ser essencial: tal é possível apenas por seremos, não se sei ambos, «não-crentes». Talvez seja verdade no que me toca: os amigos católicos – não me dou com muçulmanos, juro sobre qualquer livro que apenas por uma sucessão de acasos -, mesmo os mais tolerantes, «progressistas» (como se lhes chamaria noutra época), cultos e afáveis, deixam-me sempre de pé atrás. Quando, por um descuido da fala, digo alguma coisa que lhes toca o santo dos santos (há dias disse a um que considerava ter o actual papa «uma insuportável voz de padreca», o que é uma triste verdade), capto então, por uma fracção de segundo, um olhar que me deixa gelado. Só entre os não-crentes consigo, de facto, dizer aquilo que me vem à cabeça a propósito do sagrado sem qualquer recriminação.
Temo-nos servido desta conversa, Luís Mourão e eu, não para opor ideias, mas como pretexto para discorrer sobre as nossas. Julgo que ambos entendemos as razões do outro, como sabemos que ao privilegiar-se uma forma de abordar os textos e as ideias, jamais se exclui a seguinte. Por isso, que posso fazer senão concordar uma vez mais com ele quando se diz «contra a estupidez das ideias feitas e das vidas vividas por imitação»? Ou apoiá-lo de novo quando recorda, a quem ande um pouco distraído, que toda a leitura é única? Só que se trata aqui do acto de ler, de decifrar, não da acção de papaguear imposta aos simples para lhes domar os impulsos e os conduzir à acção alienada. E o papagueamento existe, rodeia-nos, ameaça-nos, e, por muito que nos repugne, não o podemos ignorar. Porque, entre outras coisas, é sobre ele que se fundam os poderes que nos submetem e a incapacidade para os contrariar. E porque o seu ruído nos pode levar ao silêncio. Daí o interesse que mantenho, procurando estendê-lo a outros – a começar pelos que têm o dever de ouvir-me… – por essa forma activa de sobrevida em estado cataléptico.
Nos cem anos sobre o nascimento de Dimitri Shostakovitch pode recordar-se a intensíssima capacidade criadora, a multiplicidade dos géneros dos quais se serviu, a dimensão monumental de quase todas as sinfonias, a dor e o grito que se podem escutar principalmente nos quartetos de cordas. Pode também falar-se da tensão constante que foi a sua hesitação entre o vermelho e o cinza. Do esforço, e do perigoso jogo que jogou, para sobreviver ao combate entre o seu interesse pelo experimental, pelas «perversões formalistas» e «cosmopolitistas», ou pelo introspectivo e melancólico, e o panfletarismo do realismo socialista, que o «paizinho dos povos» foi acompanhando com sucessivas exigências e ameaças pessoais. Mas prefiro lembrar a vida quase sempre solitária de uma figura pública. Homem de Mármore e comunista, e músico, que conviveu, por vezes como cúmplice, com a degradação do silêncio.
«O antiamericanismo só acaba com novo presidente.» A frase foi pronunciada por Bill Emmott, antigo director do The Economist, em entrevista que a Visão publica hoje. A afirmação pode ser lida de três formas que se não sobrepõem necessariamente. A primeira é como boutade, antigo costume de privilegiados, transformado em hábito neste tempo de verdade tão fugazes que o quer que se diga tem sempre o álibi de ter sido dito num contexto que a seguinte realidade torna incompreensível. A segunda será mais linear: Emmott deixa implícito que o relacionamento formal dos EUA com a União Europeia e a generalidade do mundo, neste momento tão frágil nas expectativas, poderá mudar se uma figura mais cordial e inteligente puder ajudar a demolir o estado de exasperação a que conduziu – ele não diz isto, mas fica implícito – o convívio com o rústico George e a repulsiva madame Condoleezza.
A terceira forma reporta-se, porém, a um problema que se não pode resolver com um simples delete. A América, pelo que representa na ordem mundial, pelo lugar ainda ocupado pela poderosa máquina industrial, financeira e militar de que dispõe, pela agressividade da sua elite dirigente – mas também, e muito, pela intervenção da história de intervenções estúpidas e desastradas – permanecerá, por muito tempo, com lugar reservado enquanto Grande Satã. Do qual continuam a precisar – para usar uma frase vulgar e certeira, «como de pão para a boca» – os todos os maniqueus da religião e da política. Como se sabe, estes carecem sempre de um inimigo sólido, capaz de ampliar as suas capacidades, de camuflar as suas hesitações, e, acima de tudo, de desenhar uma luta essencialmente comum. Da frente antiamericana não se esperam assim grandes novidades: seja qual for o rosto do momento na peanha da Casa Branca, o comum objecto de ódio jamais aceitará humilhar-se. E o impasse irá servindo a uns e aos outros.
Duas notas sobre o que diz Luís Mourão a propósito de «Caricaturas – Parte 2». Claro que um papa da igreja romana não afirma aquilo que este afirmou independentemente do seu lugar. Poderíamos dizer que foi um impulso, um repente, um instante de pathos determinado pela emoção do reencontro com o lugar do erudito e do professor que fala ex cathedra. Mas não o creio: quem é dado a repentes não chega tão longe entre sotainas e cabeções, não assoma com aquele à-vontade e trajado de branco às janelas do Vaticano. Terá sido então um acto de coragem, uma forma de enfrentar o recuo das democracias perante um lado do Islão que exige cada vez mais, que aspira ao pagamento do tributo e à humilhação do infiel? Estranho, num sucessor de Pio IX, inspirador do infame Syllabus. Nunca saberemos se assim foi, pois Ratzinger jamais escreverá as suas memórias, e parece-me tão legítimo considerar a segunda hipótese quanto a primeira. No fundo, aquilo que me importou não foi propriamente o que disse Bento XVI, os motivos pelos quais o disse naquele lugar e naquele momento, mas antes a tenebrosa consideração de ele não ter o direito de o dizer.
A segunda parte do apontamento requer um exame menos apressado. Conto voltar ao assunto. Para já, apenas uma nota: LM parece-me ter, talvez por sensibilidade, ou por formação, ou por escolha, ou por tudo isto junto, um interesse particular no desdobrar dos textos, no encontro do «simples» dentro do que parece impenetrável, na multiplicidade de leituras de uma frase que na aparência parece ao vulgo como linear e absoluta. Trata-se de uma escolha que quase sempre me agrada, embora me custe aceitá-la como a única legítima, mesmo que possa ser a mais completa. Tenho-me interessado cada vez mais – observando a capacidade que o processo tem de imprimir vida útil a determinados textos – justamente pelo inverso. Pela transformação de proclamações literais em imperativos. De ideias gerais em correntes de opinião. De vulgatas – recordo uma daquelas que mais influenciaram o nosso comum destino: O materialismo dialéctico e o materialismo histórico, de Josif Vissarionovitch Stalin – em programas ou filosofias de vida. Sejam elas amáveis, apenas perturbantes, ou, como me parece ser o caso, meu deus, assassinas.
O século de Setecentos descobre o amor libertino (do latin libertinus, liberto). Em Les Liaisons Dangereuses (1782), de Choderlos de Laclos, o visconde de Valmont e a marquesa de Merteuil, os dois personagens centrais, haviam sido amantes. Após a separação, permanem cúmplices e rivais, divertindo-se a contarem ao outro as aventuras de alcova, dando-se conselhos, sugerindo-se conquistas. Aqui, os «grandes sentimentos» cedem o lugar aos jogos do poder pessoal, às estratégias de sedução, à centralidade e à fugacidade da volúpia. O fictício Don Juan, como o vero Casanova, são as figuras arquetípicas desta forma de amor que se não detém na contemplação ou na entrega incondicional. Fruindo as suas obsessões num jogo do qual detêm, na perfeição, os códigos e as argúcias. Permanecendo como modelos de uma sensualidade extrema e teatral, que se crê sem entraves e que, no limite, não reconhece o afecto ou mesmo o crime.
Nesta controvérsia, a propósito das palavras de Bento XVI na Universidade de Ratisbona, somos nós os verdadeiros ofendidos. Aplicando-se este «nós», bem entendido, a todos os que defendemos o carácter absoluto e inalienável das liberdades de opinião e de expressão. Neste caso, no terreno do debate teológico e filosófico. E, de uma forma geral, no da reflexão académica.
Lendo o discurso – que pode ser encontrado aqui – afigura-se óbvio que o papa utilizou palavras de Manuel II Paleólogo como citação erudita, num texto especulativo a propósito das relações entre fé e razão. O teólogo, e último imperador independente de Constantinopla, escrevera também, e Bento XVI citou-o nestes passos, que «a fé é fruto da alma e não do corpo», que «aquele que levar alguém à fé deve ser capaz de pensar bem e pensar justamente sem violência nem ameaças», e ainda que «para convencer uma alma razoável, não temos necessidade do seu braço, nem de armas». Paleólogo adiantou igualmente, e na sua especulação Ratzinguer limitou-se a citá-lo, que Maomé trouxe «o mandamento de defender pela espada a fé que ele pregava». Mas precisamente para contrariar a justeza desta ideia. É que basta folhear o livro sagrado do Islão para se constatar que, independentemente de outras acepções da exegese corânica, esta ideia se encontra de facto ali: «Matai aqueles que não crêem em Deus, nem no Dia derradeiro, aqueles que não consideram proibido o que Deus e o Seu Profeta proibiram, aqueles de entre os homens do Livro que não professam a crença da verdade», proclama o Corão, que sublinha a necessidade de ser tal acto levado às últimas consequências, sem qualquer piedade dos adversários, até que estes «paguem o tributo, todos sem excepção, e fiquem humilhados» (Sura Nona, 29). Não faz qualquer sentido negar o preto no branco.
É claro que, neste campo, a tradição da Igreja católica tem enormes telhados de vidro. Ratzinguer sabe-o bem e, pelo seu percurso de vida, nem é daqueles que mais contestam a tradição de intolerância e violência que a Santa Sé foi aceitando ou promovendo. Mas é claro também aquilo que, em mais este caso, pretendem os manipuladores da «rua islâmica» (como, entre nós, chamou Pulido Valente aos que sob condições de opressão e indigência cultural se deixam facilmente manipular por qualquer mulá mais exaltado). Querem «apenas» que as citações da tradição cultural da humanidade que possam ser consideradas inconvenientes para os seus propósitos e o seu proselitismo sejam rasuradas, omitidas, apagadas. E, acima de tudo, não querem perder mais um pretexto para incendiarem as praças, reforçando a indiscutibilidade do seu poder e aproximando-se um pouco mais das suas metas.
P.S. 1 – Sugiro ainda a leitura de um post recente do Luís Januário.
P.S. 2 – Admito que a intervenção de Bento XVI possa ter sido «pouco diplomática», e aparentemente estranha, no contexto da habitual prudência vaticana. Mas o que está em causa é bem mais grave que os contornos de uma eventual gaffe.
Passou por mim um autocarro dos transportes públicos chamando a atenção dos passantes para o «perímetro medieval» da urbe. Uma linha a branco sobre a chapa traçava os contornos do antigo e inexistente castelo, sublinhando a imagem de um património desenhado por dentro das cabeças. Afinal, tirando a velha porta de Almedina e meia dúzia de pedras perdidas na Couraça de Lisboa, já não existem muralhas, torreões, cubelos. Nem a poeira deles. Quase nada para além de algumas casas oitocentistas, de portas a ranger, alguns edifícios religiosos, pedras exaustas, as luzes e as paredes da universidade antiga. Dão-se porém alguns prospectos aos turistas e a estudantes do sétimo bê e eles crêem-se felizes a circular por entre almocreves, bufarinheiros e artesãos, camponesas, frades e mendigos. Resvalando pelo tempo, como num filme.
«Sou um simpatizante da esquerda por sede de harmonia, de dignidade e de justiça. Mas vejo frequentemente que é a esquerda que mais ameaça essas coisas que me levaram a aproximar-me dela.» Sei que Caetano Veloso falava em contexto brasileiro, mas esta frase que deixou numa entrevista à Folha de São Paulo poderia transformar-se na essência de um manifesto universal, de uma carta-aberta transatlântica, de um abaixo-assinado que eu assinava por baixo sem a mais pequena hesitação.
«Adoptando posições corporais que põem em perigo o ajustamento do sentido e das coisas, (…) [o acrobata] é associado à magia: por um efeito de ligação imediata, de impulso, de força sem mediações e sem dispositivo técnico, o corpo desloca-se de um lugar a outro pelo ar; os cotovelos tocam-se por detrás das costas, a cabeça desloca-se. (…) Une dois pontos do espaço através de um salto incompreensível.» (José Gil, Monstros)
Um dia todos seremos capazes de o fazer. Todos quereremos fazê-lo. E assim talvez possamos viver mais felizes.
Estava a pensar falar sobre as agendas da minha vida quando vi que o Pedro Mexia já havia feito coisa parecida numa crónica da Grande Reportagem (agora reunida a outras na colectânea Primeira Pessoa, ed. Casa das Letras). Vale a pena, ainda assim, escrever alguma coisa sobre o assunto. Por dois motivos essenciais. Primeiro, porque se aproxima o Outono e chega com ele a altura de procurar o caderninho mais conveniente, antes que o stock esgote e tenhamos de aceitar a oferta anual das carpetes Avelino ou das confecções M. Santos & Filho. Depois porque quase todos nós temos recordações e sentimentos particulares em relação a esse tipo de objecto íntimo. Eu não escapo à regra.
Lembro o prazer infantil que sentia em receber, em dose tripla ou quádrupla da responsabilidade de uma companhia de seguros qualquer, aqueles cadernos de capa cartonada ou em oleado, por vezes com um pequeno lápis lateral, e cheios de pormenores que achava abolutamente essenciais. Sobre coisas magnas e tão diversas como as fases da lua, o horóscopo chinês, a população de Copenhaga, os afluentes do Amazonas, o ramal da Lousã, a invenção do papel, «anedotas do Bocage», como tirar nódoas de azeite ou o cognome de D. Henrique, o tio e sucessor indesejado do Desejado. Folheava-as durante tarde inteiras, imaginando tudo a partir de muito pouco. Com uma única angústia: a minha vidinha sem responsabilidades não me dava motivos suficientes para apontar o que fazer. A parte da agenda propriamente dita ficava então em branco, com a excepção do meu aniversário, dos resultados do Sporting, e de um frase, exultante e em maiúsculas, inscrita a cada 1 de Julho: «COMEÇO DAS FÉRIAS GRANDES».
A seguir veio a filofax, com os seus separadores coloridos, lugar para cartões de crédito e credifones, uma presilha de botão. Pesada, com menos informação e ainda mais espaço para escrever notas e lembretes, nunca me entusiasmou particularmente. Usei-a principalmente para guardar moradas e, em casa, como pisa-papéis. E de repente, há uns cinco, talvez seis anos, passei a servir-me das agendas electrónicas. Nas quais parece caber de tudo. No meu actual Pocket PC, com inexploradas capacidades wi-fi e bluetooth, tenho agora uma agenda perpétua (sempre demasiado preenchida), um alarme, um processador de texto, uma base de dados, dicionários, programas para a Internet. Para não falar de versões das enciclopédias Compton e Britannica, um atlas sofrível, um guia de restaurantes, a Internet Movie Database, e toda uma série de obras de referência (como o Routledge Companion to Historical Studies ou diversos livros electrónicos sobre o cinema e a história do século XX), que consulto em desespero de causa. Mas falta-me um pouco aquele ritual da espera e da chegada das agendas do ano seguinte, o cheiro a cola e a tinta de impressão, a sensação de agarrar com as mãos a chave do mundo.